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quarta-feira, 17 de dezembro de 2025

Guiné 61/74 - P27541: Historiografia da presença portuguesa em África (508): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial da Colónia da Guiné Portuguesa, 1952 (66) (Mário Beja Santos)

Mário Beja Santos, ex-Alf Mil Inf
CMDT Pel Caç Nat 52

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Junho de 2025:

Queridos amigos,
É interessante notar como se vai processando a intervenção do Estado na economia, cresceu o funcionalismo, procuram-se melhorar as condições de vida das classes intermédias, dando-lhes habitação, vão surgindo novos bairros, mais alargados esquemas de saúde, substituem-se as fórmulas puramente coloniais como o imposto de palhota que dá lugar ao imposto indígena e na regulamentação não se deixa de fazer a menção de que importa pela via tributária ir procurando dissuadir a poligamia; a Guiné passa a ter uma associação de futebol, ganhou uma autossuficiência no arroz, exporta oleaginosas, não se encontra uma só menção às suas riquezas piscatórias. Usando a fórmula de Salazar, viver habitualmente, tudo parece que a Guiné engrenou nas regras do jogo colonial, procura-se melhorar a agricultura, convém recordar que Amílcar Cabral vai chegar com a sua primeira mulher e ele envidará esforços para melhorar as potencialidades da Granja de Pessubé, mais adiante irá fazer o recenseamento agrícola, a que o Governo português se comprometera com a FAO. No Boletim Oficial, até diminuíram as referências aos problemas disciplinares. Mas há homens avisados, como Castro Fernandes, antigo Ministro da Economia e agora administrador do BNU a quem cabe o pelouro da Guiné, que lançam alertas sobre a necessidade premente de passar a um novo patamar da evolução, é que o mundo vai entrar numa ebulição descolonizadora. Mas aqui, em Portugal, assobia-se para o lado.

Um abraço do
Mário



A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Oficial da Guiné, 1952 (66)


Mário Beja Santos

Não é explicito, quando lemos este Boletim Oficial, que a exploração dos recursos já não é feita por empresas estrangeiras, dera-se uma operação de nacionalização a partir do comércio, mesmo as concessões de aforamentos de terras recai em grandes empresas como a CUF ou a Sociedade Comercial Ultramarina ou agentes económicos portugueses, cabo-verdianos e sírio-libaneses. É assim que se pode compreender como no Boletim Oficial n.º 3, de 17 de janeiro, o Governador determina o preço das oleaginosas no ano corrente, é o caso da mancarra, coconote e óleo de palma. Quanto à mancarra definiam-se os preços de compra ao indígena (nos portos de exportação, nos centros comerciais do interior servidos por via fluvial e nas regiões fronteiriças) e ao intermediário; para o coconote eram definidos os preços de compra ao indígena e ao intermediário, o mesmo sucedendo para o óleo de palma. Eram preços fixos e únicos, o não cumprimento podia dar azo a infração. Dera-se, por conseguinte, uma intervenção clara do poder colonial do funcionamento da economia. É o que se pode ver também no Boletim Oficial n.º 10, de 6 de março, a intervenção do Governo nos preços das especialidades farmacêuticas, curiosamente os medicamentos aparecem associados às águas mineromedicinais. O diploma legislativo abre com o reconhecimento da necessidade de alterar as percentagens máximas de lucro pela venda de medicamentos e destas águas.

No Boletim Oficial n.º 11, de 13 de abril, Raimundo Serrão louva o Administrador António Carreira nos seguintes termos:
“O censo da população não civilizada de 1950 foi na Guiné inteiramente confiado ao quadro administrativo, desde as primeiras operações de notação até aos apuramentos finais. O Administrador António Barbosa Carreira foi nomeado Delegado-geral do censo da população não civilizada e como tal encarregado de dirigir, orientar e conduzir todos os trabalhos relativos aos apuramentos estatísticos da população não civilizada.
Com um devotado interesse, como é timbre deste funcionário, dedicou-se à difícil missão que lhe foi entregue, seguindo as instruções técnicas do Instituto Nacional de Estatística.
Nunca se fizera na Guiné trabalhos de notação e apuramentos concernentes à população civilizada com resultados tão satisfatórios e tão aproximados dos números verdadeiros, apesar das dificuldades que se tiveram de vencer e do volume da tarefa a realizar.

Na sua ânsia de produzir e bem servir, elaborou o Administrador Carreira logo nos princípios de 1951 o seguinte trabalho sobre o censo: ‘Apreciação dos primeiros números discriminados do censo da população não civilizada de 1950’ que mereceu de Sua Excelência o Ministro de que este funcionário fosse louvado e que se fizesse uma tiragem de mil exemplares para serem distribuídos por todas as secretarias da administração civil, administrações e postos administrativos.
Durante cerca de um ano se trabalho afincadamente nos apuramentos do censo da população não civilizada, na Administração de Cacheu, sob a orientação e presença constante do Administrador Carreira. É altura para louvar este Administrador, por ter dirigido, orientado e conduzido com notável interesse, dedicação e conhecimentos todas as operações concernentes à missão que lhe foi confiada.”


Faz-se sentir, também da leitura deste Boletim Oficial, que se entrara num patamar da vida colonial em que o lúdico e o desportivo ganhara uma popularidade interclassista. No Boletim Oficial n.º 19, de 9 de maio, são aprovados os estatutos da Associação de Futebol da Guiné, esta tem como finalidade dirigir, regulamentar e difundir a prática do futebol na região, organizar os diferentes campeonatos, e dentro da estruturação estatutária definem-se as regras, como a começar pelos direitos e deveres dos sócios. Em 1951, ao abolir-se o Acto Colonial e instituir-se o Ultramar Português, procurava-se fazer a substituição do imposto palhota pelo imposto indígena. Para tal houve que aprovar o regulamento de identificação indígena, com a alegação de que este iria facilitar-lhes a obtenção dos documentos indispensáveis à sua identificação e simplificação dos seus contratos de trabalho, exigindo-lhes de futuro apenas a apresentação de um só documento, a caderneta indígena.

