Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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terça-feira, 23 de setembro de 2025
Guiné 61/74 - P27243: Parabéns a você (2419): Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto da CMD AGR 16 (Mansoa, 1964/66)
Nota do editor
Último post da série de 21 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27236: Parabéns a você (2418): José Macedo, 2.º Tenente Fuzileiro Esp (RN), DFE 21 (Cacheu e Bolama, 1973/74)
Guiné 61/74 - P27242: Felizmente ainda há verão em 2025 (37): Amarante, a princesa do Tâmega, a 30 km de Candoz, e onde a natureza, a história e a cultura se combinam na perfeição (Luís Graça) - III (e última) Parte
Foto nº 35 > Amarante > 5 de setembro de 2025 > Casa da Cadeia, agora “Lugar Saudade – Teixeira de Pascoaes” > Exposição temporária “Teixeira de Pascoaes: Entre Ruínas e Fantasmas”, dedicada à vida e obra do poeta-filósofo da saudade > Casa de Pascoaes, em Gatão : Teixeira Pascoaes com a mãe, uma irmã, uma sobrinha e um sobrinho-neto, se não erramos. (O solar, do séc. XVII, foi incendiado nas invasões francesas).
Foto nº 36 > Amarante > 5 de setembro de 2025 > Casa da Cadeia, agora “Lugar Saudade – Teixeira de Pascoaes” > Exposição temporária “Teixeira de Pascoaes: Entre Ruínas e Fantasmas”, dedicada à vida e obra do poeta-filósofo da saudade > Teixeira de Pascoais com a mãe e os irmãos. Ele era o segundo mais velho de sete irmãos. Na foto , está sentado ao lado da mãe com quem, de resto, sempre teve uma relação muito especial.
Foto nº 41 > Amarante > 5 de setembro de 2025 > Casa da Cadeia, agora “Lugar Saudade – Teixeira de Pascoaes” > Exposição temporária “Teixeira de Pascoaes" (...) > O poeta quando jovem, numa república, em Coimbra com mais colegas da universidade (c. 1898). Sempre detestou a boémia e o espírito coimbrão. Fez o curso de direito. Mas foram as letras a sua paixão.
Foto nº 46 > Amarante > 5 de setembro de 2025 > Casa da Cadeia, agora “Lugar Saudade – Teixeira de Pascoaes” > Exposição temporária “Teixeira de Pascoaes" (...) > Objetos do quotidiano: o bloco de notas, os óculos, a caneta de aparo... Sabemos que nunca usou caneta de tinta permanente...
Foto nº 49 > Amarante > 5 de setembro de 2025 > Casa da Cadeia, agora “Lugar Saudade – Teixeira de Pascoaes” > Exposição temporária “Teixeira de Pascoaes" (...) > Biografia: 1877-1900
Foto nº 51 > Amarante > 5 de setembro de 2025 > Casa da Cadeia, agora “Lugar Saudade – Teixeira de Pascoaes” > Exposição temporária “Teixeira de Pascoaes" (...) > Biografia: 1913-1928
Foto nº 53 > Amarante > 5 de setembro de 2025 > Casa da Cadeia, agora “Lugar Saudade – Teixeira de Pascoaes” > Exposição temporária “Teixeira de Pascoaes" (...) > Algumas das obras do autor estão a ser reeditadas.
12 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27211: Felizmente ainda há verão em 2025 (32): Amarante, a princesa do Tâmega, a 30 km de Candoz, e onde a natureza, a história e a cultura se combinam na perfeição (Luís Graça) - Parte II
segunda-feira, 22 de setembro de 2025
Guiné 61/74 - P27241: Notas de leitura (1840): Mais perguntas do que respostas nestas fotografias em tempos de Império (Mário Beja Santos)

Queridos amigos,
Foi uma muito bem organizada exposição representada no Padrão dos Descobrimentos, em 2021, com o foco do uso da fotografia ou memória fotográfica no período do colonialismo moderno. Se o leitor, ao folhear agora o livro-catálogo, estiver à espreita de encontrar respostas para este vasto acervo de imagens que se prendem com expedições científicas ou de demarcação de fronteiras, exibição de cerimónias ou mostra de usos e costumes, imagens associadas à "missão civilizadora", com escolas, professores missionários, aprendizagem de artes e ofícios, reordenamentos, as alvoradas do desenvolvimento e, inevitavelmente, as lutas de libertação, os diferentes instantes do conflito. Um belo livro-catálogo, um auxiliar que pode contribuir para modelarmos as respostas.
