quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12353: Palavras da Memória (Alberto Alves) (1): Reflexão sobre a amizade (Abel Santos)




1. Em mensagem do dia 22 de Novembro de 2013, o nosso camarada Abel Santos (ex-Soldado Atirador da CART 1742 - "Os Panteras" - Nova Lamego e Buruntuma, 1967/69), enviou-nos este texto sobre a amizade alicerçada num convívio permanente e partilha de emoções, retirado do livro Palavras da Memória, de autoria do seu amigo e camarada Alberto Alves, ex-Fur Mil:




AMIZADE

No exterior da porta pode ler-se em letras garrafais: “TABANCA DA VIZINHANÇA”.

O papel é branco, parece bem cuidado e forte e as letras constituem um bonito artefacto de engenho e arte, são um hino a quem estudou caligrafia feita com aparo próprio em ESCOLA COMERCIAL. Mesmo ao lado, em traço de fino recorte arquitectónico, o desenho macabro de um crânio descarnado, que deixa ver a profundeza do local onde estiveram implantados os olhos, a boca, o nariz e os ouvidos, e a legenda habitual nestas circunstâncias: “PERIGO DE MORTE”. Dois riscos simples lembram descargas eléctricas e dão colorido a todo o conjunto do significativo e macabro painel.

Do outro lado da porta, o quarto de dormir. Melhor dizendo, a camarata: equipada com seis camas de ferro, colocadas em beliche e armários de folha de latão. Os ocupantes - jovens do sexo masculino - cumprem serviço militar obrigatório, algures na Guiné-Bissau, no ano da graça de 1967, onde a guerra de guerrilha parece habitar todos os cantos do território. Os inquilinos do espaço descrito são: o “Tacos”, o “Gato Estúpido”, o “Macaca”, o “Comprimido”, o “Parafuso” e o “Caixa d`Óculos”.

Da esquerda para a direita. Nogueira-Gato Estúpido; Amaro; Pinto Mendes-Parafuso; Alves-Tacos e Viola-Caixa d'Óculos

São iguais, porque são portugueses e militares; porém, todos diferentes, porque assim rezam a psicologia da personalidade e do carácter; também porque são de regiões diferentes e porque cada um pensa por si.

Gente simples, alegre, que pratica a amizade e a solidariedade, com a generosidade própria de quem é jovem. Gente respeitadora de princípios e valores que fazem as sociedades mais justas e fraternas. É interessante vê-los a discutir com entusiasmo e até com alguns excessos. A verdade é que o abraço amigo e sincero está sempre presente para serenar alguns ânimos que, porventura, surjam mais exaltados.

Poder-se-á chamar a família da “Vizinhança”, tantos são os actos que definem a política de entreajuda e as coincidências que os corações exprimem relativamente ao são espírito de camaradagem, compreensão e respeito.
Dizem-se, apesar de tudo, “terrivelmente terríveis”.

No espaço que lhes foi atribuído para se instalarem, conjuntamente com o resto dos elementos que compõem parte da Companhia a que pertencem, não havia luz eléctrica. A iluminação nocturna dentro das instalações fazia-se através de garrafas de cerveja vazias e posteriormente enchidas com petróleo e uma torcida. Esta dificuldade causou curiosidade e despertou o interesse da rapaziada que fez um estudo pormenorizado da situação, que englobou contas e cálculos, meteu raiz quadrada e logaritmos, e, por artes chamadas de berliques e berloques, mestre parafuso, juntou fios e lá conseguiu o extraordinário brilharete de “dar à luz”, num parto difícil, mas sem dor. Foi o delírio para quem vivia às escuras.

Mas o pior estava para vir, pois de outras paragens choveram os “como” e os “porquê” sobre os métodos usados na descoberta do fornecimento de tanta luminosidade por ocasião da noite.
Seriam muitas as histórias para contar que foram protagonizadas pela equipa da “Tabanca da Vizinhança”. A luta diária contra o IN, contra o clima, contra o isolamento e a solidão, era a questão difícil de ultrapassar e trouxe para muita gente problemas graves do foro psicológico.

Luta desigual, que nem a automática G3 resolvia nem dava segurança, era a que todos os dias, pelo anoitecer, travavam com os mosquitos. Autênticas naves aéreas, voavam como “setas e virotões” virados aos corpos seminus dos que pretendiam resguardar-se do calor. Para além da marca da picada, a mente registava com grande acuidade o forte zumbido daqueles insectos incomodativos, difíceis de travar, que tantas noites de insónia provocavam.

Como na sua sucessão os dias nasciam sempre iguais em duração e sempre diferentes em tudo o resto, aquela malta não perdia oportunidade para espalhar e fazer sentir à sua volta a esperança de um sorriso feliz no futuro que se ansiava chegasse rápido. Pelo meio ficariam alguns sonhos de realizações impossíveis, outrossim de caminhadas da vida travadas pela bala ou pela mina traiçoeiras.

Esta verdade de todos os dias martirizava as mentes e os corações que viviam apaixonados pela realidade da vida do outro lado do oceano quando corriam ao encontro daquela palavra de magia “correio”… mesmo sabendo que as notícias tinham alguns dias e mesmo semanas de atraso…

Porém na sua contagem voraz, passava o tempo e algumas histórias que nem por isso conseguiram apagar do tempo e no tempo a amizade que uniu tantos corações em momentos inesquecíveis de sofrimento, de ansiedade e de isolamento, também de grande alegria e satisfação.

Marcadas no espaço, a amizade e a união prevaleceram durante muitos meses e contribuíram para que num dia de muita luz e tranquilidade se pudesse ouvir o grito de alegria que anunciou o regresso e o início o reinício de uma caminhada interrompida algures no tempo, mas agora mais amadurecida pelos anos, pela dor e sofrimento que marcaram um tempo de guerra e incertezas com sangue e morte à mistura…

Guiné-Bissau, 1967
Do livro "PALAVRAS DA MEMÓRIA", de autoria de Alberto Alves, ex-Fur Mil da CART 1742.

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