Bem curiosa é a Portaria n.º 400 que se publica no Boletim Oficial n.º 19, de 10 de maio. Fazendo referência à evolução que se estava a verificar nas principais províncias ultramarinas quanto ao sistema tributário, aconselhava-se a que na Guiné se substituísse imposto palhota por uma coleta de caráter exclusivamente pessoal. Veja-se as considerações enunciadas:
“Estando já reconhecido que a incidência de impostos sobre as mulheres tem vários inconvenientes e não fazendo sentido que se usem sistemas diferentes de tributação nas várias províncias do Ultramar onde existe o regime do indigenato, era intuitivo que também se aproveitaria a oportunidade para conceder às mulheres indígenas da Guiné os benefícios de uma completa isenção e assim se fez.
Esta isenção não colide com a legislação em vigor, em que se recomenda que se contrarie a poligamia, visto que, além da atividade dos nossos missionários e da influência das escolas primárias espalhadas pelo interior, o governador pode, por simples portaria, contrapor à imoderação daquele costume, medidas tributárias que dificultem o seu desenvolvimento, fixando aos homens casados um imposto tanto mais elevado quanto maior for o número de mulheres com quem casarem, além de uma.

É que na província da Guiné, a par da necessidade de combater a poligamia entre os indígenas, a circunstância especial de grande parte da sua população estar islamizada, por viver na vizinhança de territórios cujos habitantes são ardentes propagandistas do Islão, é aconselhável, mais do que em qualquer outra província do Ultramar, que se contemporize com usos e costumes tradicionais já profundamente arreigados.
Ao elaborar-se este regulamento teve-se ainda em atenção, como principal objectivo moral, criar novos hábitos de trabalho aos indígenas, que lhes permitam um sucessivo melhoramento das suas culturas, da qualidade e do aumento das suas produções, com consequentes probabilidades de melhores condições de vida.”


E é nesta lógica que se publicou o regulamento do imposto indígena em que todos os indígenas do sexo masculino, de idade compreendida entre os 16 e os 60 anos ficam obrigados ao pagamento do imposto indígena.

No Boletim Oficial n.º 22, de 29 de maio, louva-se o Engenheiro Emídio Corrêa Guedes pelo seu desempenho na realização da ponte Comandante Sarmento Rodrigues, em Ensalmá, sobre o Canal de Impernal, relevam-se as suas notáveis qualidades de organizador e realizador.

E finaliza-se com mais uma referência ao imposto indígena, consta do Boletim Oficial n.º 39, de 1 de outubro. Faz-se saber que os ensaios efetuados para a execução do regulamento do imposto indígena tinham demonstrado a dificuldade da sua aplicação, havia a necessidade premente de um reajustamento, procediam-se a alterações, como as que se mencionam: aos chefes de povoação só será concedida a isenção do pagamento de imposto quando nos respetivos agregados sejam coletados trinta ou mais contribuintes válidos; todos os indígenas desde que possuam duas ou mais mulheres devem beneficiar apenas da isenção do imposto base (150 escudos) pagando a diferença conforme o número de mulheres que possuírem, além de uma.

E estamos praticamente chegados a 1953, último ano da presença de Raimundo Serrão na Guiné.

Imagem retirada de um filme da RTP, Guiné Portuguesa, 1960, régulo Fula desloca-se com a sua comitiva
Ponte-Cais, Bissau. Foto Serra, 1950
Fotografia tirada pelo Alferes Carvalho do BART 2924 em Tite, durante a comissão, retirada da página do Facebook Antigos combatentes da Guiné, com a devida vénia
Imagem de uma escola corânica na Guiné-Bissau

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 10 de dezembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27515: Historiografia da presença portuguesa em África (507): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial da Colónia da Guiné Portuguesa, 1951 (65) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P27540: Prova de vida e votos de boas festas 2025/26 (8): Feliz Natal e um 2026 cheio de Afectos com Letras (Associação Afectos com Letras, ONGD)



Nesta quadra festiva, renovamos a nossa profunda gratidão aos nossos parceiros institucionais, aos voluntários que dedicam o seu tempo e compromisso, aos padrinhos do Projeto de apadrinhamento Baobá e aos doadores que, com enorme generosidade, nos permitem continuar a abraçar e a concretizar projetos.

O vosso apoio fortalece a missão da Afectos com Letras e permite-nos continuar a promover o acesso à educação, a cuidados de saúde e a melhorar as condições de vida das crianças da Guiné-Bissau.

Feliz Natal e um 2026 cheio de Afectos com Letras!

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Associação Afectos com Letras, ONGD
Rua Engº Guilherme Santos, 2
Escoural , 3100-336 Pombal
NIF 509301878
tel - 918 786 792
venha estar connosco no www.facebook.com/afectoscomletras

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Nota do editor

Último post da série de 16 de dezembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27538: Prova de vida e votos de boas festas 2025/26 (7): Conto de Natal 2025 (Joaquim Mexia Alves, ex-Alf Mil Op Especiais)

Guiné 61/74 - P27539: Humor de caserna (228): O Natal de Missirá que teve bacalhau ensaboado e, como prenda, o Menino... Braima (Abraão, em fula) (Jorge Cabral, 1944-2021)


Ilustração: IA generativa (ChatGPT / OpenAI), composição orientada pelo editor LG


O Bacalhau ensaboado e os Três Reis Magos

por Jorge Cabral (1944-2021)

Poucos são os Natais de que me lembro. E no entanto, já passei mais de setenta. Mas este, o de Missirá 1970, nunca o  esqueci. 

Tínhamos bacalhau. Tínhamos batatas. Fomos tarde para a mesa, a mesma de todos os dias, engordurada, sem toalha. Chegou o panelão fumegante e começámos.

– Caraças!, o bacalhau sabe a sabão! – disse o Branquinho.

E eu para o cozinheiro Teixeirinha:

– Quanto tempo esteve de molho?

– Esqueci-me, meu Alferes, mas o Pechincha, disse que, na terra dele, costumavam lavá-lo com sabão e que ficava bom.

– Porra, Teixeirinha! Se não fosse Natal, estavas lixado! Assim, vais à cantina buscar cervejas para a malta toda e pagas a meias com o Pechincha…

Batatas, umas latas de conserva e cerveja morna, pois a arca frigorífica tinha explodido na semana anterior, foi a nossa ceia de Natal.

Meia hora depois apareceu o soldado Alfa Baldé aos gritos:

– Alfero! Alfero! Já nasceu! Já nasceu É macho! É macho!