Um abraço do
Mário
Mais perguntas do que respostas nestas fotografias em tempos de Império
Mário Beja Santos
Com base na exposição que ocorreu no Padrão dos Descobrimentos, em 2021, intitulada "Visões do Império", coordenada por Manuel Bandeira Jerónimo e Joana Fontes, nesse mesmo ano a editora Tinta da China produziu um catálogo que referencia plenamente as matérias versadas no evento expositivo. Escrevia-se então:
“O que nos conta uma imagem? A fotografia foi um elemento fundamental da história do moderno colonialismo português. Sem ela, a idealização e o conhecimento sobre os territórios coloniais, seus recursos e populações, teriam sido diferentes. As imagens fotográficas foram encenadas e comercializadas, com diferentes propósitos: alimentaram a imaginação da dominação colonial, concorrendo para a sua concretização, ajudaram a moldar uma visão do “outro” como essencialmente diferente, nos seus modos de vida, costumes e mentalidades, mas serviram também para denunciar a iniquidade e a violência da colonização, acalentando aspirações de um futuro mais humano e igualitário – sonhos esses com diferentes matizes e orientações políticas. Os seus usos no passado e os seus legados no presente foram e são vastos, heterogéneos e duradouros.
As fotografias expostas são provenientes de várias coleções particulares e de inúmeras instituições, como o Arquivo Nacional Torre do Tombo, a Fundação Mário Soares/Maria Barroso, o Arquivo & Museu da Resistência Timorense, o Arquivo Histórico de São Tomé e Príncipe ou Centro de Documentação e Formação Fotográfica, em Maputo e algumas serão mostradas ao grande público pela primeira vez.”
Numa secção do catálogo escreve o historiador Aniceto Afonso:
“As visitas que fazemos a este período da recente História de Portugal dos novos países confronta-nos com um mundo que deixou subitamente de existir, mas cujas marcas se escondem nas sociedades herdeiras, que continuam magoadas.
A pertinência de um olhar historiográfico abrange, na procura do equilíbrio perante a extensa literatura colonial anterior, em que os temas antes na penumbra se tornam obrigatórios, como a violência, a discriminação, o racismo, a ausência, o domínio, a exclusão, não pode, ainda assim, excluir as influências mútuas, as lutas comuns, a construção de relações de cooperação e a visão de um mundo novo, emergente do fim dos impérios.
A fotografia é um documento fascinante, porque nos permite ‘ver’ um instante que existiu. A partir daí, a fotografia suscita infindáveis perguntas. Coloca-nos num tempo e num lugar, mas não resolve a nossa relação com os acontecimentos. Ou seja, cada uma das fotografias que analisamos sugere-nos questões, dificilmente responde às nossas interrogações, mas não deixa de nos inquietar.”
Em consonância entre a exposição e o catálogo, o que temos agora para folhear é suscetível de levantar mais perguntas do que oferecer respostas. O que aparece em diferentes secções tem como espaço e lugar o Terceiro Império, um branco no colonato do Limpopo parece contrastar com um operário negro moçambicano, isto como chamada de atenção para um vislumbre de uma História que tem pluralidade de visões, em todos os domínios abarcados na exposição. Logo as expedições, que podem até a ver com a delimitação de fronteiras, estudos geológicos, até curiosidades de um tempo em que se acreditava haver raças superiores e inferiores. Há os usos e costumes, destaque para as imagens que mostram o ‘gentio a civilizar-se’; e há o trabalho forçado que veio substituir a escravidão, como Manuel Bandeira Jerónimo analisa a propósito do cacau, por onde andaram chineses:
“Na viragem para o século XX, o caso do ‘cacau escravo’ em S. Tomé e Príncipe, alimentado pelo transporte forçado de milhares de trabalhadores negros oriundos sobretudo de Angola, mas também de Moçambique e até da China, foi um dos mais ampla e acerbamente debatidos. A situação acicatou o nacionalismo imperial, tão característico da época, alimentando teses mais ou menos conspirativas sobre a cobiça e as ambições estrangeiras (estiveram envolvidos missionários, sobretudo protestantes, industriais do cacau como os Cadbury, jornalistas, médicos e autoridades públicas). A fotografia assumiu um papel central, as imagens captadas serviram diversos propósitos: eram as ‘provas’ da ‘civilização’ contra as ‘provas’ da ‘selvajaria civilizada’ do colonialismo português e europeu.