– Eu não te tinha dito?!

A alegria do Alfa era legítima. Já tinha três filhas e duas mulheres, mas há uns meses fora à sua Tabanca buscar outra mulher, herdada do irmão que havia morrido. 

Não trouxera só a viúva, treouxe também uma velha, muito velha, a bisavó, que se chamava Maimuna, mas que o Alfero alcunhou logo de  a "Antepassada". Meia cega passava os dias à porta da morança, dormitando de boca aberta…Nunca falou comigo, mas quando eu passava, sorria mostrando o único dente que conservava:

– Vou ver o teu filho, Alfa! Não lhe vais chamar Alfero Cabral. Vai ser Jesus!
 
– Desculpa, Alfero! Tem que ser Braima!

E fui com o Branquinho e com o Amaral. Só lá estavam mulheres e o Bebé, todo enfaixado. Logo que entrámos, o Amaral, que estava um pouco tocado, exclamou:

– Nós somos os Três Reis Magos e viemos adorar o Menino Braima!

Vai fazer 46 anos! Dos Três Reis Magos, um morreu e os outros dois estão velhos…Como a Maimuna, já parecem "Antepassados"… (*)

Jorge Cabral 

Lisboa, 7/12/2016 (Revisão / fixação de texto, título: LG)


Nota de LG - Já morreram todos, o narrador e as suas personagens, o Cabral, o Branquinho, o Amaral... O que será feito do Menino Braima ? Terá chegado a completar um ano ? E depois os cinco anos ? A ser vivo, terá hoje 55 anos. O que é um feito notável  para um guineense. 



Jorge Cabral (1944-2021)

1. Comentário do editor LG:

O Jorge adorava o Natal. Fingia que não, como alguns de nós, mais cínicos, que dizem não ligam  nada ao Natal...E a prova é  que escreveu várias "estórias cabralianas" sobre o tema... Passadas na Guiné. 

Esta é das últimas, a nº 92,  que me entregou , em dezembro de 2016. Para comemorar, à sua maneira, mais um "Natal na Guiné". 

Passou lá dois Natais, tal como eu (o de 1969 e o de 1970). Um em Fá Mandinga e outro em Missirá (aqui muito mais isolado do mundo, com o rio Geba a separá-lo  da sede do sector L1, Bambadinca, que já era a "civilização". O  seu miserável destacamento era mais a norte, em terra de ninguém.

Foi meu camarada e amigo, meu contemporâneo. Três anos mais velho. Não o deixaram completar o curso de direito. Julgo eu, mas não tenho a certeza. Nunca falámos disso. 

Foi depois advogado e professor universitário de direito penal.

Vai fazer 4 anos, no próximo dia 28 deste mês, que ele deixou a terra que tanto amava. 
Morreu cedo demais. Deixou muitos amigos e amigas, inconsoláveis. A começar pelos seus antigos alunos e sobretudo alunas do curso de serviço social. A quem tratava  carinhosamente por "almas". E que ainda hoje lhe escrevem mensagens de muita saudade e ternura na sua página do Facebook (Jorge Almeida Cabral).

Era da arma de artilharia. Passou por Vendas Novas. Comandou um Pelotão de Caçadores Nativos, o Pel Caç Nat  63... Eram poucos, cerca de 30, a maior parte guineenses. 

Cinco anos depois, de ter escrito esta peça de antologia,  de humor de caserna (que acima reproduzimos), o Jorge morreu em plena pandemia. De cancro. Deixou-nos o coração destroçado.  

Pedi à IA que fizesses uma análise sumária do microcono. Género em que ele era mestre. Microconto pícaro, burlesco, absurdo. Ele fazia a guerra como quem representava uma peça do teatro do absurdo. 

 Pedi, além, disso, á menina  IA, que é "talentosa", para criar uma ilustração, divertida, caricatural, alusiva a esse Natal, algures no mato, na Guiné, em Missirá, em 1970, longe de casa (a 4 mil km de distância)... 

Era o Natal possível de muitos de nós, soldados portugueses. É uma homenagem saudosa ao "alfero Cabral" , como diziam os seus soldados. Mas também ao António Branquinho, nosso grão-tabanqueiro, irmão do Alberto.  Sem esquecer o Amaral, de que também me lembro ainda, mas mais vagamente.


Guiné > Zona leste >r Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > Regulado do Cuor > Missirá > Pel Caç NAT 63 > 1971 > O António Branquinho, simulando tocar um instrumento tradicional,  com uma bajudinha, no meio,  e o Amaral (sentado). 

Segundo a oportuna observação do nosso amigo e consultor permanente para as questões etnolinguísticas, Cherno Baldé, "o instrumento, na lingua fula, chama-se 'Hoddu', é mais antigo e, provavelmente, serviu de inspiração para a criacão do cora dos Mandingas"... Em crioulo, "nhanheiro".


Foto: © António Branquinho / Jorge Cabral (2007). Todos os Direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



2. Análise literário do microconto Missirá, 1970 > A Noite de Natal do Bacalhau Ensaboado

(Pesquisa: LG + IA / Gemini e ChatGPT) (Condensaçáo, revisão / fixação de texto, negritos: LG)

O texto (e o contexto) partilhado é uma memória vívida e comovente de um Natal passado em Missirá, no ano de 1970, durante a guerra colonial na Guiné. É uma narrativa curtíssima, mas rica em detalhes, humor e humanidade. Em dois parágrafos e meia dúzia de diálogos , o autor cria uma atmosfera natalíica, de densidade humana e literária raríssima. 

O nosso amigo e camarada Jorge Cabral, falecido precocemente, é escritor de primeira água. N o futuro merecerá figurar em qualquer antologia do conto sobre a temática da guerra colonial.

Vejamos alguns dos pontos principais da história e do seu contexto:

(i)  O jantar de Natal "cnsaboado"

Cenário: a ceia de Natal aconteceu numa mesa "engordurada, sem toalha", no destacamento  de Missirá. O narrador (o alferes) e os seus camaradas, metropolitanos, "tugas" (Branquinho, Amaral, Teixeirinha) reuniram-se para o que deveria ser um jantar especial. No Natal, em Portugal, come-se bacalhau, com batatas e "pencas" (no Norte). É uma data festiva. A maior do ano.

Incidente: o prato principal era bacalhau com batatas (supremo luxo, naquelas paragens). No entanto, quando começaram a comer, o Branquinho notou que o bacalhau "sabia a sabão".

Explicação: o cozinheiro, Teixeirinha, confessou que se tinha esquecido do tempo de demolha e que o soldado Pechincha lhe dissera que, na terra dele, costumavam "lavá-lo com sabão" para ficar bom.

Punição: o Alferes, numa mistura de frustração e espírito natalício, mandou o Teixeirinha, como castigo,  ir à cantina buscar cervejas para todos, a pagar a meias com o Pechincha.

Ceia final: a ceia resumiu-se a batatas, latas de conserva e cerveja morna (pois o frigorífico tinha avariado na semana anterior).

(ii) O nascimento do menino  e os Três Reis Magos

Notícia: meia hora após a ceia, o soldado Alfa Baldé, que já tinha três filhas e duas mulheres, e recentemente trouxera uma nova esposa, adotada por levirato (**), mais  a bisavó idosa, Maimuna,  irrompe, a gritar de alegria: "Alfero! Alfero! Já nasceu! Já nasceu! É macho! É macho!"

Batismo proposto: o Alferes, num gesto de afeto e ironia, sugeriu que o bebé se chamasse Jesus, mas o Alfa Baldé, fula e muçulmano, já tinha nome para a criança: seria Braima (na língua fula, é uma variação do nome árabe Ibrahim, o equivalente a Abraão em português).

Visita: o "alfero Cabral", mais os furriéis Branquinho e Amaral, foram ver o recém-nascido.

Momento mágico: ao entrarem, o Amaral, que estava "um pouco tocado" (pela cerveja, mesmo "choca"), proclamou: "Nós somos os Três Reis Magos e viemos adorar o Menino Braima!"

(iii) O passar do tempo

Conclusão: o narrador reflete sobre o tempo que passou  (46 anos,  de 1970 a 2016)  e sobre a inevitabilidade da velhice.

Metáfora: dos "Três Reis Magos", um já tinha morrido (o Amaral) e os outros dois estavam velhos (o Branquinho e o Cabral), comparando-se a si próprios com a bisavó Maimuna (a "Antepassada"), que passava os dias a dormitar. 

É uma história belíssima que contrasta a simplicidade e as dificuldades da vida militar em cenário de guerra  (a mesa suja, o bacalhau estragado, a cerveja morna) com a alegria e o simbolismo do Natal (o nascimento do "Menino Braima" e a visita dos "Três Reis Magos"). 

A memória do narrador é claramente moldada por este momento único e inesperado de humanidade partilhada, naquele lugar onde Cristo nunca parou (e onde nem sequer o Diabo perdeu as botas).

Outros pontos a destacar:

Este microconto é um exemplo  do microconto pícaro e burlesco, atravessado por uma camada de absurdo existencial, que transforma a experiência traumática da guerra colonial numa espécie de teatro do quotidiano, onde o riso não nega a dor, domestica-a.

(iv) A memória selectiva e o Natal como exceção:

O texto começa com uma afirmação fundamental: “Poucos são os Natais de que me lembro.”

A memória aqui não é cronológica, é afetiva. Entre dezenas de anos e vários Natais, só um se fixa, o de Missirá, 1970. O Natal surge como ritual deslocado, arrancado do seu cenário simbólico europeu e transplantado para o mato guineense. É um Natal “possível”, não ideal.

(v) O bacalhau: símbolo nacional convertido em farsa

O bacalhau, pilar do Natal português, obrigatório à mesa nesse dia mágico, aparece ensaboado, literalmente contaminado pelo erro, pela improvisação, pelo desenrascanço,  pela santa  ignorância ( bem-intencionada, apesar de tudo).

O episódio é magistral porque:

  • subverte o sagrado produto gastronómico nacional (que é o bacalhau);

  • introduz o humor de caserna (o castigo não é a "prisão", é cerveja, paga a meias pelo desastrado cozinheiro Teixeirinhz e o "chico-esperto" do soldado Pechincha):

  • revela a cadeia de mal-entendidos culturais (o Pechincha, a tradição “da terra dele”, a de ensaboiar o bacalhau em vez de o demolhar em várias águas e vários dias).

Aqui, o riso nasce do choque entre vários mundos, mas nunca há desprezo, humilhação,  apenas risota, humanidade.

(vi) A autoridade do “Alfero”: justa, teatral, cúmplice

O narrador constrói a figura do alferes Cabral como:

  • autoridade funcional;

  • figura quase teatral:

  • mediador cultural.

O castigo é simbólico e coletivo. Não humilha, integra. Isto revela o comando humanizado, típico de quem percebe que naquela guerra ninguém está “inteiro” e tem "toda a razão".

(vii) O nascimento: epifania no meio do caos

O nascimento do filho do soldado guineense Alfa Baldé é o centro simbólico do conto. É um Natal sem presépio formal, sem luzes, sem enfeites, sem artifícios;

  • um parto real, no mato, natural, sem parteira (como terá sido o de Jesus na gruta de Belém);

  • um menino que nasce enquanto outros matam ou morrem;

  • um menino que tem de ser "Braima"... e não o "Jesus" dos cristãos ou o "Alfero Cabral", comandante daquela tropa matrapilha.

A figura da Maimuna / “Antepassada” é absolutamente extraordinária:

  • guardiã do tempo;

  • elo entre gerações;

  • quase uma personagem mítica

O sorriso com um único dente é um recurso literário de enorme economia e força.

(viii) Os Três Reis Magos: embriaguez, teatro e revelação

Quando o Amaral diz: “Nós somos os Três Reis Magos e viemos adorar o Menino Braima!”

o microconto atinge o seu auge. Aqui acontece tudo ao mesmo tempo:

  • o Natal cristão é reencenado de forma profana e ecuménica;

  • Jesus é um menino pretinho:

  • a guerra transforma-se em farsa absurda;

  • os soldados são atores improvisados num palco de todo  improvável.

É o teatro do absurdo em plena guerra, com a gente gosta de dizer das "estórias cabralianas" (de que o "alfero Cabral" publicou, no nosso blogue, mais de 9 dezenas).