Não faltarão imagens do que passou a ser designado como grandes operações de pacificação, a potência colonial trazia a administração, um posto médico ou de saúde, a escola missionária. Brancos de um lado, indígenas do outro, emergem no trabalho, em colonatos, em colheitas, nas escolas, como profissionais secundários na saúde, os missionários ganharão aqui relevo; com a chegada das administrações e com os planos das infraestruturas, lança-se igualmente a operação dos reordenamentos, fala-se em progresso social e do desenvolvimento, são expressões que acompanham a chamada ‘missão civilizadora’; dá-se a miscigenação cultural, criam-se bandas, grupos étnicos de bailado, emissões de rádio, há uma cidade para brancos e civilizados, cercada de musseques, onde vivem os indispensáveis para o funcionamento da indústria e do comércio; inopinadamente e com escassos anos de diferença, estalam as guerras de libertação, um regime imperial como o Estado Novo não estava preparado para aceitar a mudança dos tempos".
Como observa Afonso Dias Ramos:
“As insurreições eram apresentadas como primeiro e não último recurso dos rebeldes e, durante a guerra, esta lógica visual havia de ser levada ao cúmulo de converter a violência da ocupação colonial em simples e legítima autodefesa. Procurava-se extrair o máximo de capital político da exibição pública sensacional dos cadáveres das vítimas, utilizando fotografias escabrosas para justificar a guerra na Organização das Nações Unidas, mobilizar a sociedade civil, intimidar rebeldes e silenciar críticos. A intensa circulação das imagens impublicáveis focava-se no como e não no porquê dos ataques. Fixava-se nos seus aspetos irracionais para inviabilizar ideias políticas e invalidar as críticas à resposta desproporcional. Justapunha-se a retratos dos soldados como meros agentes da paz, civilização e ordem. Ao longo deste conflito, a brutal guerra foi sendo gradualmente rasurada da imprensa, enquanto as fotografias se iam reduzindo às inócuas vistas dos embarques e desembarques, entre os quais nada parecia ocorrer, até também estas serem proibidas, em 1969.”
Um livro-catálogo de 2021 que mantém flagrante a atualidade. Livro para guardar na estante.
_____________
Nota do editor
Último post da série de 19 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27231: Notas de leitura (1839): A Festa do Outono de 1956 no Campo Grande, eu estive lá (Mário Beja Santos)
Guiné 61/74 - P27240: No céu não há disto: Comes & bebes; sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (49): Peixinhos fritos, no Douro Bar Petiscaria, junto à Barragem do Carrapatelo; à mesa, os fantasmas do Zé do Telhado e do Serpa Pinto
Fotos (e legendas): © Luís Graça (2025). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Cinfães, em matéria de viticultura, pertence à subregião de Baião, Região Demarcada dos Vinhos Verdes... enquanto a nossa Quinta de Candoz pertence à subregião de Amarante... Em São Cristóvão de Nogueira, na margem esquerda do rio Douro, junto à Barragem do Carrapatelo, fui lá descobrir duas coisas que não há no céu:
(i) peixinho do rio Douro (!), frito, incluindo como entrada umas "enguias fritas" que estavam simplesmente "divinais" (parece que a enguia-.europeia já estava a voltar ao Carrapatelo em 2022, diz a EDP!)
(ii) um vinho branco, de autor (!), "Terras de Serpa Pinto"...
Éramos seis (cinco mulheres, incluindo a "chef" Alice, mais eu)... As entradinhas foram uma travessa de peixinhos fritos, juvenis, só com molho de limão e salsa, e mais um prato de enguias fritas; "peixe-rei", disse-me a simpática jovem senhora que nos serviu à mesa, cá fora, sob um toldo, em dia de calor, com vista para a albufeira e a Casa do Carrapatelo (na outra margem).
E quem diz Casa do Carrapatelo diz logo ( ou pensa no) Zé do Telhado, cujo fantasma continua a povoar a serra de Montedeiras e estas terras das bacias do Douro, Tâmega e Sousa (**).
O prato principal foi uma travessona de peixe frito do rio (lúcio, boga e outros), acompanhada de um tacho de arroz de tomate e feijão...
Bebemos duas... garrafas do "Terras de Serpa Pinto". Mais o pão, a salada e os cafés. No final, pagámos 110 euros, com gorjeta.
Seguramente que no céu, condomínio de luxo, será mais caro (***)...
Aqui fica o nome e o endereço deste achado:- a boga (Pseudochondrostoma polylepis) é muito apreciada frita, crocante por fora, é tradicional nas margens do Douro;
- o barbo (Barbus bocagei) também pode ser preparado frito ou em caldeiradas, sendo consistente e saboroso;
- a enguia (Anguilla anguilla), embora menos comum, também é servida;
- peixinhos do rio (vários ciprinídeos, da família da Carpa, de pequeno tamanho), usados para frituras rápidas, apresentados, com limão e salsa, e normalmente acompanhados com arroz de tomate ou migas.
Os peixes nativos de maior destaque são o barbo, a boga e a enguia:
- Barbos (Barbus spp.);
- Boga (Pseudochondrostoma polylepis);
- Enguia (Anguilla anguilla).
A carpa (Cyprinus carpio) não é nativa. Entre os peixes exóticos capturados, nomeadamente na pesca desportiva e artesanal, estão: achigã, lúcio-perca, carpa e pimpão, sobretudo nas zonas profundas da albufeira:
- o siluro (Silurus glanis), o grande peixe-gato europeu, predador de topo, pode chegar a medir mais de 2 metros e pesar até 100 kg: é uma ameaça crescente para o rio Douro;
- o achigã (Micropterus salmoides) é outra "praga", sendo originário da América do Norte: é um predador voraz de ovos e juvenis de peixes nativos;
- o lúcio (Esox lucius): espécie da Europa Central e Norte da Ásia, foi introduzida para a pesca desportiva.
Outras espécies exóticas que representam ameaça ao ecossistema:
- Lúcio-perca (Sander lucioperca)
- Ruivaco (Rutilus rutilus)
- Alburno (Alburnus alburnus)
- Pimpão (Carassius carassius)
3. A EDP diz que está a fazer a monitorização das eclusas de peixes no Douro (esperemos que não seja "show-off"). É um mecanismo que facilita a migração de peixes no rio; os resultados recentes são positivos e mostram que há espécies nativas a transpor as barragens; o projeto da EDP esteve em destaque na celebração do "World Fish Migration Day", em 2022.
Num artigo publicado há mais de 3 anos, a EDP Global disse:
(...) Criadas para facilitar a passagem de peixes, as eclusas são um mecanismo essencial para garantir a biodiversidade e a proteção das espécies fluviais.
Os resultados deste projeto demonstram, por exemplo, que uma espécie migradora em risco de desaparecimento, como é o caso da enguia-europeia, tem utilizado as eclusas para chegar à albufeira da Valeira, a 145 quilómetros da foz do rio Douro.
O projeto também permite detectar a presença de espécies invasoras (como a achigã ou o peixe-gato-negro).
(*) Alexandre Alberto da Rocha de Serpa Pinto,(1846-1900), militar, explorador e administrador colonial, é filho de Cinfães.
domingo, 21 de setembro de 2025
Guiné 61/74 – P27239: (Ex)citações (438): Noite de petisco: cabrito assado no forno (José Saúde, ex-fur mil op esp / ranger, CCS / BART 6523, Nova Lamego, 1973/74)
1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.