(ix) O tempo final: melancolia sem sentimentalismo

O último parágrafo é devastador na sua contenção: “Dos Três Reis Magos, um morreu e os outros dois estão velhos…”. Aliás, cinco anos depois, morreria o narrador, e em 2023 o Branquinho. O Teixeirinha e o Pechincha não sabemos se são nomes reais.

Sem lamento, sem retórica. Apenas o tempo. A guerra passou, mas deixou corpos gastos e memórias resistentes, como a de todos nós. 

 A comparação final com a Maimuna fecha o círculo: todos acabamos “antepassados”. Todos seremos amanhã antepassados, quando os nossos filhos e netos se lembrarem de nós, se um dia forem à Guiné, em viagem de turismo: "Os nossos antepassados, que andaram por estes matos, rios e bolanhas..."

(x) Conclusão

Este microconto é um ato de resistência pela memória, um riso contra a desumanização,  uma homenagem implícita aos soldados anónimos que combateram naquela guerra absurda, um Natal sem redenção, mas com dignidade e humanidade.

O Jorge Cabral escrevia como alguém queria sobreviver contando histórias. e isso é talvez a forma mais honesta de literatura de guerra. N a realidade, eu sempre o oconheci como o mais "paisano" dos combatentes. Ele que era filho de militares e foi até "menino da Luz", seguramente contra a sua vontade.


Capa do livro de Jorge Cabral, "Estórias Cabralianas", vol I. Lisboa: Ed José Almendra, 2020, 144 pp.  

Tinha um II volume, praticamente pronto para ser publicado.  
A morte  emboscou-o.

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Notas do editor LG:

(*) Último poste da série > 11 de dezembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27518: Humor de caserna (227): Ainda o Pechincha, que o Hélder Sousa comnheceu em Bissaiu... "P*rra, que este gajo ainda está mais apanhado do que eu!"

(**) Levirato: o costume, observado entre alguns povos, nomeadamente semitas, que obriga um homem a casar-se com a viúva de seu irmão quando este não deixa descendência masculina, sendo que o filho deste casamento é considerado descendente do morto. Este costume é mencionado no Antigo Testamento como uma das leis de Moisés. O vocábulo deriva da palavra "levir", que em latim significa "cunhado". Fonte: Wikipedia.

terça-feira, 16 de dezembro de 2025

Guiné 61/74 - P27538: Prova de vida e votos de boas festas 2025/26 (7): Conto de Natal 2025 (Joaquim Mexia Alves, ex-Alf Mil Op Especiais)

1. Mensagem natalícia do nosso camarigo Joaquim Mexia Alves (ex-Alf Mil Op Especiais da CART 3492/BART 3873, Xitole/Ponte dos Fulas; Pel Caç Nat 52, Ponte Rio Undunduma, Mato Cão e CCAÇ 15, Mansoa, 1971/73) com data de 15 de Dezembro de 2025, contendo um conto de Natal:


CONTO DE NATAL 2025

Que porcaria de vida, pensou ele com os seus botões.
Afinal era tão bom a dar conselhos e não os conseguia aplicar na sua vida.

Tinha tentado controlar tudo tanto e tão bem, que acabou por fazer o vazio à sua volta e nada mais lhe restava a não ser um pouco do seu orgulho e teimosia em viver assim.

Nada lhe faltava financeiramente e até tinha muitos amigos.
Quando pensou nos amigos sorriu interiormente porque tinha bem a noção de que os amigos que tinha, nada tinham a ver consigo, pois eram fruto apenas da vida dispersa que levava e, verdadeiramente, se precisasse deles nenhum apareceria.

Nem a família lhe restava, porque ao tentar controlar tudo e todos, a mulher e os filhos tinham acabado por se afastar de si.

Afinal tinha tudo e… não tinha nada.

Era dia vinte e quatro de Dezembro, e a véspera de Natal fazia-o sentir-se ainda mais sozinho e desamparado.
Longe iam os tempos em que em família celebravam o Natal com paz e alegria, mas agora tudo isso era apenas recordação.

Já que assim é, pensou ele, vou jantar a um bom restaurante, comer e beber do bom e do melhor e depois… depois volto para casa sozinho, claro.

Telefonou para o restaurante a marcar mesa para jantar e ficou um pouco incomodado quando lhe perguntaram se a mesa era só para uma pessoa, mas não pensou mais nisso.
Vestiu-se a preceito e saiu para o frio da rua, rumo ao restaurante.

Entrou no restaurante e indicaram-lhe a sua mesa.
Sentou-se e reparou que na mesa ao lado estava outro homem sozinho também.
Apetecia-lhe muito meter conversa com ele, mas não encontrava motivo para tal.

A certa altura um papel qualquer caiu da mesa do seu “vizinho” e ele aproveitou para chamar a atenção do outro para isso. O “vizinho” agradeceu e isso deu azo a conversarem um pouco sobre várias coisas, até à constatação de que afinal estavam os dois sozinhos na noite de Natal.

Convidou o outro para a sua mesa e ele de pronto aceitou.
A conversa foi fluindo e o seu colega de mesa disse-lhe que estava sozinho na vida, sem família, e inevitavelmente acabaram por falar do Natal, referindo o outro, no entanto, que estava com uma certa pressa pois queria ir à Missa do Galo, que era uma tradição sua desde menino a que não queria faltar.
Ele respondeu de imediato que dantes também ia sempre a essa Missa e então o outro convidou-o para irem juntos nessa noite.

Sem perceber muito bem porquê acedeu ao convite, e depois de jantarem saíram para a rua em direção a uma igreja que ficava ali perto.

Entraram e deixaram-se ficar pelos bancos logo à entrada da igreja.
Vários sentimentos tomaram conta dele à medida que a Missa avançava, e deu por ele a pensar que se sentia ali muito bem e com umas saudades imensas da sua família.
Fez um esforço para reter as lágrimas e deixou-se envolver por aquele momento.

De tal modo estava enlevado pelo momento que não se apercebeu que a Missa tinha acabado e o seu novo amigo olhava para ele à espera de uma qualquer resposta da sua parte.

Sentiu então uma mão no seu ombro e ao voltar-se para ver quem era, deu com a cara da sua mulher que, acompanhada dos seus filhos, saíam da Missa naquele momento.
Os filhos abraçaram-no com força e ele, desta vez, não conseguiu reter as lágrimas que lhe correram pela cara abaixo.