Noite de petisco Cabrito assado no forno: momentos inesquecíveis
Camaradas,
A linha do tempo vai, vagarosamente,
alimentando uma infinidade de prazeres onde a nossa juvenilidade proporcionava
um mar de gigantescas emoções aquando da comissão militar por terras da Guiné.
Eramos jovens, com as mentes a enviarem-nos para sensatos sonhos, mas para
muitos dos nossos camaradas esses mundos dos sonhos quedaram-se em
maquiavélicas crueldades que a guerrilha proporcionava.
Porém, existiram momentos inesquecíveis
que nos embalavam para uma imensidão de alegrias quando a hora passava pelo refrescar
as gargantas e alimentar estômagos já fatigados de refeições servidos em
“pratos de loiças cuja criação tinha a marca de Bordalo Pinheiro e de talheres
prateados”. Claro que estes utensílios que aqui menciono, entre ásperas, são
meras ficções, dado que o nosso 2º sargento Martins, o homem que orientava a
nossa messe, servia a rapaziada com pompa e circunstância, quer na qualidade de
refeições, quer no conjunto de vasilhames que colocava nas mesas. O sargento
Martins, um homem de Elvas, fazia jus em colocar-nos na mesa bons repastos,
atendendo à circunstância então deparada. O pessoal não reclamava e toca a
encher o “bandulho”.
Hoje, recorrendo às muitas fotografias que
armazenei, lá vou puxando pelas imagens que arrumo, com paixão, no meu baú,
recordando, com saudade, os tempos em que a nossa camaradagem se fixava num elo
comum onde amizade obviamente proliferava.
Sabemos, pois é irreversível, que um dia viajaremos para uma outra plenitude, mas dessa antiga expedição, forçada, transportaremos connosco vivências que o tempo jamais ousará apagar. Guiné, sim a Guiné, aquela terra vermelha por nós calcorreada, foi palco das mais dispares crueldades. Mas, por outro lado, fica a razão que aqui vos deixo, sobrando o afirmar que o petisco fora feito pelos cozinheiros do rancho geral.
Estava divinal! O jovem animal foi
comprado na tabanca e não recordo quantos pesos terá custado.
O banquete teve lugar na cantina dos soldados e assado no forno com o saber do
mestre padeiro da unidade. O rapaz nunca se refutou a pedidos desta estirpe.
Estava sempre disponível! A sua presença no repasto assumia-se como
imprescindível e o seu trabalho reconhecido.
Uma mesa comprida, bancos alongados, uns
sentados, outros em pé e com a inevitável presença das velhas sagres, a
rapaziada comeu e bebeu que se fartou registando-se cenas hilariantes durante o
beberete. O Santos, com um sorriso fechado, assemelhava-se a um emigrante desconhecido
que parecia não entender o motivo da festança. O seu pensamento levava-o,
talvez, a meditar num levantamento de uma mina anticarro que poderia,
eventualmente, ser o seu próximo destino. O Rui, vagomestre da Companhia,
mostrava os seus dotes de comediante. O ranger Rui, ao meu
lado, desfazia-se com as brincadeiras. O Godinho, em frente, ria que nem um
doido. Eu, já toldado, apontava a cara do homem de Coimbra e ele presenteava-me
com caretas que faziam rir todo o grupo em período de dar ao dente.
A noite de petisco - cabrito assado no
forno com batatas - foi sobejamente regada. Uma festança que conheceu outros
capítulos. A guerra naquela noitada foi outra: comida e bebida que chegou,
sobrou e regalou os jovens combatentes.
Aquele pessoal da cantina dos soldados era
formidável. Um pedido nosso – furriéis – era logo timbrado com um profundo
SIM.
Ao sair da guerra do comestível, e já um
pouco desequilibrado com excesso de álcool, cai num buraco feito à entrada da
cantina que, não obstante o seu aviso de alerta, me deixou sequelas numa perna.