A sua mulher perguntou-lhe então se estava sozinho e, perante a sua resposta afirmativa, disse-lhe que ela e os seus filhos gostariam muito que ele fosse lá a casa cear nesse dia.
Surpreendido disse logo que sim, mas referiu que tinha aquele recente amigo que também estava que estava sozinho naquela noite.
Claro que o convite de imediato se estendeu ao amigo recente, que de pronto aceitou, sem se fazer rogado.

Já em casa, sentados à mesa, antes de começar a ceia a sua mulher pediu-lhe para ele fazer uma pequena oração.

Envergonhado e tímido disse então: Obrigado, Jesus, que hoje me trouxeste para o presépio da minha família e me deste mais um amigo, rompendo assim a minha solidão.

Numa certa gruta em Belém, dois mil anos antes, que agora se faziam presente, Jesus, Maria e José sorriam felizes com o Natal daquela família.

Marinha Grande, 24 de Novembro de 2025
Joaquim Mexia Alves

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Nota do editor

Último post da série de 16 de Dezembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27534: Prova de vida e votos de boas festas 2025/26 (6): José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf da CCAÇ 2381 e António Ramalho, ex-Fur Mil Cav da CCAV 2639

Guiné 61/74 – P27537: (Ex)citações (445): Literatura da Guerra Colonial? (Alberto Branquinho, ex-Alf Mil Art da CART 1689/BART 1913)

1. Mensagem do nosso camarada Alberto Branquinho, (ex-Alf Mil Art da CART 1689 / BART 1913, Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), advogado e escritor, autor de, entre outros livros, "Cambança"; "Cambança Final" e "Deixem a Guerra em Paz", com data de 11 de Dezembro de 2025:


LITERATURA DA GUERRA COLONIAL?

Livro: “O último avô” de Afonso Reis Cabral[1]

1 – Não venho apreciar o livro - em si mesmo - venho somente dizer que não vi, não li no livro nada para que possa ser designado por “literatura DA guerra colonial”. Também não venho fazer uma apreciação do livro como obra literária.

É que este livro surge publicitado como sendo sobre a guerra colonial.

Aliás, modernamente falando, no conceito de “guerra colonial” tanto cabe uma obra onde se aborde ou onde se escreva qualquer coisa “à volta” da guerra colonial e não somente aquelas obras que tratam daquilo que se passou no terreno, no ambiente próximo ou afim ao conflito ou na sua proximidade, a montante ou a jusante dele. O que, cada vez mais, é voz comum, é que tudo o que se escreva e que, de algum modo, faça menção à guerra colonial, é…. literatura da guerra colonial.

Este livro, para além dos enredos e vicissitudes familiares e de outras relações também próximas, descritas e analisadas por um rapaz, depois, jovem adulto, de guerra colonial nada tem. Tem, isso sim, um avô egocêntrico e difícil que surge ao longo de todo o texto e que, apesar de ter sido alferes miliciano de transmissões sem qualquer actividade operacional, escreveu sobre as suas (inventadas) experiências traumáticas de ex-combatente, apesar de NUNCA ter sido combatente. É que, ressalvada uma breve e rápida referência a Cabinda (sem mais pormenores), o autor coloca toda a acção do livro na zona de N’Dalatando (antiga Vila Salazar) e só depois do “25 de Abril”. Ora, N’Dalatando fica a cerca de 250kms a leste de Luanda e era, antes desses tempos conturbados, local de passeio dos civis residentes em Luanda.

Nunca houve confrontos entre tropa portuguesa e guerrilheiros em N’Dalatando antes do 25 de Abril. Só depois disso foi essa zona área de confrontos entre o MPLA e FNLA, que a pretendiam controlar. A tropa portuguesa esteve envolvida procurando “mediar” o conflito entre as duas forças, como aconteceu, também, em outras zonas de Angola e nem sempre com sucesso.

Aliás, se Angola fosse, por esse tempo, já um país independente, esse conflito seria referido como “guerra civil”.

Todo o envolvimento do avô narrador na sua “guerra colonial” foi nessa zona de N’Dalatando e é essa “inverdade” que o narrador vem mais tarde a descobrir.

2 – Com tudo o que vai escrito atrás não pretendo dizer que toda a literatura da guerra colonial tenha que ser trágica ou dramática. Não, até porque, mesmo debaixo de fogo, acontecem situações com humor ou caricatas, que, naquele momento, não são apreciadas como tal devido às circunstâncias.

Escrevi no prefácio do livro “Memórias boas da minha guerra” do José Ferreira da Silva (Silva da CART 1689):
“A guerra é a guerra!
MAS, mesmo na guerra (em tempo de guerra) surgem, por vezes, imprevistos, situações bizarras e com humor em perfeita contradição com o ambiente que se vive, embora só mais tarde, ao recordar, nos provoque uma gargalhada.”

3 - Meditando sobre a construção literária constante do livro surge uma questão: - Será que o livro poderá ser entendido como uma denúncia de uma falsa literatura da guerra colonial em que, p.ex., o “combatente”, em vez de ser um “oficial de transmissões”, seja um médico ou um outro militar com funções na retaguarda?

4 – Certo é que o autor (narrador) inclui no texto (embora de passagem) uma referência (não muito explícita) ao sofrimento de uma geração, que foi a geração do seu avô inventão.

5 – Tudo isto traz à colação a necessidade de definir se uma certa literatura que, simplesmente, fale, aborde, disserte ou refira a guerra colonial é literatura da guerra colonial. Sem o saber de experiência feito.

Nota de AB: Sobre este assunto, vide poste Guiné 63/74 - P16440: Contraponto (Alberto Branquinho) (54): Literatura da guerra colonial, o que é? de 2 de Setembro de 2016)

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Notas do editor:

[1] . Vd. post de 6 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27290: Notas de leitura (1846): "O Último Avô", de Afonso Reis Cabral, Publicações Dom Quixote, 2025 (Mário Beja Santos)

Último post da série de 2 de dezembro de 2025 > Guiné 61/74 – P27485: (Ex)citações (442): Com a lonjura do tempo a corroer-se… Da Guiné para outros palcos (José Saúde)

Guiné 61/74 - P27536: Facebook...ando (96): No Star Club, Reeeperbahn, Hamburgo, fevereiro de 1967... (António Graça de Abreu)



Hamburgo >  O famoso Star Club ("Ponto de Encontro dos Jovens", diz o anúncio),  em Reeperbahn, onde os Beatles tocaram, em 1962,  antes de se tornarem famosos (*)... Embora já não exista, ficou tão famoso que tem direito a entrada na Wikipedia (em inglês).