Aquilo a que chamávamos buraco era um
abrigo feito propositadamente por antigos camaradas que por ali tinham passado
e que se abrigavam dos ataques noturnos do IN. Um símbolo que a rapaziada
fazia jus em preservar. O local era conhecido, mas naquela noite
surpreendeu-me. Fui arrastado pelo devaneio de umas cervejas a mais e de um
inoportuno ziguezaguear que me levou a calcorrear por um trilho referenciado,
mas atempadamente esquecido.
Sobrou a maravilhosa noite de convívio de
homens que viviam em pleno palco de guerra!
Abraços,
camaradas
José Saúde
Fur Mil OpEsp/RANGER, CCS / BART 6523
___________
Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
30 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 – P27169: (Ex)citações (437): Por aí, ouvindo, vendo, lendo, analisando e concluindo. (José Saúde)
Guiné 61/74 - P27238 : As nossas geografias emocionais (58): Rio Douro: Nos caminhos do Zé do Telhado: Barragem e Casa do Carrapatelo
Guiné 61/74 - P27237: Felizmente ainda há verão em 2025 (36): Alcunhas (populares) e cognomes (reais)
Guiné > Região de Tombali, algures > Maio de 1973 > Costa Gomes, Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas, dá início, a 25 de maio de 1973, a uma visita ao Comando Territorial Independente da Guiné (CTIG), para se inteirar do agravamento da situação militar e analisar medidas a tomar com vista a garantir o espaço de manobra, cada vez mais apertado, do poder político em Lisboa.
Na foto, vê-se o Gen Costa Gomes à direita de Spínola, falando com milícias guineenses. Foto do francês Pierre Fargeas (técnico que fazia a manutenção dos helis AL III, na BA 12, Bissalanca), gentilmente enviada pelo nosso camarada Jorge Félix (ex-alf mil pil heli, BA12, Bissalanca, 1968/70).
Foto (e legenda): © Pierre Fargeas / Jorge Félix (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
- Salazar, o "Botas";
- Humberto Delgado, "General sem medo";
- António Spínola, general (e depois marechal) , "Caco", "Caco Baldé", "Bispo", "O Velho", "Homem Grande de Bissau";
- Francisco Costa Gomes, marechal e presidente da República, "Rolha";
- Mário Soares, "Bochechas";
- Ramalho Eanes, general e presidente da República, "Cara de Pau";
- Otelo Saraiva de Carvalho, "Otelo";
- Salgueiro Maia, "capitão de Abril";
- Aníbal Cavaco Silva, "Cavaco";
- Durão Barroso, “Cherne”;
- Amália Rodrigues, “A Rainha do Fado”;
- Zeca Afonso, “Zeca”;
- Eusébio, “A Pantera Negra”;
- Cristiano Ronaldo, “CR7”;
- José Mourinho, “The Special One”, etc.
- Gordo, Cruel, Louca, Casto ...
- Venturoso, Príncipe Perfeito, Bravo, Conquistador...
- Desejado, Piedoso, Capelo...
- Gordo/Gafo (D. Afonso II), Piedosa/Louca (D. Maria I); Justiceiro/Cruel (D. Pedro I); Magnânimo / Freirático (D. João V).
(i) Diferença entre cognome e alcunha
-
Cognome (do latim cognomen) é um epíteto que se cola ao nome próprio ou ao título de uma figura histórica, geralmente usado em contexto oficial, literário ou historiográfico (D. Afonso Henriques, "o Conquistador");
-
Alcunha é um termo mais popular, frequentemente de origem oral e não-erudita, podendo ser depreciativo, humorístico ou simplesmente descritivo (D. Afonso, o Gordo"; D. Maria I, a Louca").
A alcunha (ou "apelido", no Brasil) é, na sua essência, de origem popular e informal. Nasce da convivência social, do dia a dia, e é atribuída por familiares, amigos ou até inimigos, para destacar uma característica marcante de um indivíduo ou um episódio, mais ou menos anedótico, da sua história de vida.
Já o cognome real detém um peso histórico e uma função de identificação e até de homenagem que transcendem a informalidade e a temporalidade.
Estes cognomes podiam exaltar as virtudes e os grandes feitos do monarca, como é o caso de D. Afonso Henriques, "O Conquistador", ou D. Dinis, "O Lavrador", ou D. João II, o "Príncipe Perfeito".