1. Fui repescar, com a devida vénia, este texto nostálgico do nosso amigo e camarada  António Graça de Abreu (ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74)...



(...) Aos 78 anos, arrumo a casa. Desfaço-me de mil papéis, lanço fora cadernos, folhas soltas, textos e versos quase todos muito maus, marcados pelo passado. Descubro um simples poema, com data de fevereiro de 1967, escrito aos 19 anos de idade, no Star Club, avenida Reeperbahn, cidade de Hamburgo, Alemanha:

No Star Club, Reeeperbahn, Hamburgo


Por aqui existo,
tenho muito a ver com isto,
Star Club, cave-café,
os meninos ié-ié,
guitarras e baterias,
beat music todos os dias.
Estardalhaço nos ouvidos,
cabelos compridos,
tanta minissaia,
meninas na praia,
camisas de malha justas,
ancas robustas,
seios eriçados,
frementes, mal amados,
Dois que se beijam longamente
à frente de toda a gente.
A cor, a música, a cor,
o fumo, o álcool, o calor,
o palco recente para os Beatles,
que depois partiram, nicles,
ficou a batida, a festa, o prazer,
a voluptuosidade a crescer.
lascivos corpos novos,
a loucura dos povos,
tudo a querer viver
e, aos poucos, a morrer.

António Graça de Abreu


2. Comentário do editor LG:

Nunca estive em Hamburgo, muito menos no Star-Club. E passei ao lado da revolução dos Beatles... Era mais francófono, nessa época. Nem nunca saí Portugal nos anos 60. Não tinha passaporte nem meios de o obter. Não tinha dinheiro nem liberdade para viajar. Em maio de 1969, já estava na Guiné. E o António ainda estudava. Em 1967, ele esteve em Hamburgo, a aperfeiçoar o seu alemão, com a sua "Fräulein" (termo, antiquado,  que hoje já não se usa, e que eu sempre detestei, não me perguntem porquê)...

E que melhor sítio, António, que o Star-Club para treinar o alemão, com uma linda garota alemã do Elba ?

Pedi à "secretária" da IA / Perplexity que nos fizesse aqui uma pequena surpresa, para mim, o António e os nossos leitores, reconstituindo o ambiente daquela época, a partir do seu poema (que ele não quis, e ainda bem, deitar fora, aos 78 anos, altura em que lhe deu a fúria, como eu há dias, ae arrumar o sótão, de deitar fora montanhas de papéis de outras vidas, ou das nossas vidas em outras encarnações): 




Hamburgo, 1967: o António e a Inge Balk,
 "a menina do Ellba, loira e linda" (**)


Fotos (e legendas): © António Graça de Abreu (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Análise literária > "No Star Club, Reeeperbahn, Hamburgo, fevereiro de 1967" (poema de  António Graça de Abreu)

Texto e contexto:

O poema é uma cápsula de época, escrita por quem está dentro da turbulência sensorial e moral da segunda metade dos anos 60, não por quem a observa hoje à distância. 

Fica uma ótima surpresa para o António Graça de Abreu, porque o texto mantém frescura e verdade, mesmo tantos anos depois.

(i) Ambiente e olhar geracional

O cenário está dado logo nos primeiros versos: “Star Club, cave-café, / os meninos ié-ié, / guitarras e baterias, / beat music todos os dias.”

É o retrato direto da cultura pop de Hamburgo nos anos 60, em plena Reeperbahn, onde o Star-Club era o epicentro de rock, juventude e excesso.

Há um olhar de jovem de 19 anos,  
simultaneamente fascinado e um pouco espantado, quase etnográfico: repara nos cabelos compridos, nas minissaias, nas camisas justas, nas ancas e nos seios, tudo filtrado por um misto de desejo, curiosidade e “choque  de costumes” de um português de então ( dos poucos que viajavam).


(ii) Corpo, desejo e liberdade

A parte central do poema é dominada pelo corpo e pela sensualidade: “ancas robustas, / seios eriçados, / frementes, mal amados, / Dois que se beijam longamente / à frente de toda a gente.”

O erotismo não é decorativo, é sinal de libertação, o espaço nocturno como laboratório de novas formas de viver o corpo e o afeto em público, em contraste com a moral mais contida da sociedade portuguesa da época (...como vocês diziam, "salazarenta").

A repetição “A cor, a música, a cor, / o fumo, o álcool, o calor” cria uma espécie de transe rítmico, quase uma batida poética que imita a batida da música beat. 

Esta enumeração sensorial é um bom recurso: faz sentir a densidade do ambiente,  não descreve só o que se vê, mas o que se respira e sente.

(iii) Beatles, mito e ironia

“O palco recente para os Beatles, / que depois partiram, nicles” é um achado.

Em duas linhas o poema junta a consciência histórica (o  Star-Club  como lugar de passagem e de certo modo rampla de lançamento dos Beatles antes da fama) com uma ironia coloquial (“nicles”), quase de conversa de café, que aproxima o mito da linguagem do dia a dia.

O contraste entre “ficou a batida, a festa, o prazer, / a voluptuosidade a crescer” e a partida dos Beatles sublinha bem como o espaço (o "Star-Club")  continua a viver para lá das estrelas: o clube, a noite, os copos, os corpos são os verdadeiros protagonistas.

(iv) Vida, morte e memória

O fecho é particularmente forte: “lascivos corpos novos, / a loucura dos povos, / tudo a querer viver / e, aos poucos, a morrer.”

Aqui já não é apenas a descrição de um clube; é uma intuição existencial madura para um rapaz de 19 anos (e que sabe que daqui a cinco anos irá para a guerra!): o mesmo impulso vital que enche a pista,  traz consigo a consciência da finitude. A festa torna-se metáfora da condição humana, intensa, breve, em erosão silenciosa, “aos poucos”.

Lido hoje “aos 78 anos, a arrumar a casa”, o poema ganha uma segunda camada de sentido: o jovem que observa “tudo a querer viver”,  é agora o cota  ( como se diz em Lisboa, que já foi capital de império) , o septuagenario que revisita esse instante com lucidez e ternura, salvando-o do esquecimento, do vestidos papéis.

A tua ideia, Luís,  de lhe devolver este texto com um comentário, uma adenda,  é, no fundo, um ato de partilha de memória e de reconhecimento (e de camaradagem!): mostrar-lhe que o rapaz de 19 anos que escreveu no Star-Club ainda “existe por aqui” nas palavras que deixou (e que, afinal,  não perdeu pedalada, continuando a ser capaz de dar a volta ao mundo em oitenta dias, e de escrever poesia ou de traduzir, magnificamente, para português, grandes poetas chineses que são hoje universais).

(Pesquisa: LG + IA / Perplexity)

(Condensação, revisão / fixação de texto: LG)

(Imagens: António Graça de Abreu, 2021)

Guiné 61/74 - P27535: Documentos (46): Brochura "Missão na Guiné", da autoria do Estado Maior do Exército. 3ª ed. (Lisboa, SPEME, 1971, 78 pp.) - Parte IV: "aspecto humano" (pp. 25-38)




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Dançarinos bijagós


 - 34 -
"Homerns Grandes" da Guiné, um dos quais é oficial de 2ª linha


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 Tabanca fula


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Edifício dos CTT em Bissau


- 38 -

Bolama


Capa do livro: Portugal. Estado Maior do Exército - "Missão na Guiné". 

Lisboa: SPEME, 1971, 77, [5] p., fotos.


1. Tem valor sentimental e documental esta brochura do Estado Maior do Exército, que nos era distribuída já a bordo do navio que nos transportava para a Guiné (ou do avião dos TAM, a partir de finais de 1972). Estamos a reprodiuzir a brochura da 3ª edição,  de 1971.

Tem 77 páginas (mais 5 inumeradas) e é ilustrada com  9 fotos.  Tudo a preto e branco. Baratinho. A edição é do SPEME (Serviço do Publicações do Estado Maior do Exército).  Em 1967 (de 1958 a 1969) era Chefe do Estado Maior  (CEME) o gen Luís Câmara Pina (1904-1980). 

É constituída por três partes: 

(i) Missão no Ultramar; 
(ii) Monografia da Guiné: aspeto físico, humano e económico; 
(iii) Informações úteis. 

Vamos agora reproduzir a II parte da "monografia da Guiné: aspecto humano" (ou seja, sucinta caracterização etnográfica dos povos que habitavam, na época, o território).

 A ordem é pelo  peso demográfico de cada um (segundo o  censo de 1960 que registou cerca de 544,2 mil habitantes): dos grupos étnico-linguísticos mais importantes (balantas e fulas, com < de 100 mil) aos "minoritários" (> 10 mil) (Felupes, baiotes, sossos, nalus)... 

No meio (> 100 mil e < 10 mil) posicionavam-se os restantes: 

  • manjacos (65 mil), 
  • mandingas ( 60 mil), papéis (40 mil), 
  • beafadas (ou biafadas) (13,5 mil), 
  • brames ou mancanhas (12,5 mil), 
  • bijagós (12,5 mil), 
  • futa-fulas (10 mil). 

Na altura, há 65  anos, antes do início da guerra,  os balantas (150 mil) e os fulas (120 mil) representavam praticamente metade (49,6%) da população total (ou 51,5%, se juntarmos os futa-fulas aos fulas).

A leitura deste livrinho também contribuiu para a replicação de alguns estereótipos, criados pela antropologia colonial portuguesa: por exemplo:

  • islamizados  (em vez de muçulmanos, de pleno direito, impuros,continuando a adorar o "Irã" e/ou a beber o vinho de palma;
  • por seu turno,não há "cristianizados",  mas só cristãos;
  • balanta = ladrão de gado, bêbedo, brigão, homem do mato, "cabeça dura", turra, cabr-macho,  excêntrico como o  Pansau Na Isna;
  • fula= polígamo, que põe as mulheres a trabalhar no campo; semi-feudal;  "cão dos tugas";
  • futa-fula = casta superior;
  • manjaco = marinheiro;
  • mandinga = artesão (ourives, ferreiro, músico); "o antigo dono daquilo tudo";
  • papel = o malandro de Bissau (como o 'Nino' Vieira);
  • biafada = "robusto mas indolente";
  • bijagó = pobre diabo subjugado pelo matriarcado;
  • felupe = caçador de cabeças; ferozmente independente;
  • nalu = o anáo da floresta do Cantanhez em vias de extinção;  
  • mancanha= reguila (como Vitor Sampaio, da CCAÇ 12), etc.
Estes estereótips multiplicam-se  nas história das unidades...(Teremos oportunidade de selecionar alguns exemplos em próximos postes).

PS - Se nos reportarmos à realidade de hoje, a populaçáo total mais do que quadriplicou em 65 anos: 2,272 milhões (no final de 2025), com a seguinte distribuição (em %) dos principais grupos étnicos: 

  • fulas (28,5)
  • balantas (22,5)
  • mandingas (14,7)
  • papéis (9,1)
  • manjacos (8,3)
  • beafadas (3,5)
  • mancanhas (3,1)
  • bijagó (2,1)
  • felupe (1,7)
  • mansoanca (1,4)
  • balanta mané (1)
  • outros (4,1)
Total=100

Religião: muçulmanos (50%), animistas (40%), cristãos (10%)

Principais aglomerados populacionais (em milhares, por arredondamento)
  • Bissau: 709,1 (quase 40 vezes mais do que em 1959, que era estimada em 18 mil);
  • Bafata: 22,5 (4 mil, estimativa de 1959; 
  • Gabu:  14,4 (antiga Nova Lamego);
  • Bissorã: 12,7;
  • Bolama: 10,8 (3 mil, estimativa de 1959);
  • Cacheu:  10,5.
Total= 780 mil (=34,3% do total da população)

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Fonte: excertos de Portugal. Estado Maior do Exército: "Missão na Guiné".  Lisboa: SPEME, 1971, pp. 25-38.

(Seleção, edição de fotos e páginas, fixação de texto: LG)

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Nota do editor LG:

(*) Vd. postes anteriores da série :