É curioso que alguns monarcas tenham dois ou até mais epítetos:
-
D. Afonso II → "O Gordo" / "O Gafo" (provavelmente sofreu de lepra, daí "gafo", leproso).
-
D. Maria I → "A Piedosa" / "A Louca" (o primeiro pela sua religiosidade, o segundo pelo declínio da saúde mental).
-
D. Sancho II → "O Piedoso" / "O Capelo" / "O Crasso" / "O Indolente" (dependendo de quem escrevia sobre ele).
Isto mostra que não havia unanimidade: um mesmo rei podia ser visto de forma oposta por diferentes grupos sociais, facções políticas ou cronistas, no seu tempo ou após a sua morte.
(iiI) Quem atribuía os cognomes?
- Eram frequentemente atribuídos postumamente por cronistas, historiadores ou pelo próprio povo, com base no balanço do seu reinado.
- Durante a vida do rei: algumas alcunhas podiam surgir no seio do povo ou mesmo da corte, refletindo a aparência física (ex.: "o Gordo", D. Afonso II) ou o comportamento (ex.: "o Piedoso", D. Sancho I).
Depois da morte: muitos epítetos foram fixados ou até inventados por cronistas, nobres ou historiadores, com base na 'reputação" ou "imagem" deixada pelo rei; por exemplo, Fernão Lopes e outros cronistas do século XV tiveram enorme peso em consolidar certas designações.
Em certos casos, a atribuição podia ter uma intenção política: enaltecer a memória de um rei (ex.: "o Venturoso", D. Manuel I), ou, pelo contrário, manchar a imagem de alguém (ex.: "o Cruel", D. Pedro)
O cognome de D. Afonso II, que reinou entre 1211 e 1223, é um dos mais citados quando se aborda a natureza por vezes "depreciativa" de certas designações.
No entanto, é crucial entender que, embora o cognome "O Gordo" possa ter uma conotação negativa nos dias de hoje, na época, a sua função primordial era a de o distinguir dos seus antecessores e sucessores, dentro das quatro dinastias tanto mais que haveria vários Afonsos...
Assim, o seu cognome, embora baseado numa característica física, serve como um "marcador" histórico que, indiretamente, reflete a natureza do seu reinado; um monarca mais "sedentário", menos "belicoso", mais focado na governança do que na matança...
(v) Em suma, a diferença fundamental reside na intencionalidade e na formalização:
Característica | Alcunha | Cognome Real |
Origem | Popular, informal, espontânea, viva | Histórica, formal e atribuída por cronistas ou pela posteridade; fixado pela escrita, oficializado pela tradição histórica, |
Propósito | Identificação informal, muitas vezes com humor, acinte, crítica ou afeto. | Distinção e identificação formal de um monarca na linha sucessória e na história. |
Caráter | Pode ser carinhosa, neutra ou marcada- mente pejorativa. | Frequentemente enaltecedor, mas por vezes descritivo de características físicas, de personalidade ou de comportamento, mesmo que negativas. |
Perpetuação | Dependente do uso contínuo no círculo social do indivíduo. | Consagrado pela historiografia e pelos registos oficiais. |
Portanto, ao nos referirmos a D. Afonso II como "O Gordo", não estamos a usar uma simples alcunha (depreciativa), mas a evocar o seu cognome (histórico), uma designação que, apesar da sua natureza, se tornou a sua identidade formal nos anais da história de Portugal.
Quanto ao "nossos" dois marechais, Spínola, o "Caco", e Costa Gomes, o "Rolha", é impossível saber como é que a História, daqui a 50 anos, os vai chamar ou "tratar", embora não tenham sido reis (apenas presidentes da República no pós -25 de Abril).
PS1- Em Portugal, os santos, sobretudo os mais populares, também têm alcunhas, a par de cognomes, como os reis, embora não de maneira tão sistemática. Por exemplo;
Santo António de Lisboa (mas também de Pádua), conhecido como “o casamenteiro”, em Portugal, mas também como “o santo das coisas perdidas” (o povo recorre a ele quando perde alguma coisa);
São Gonçalo de Amarante: rivaliza com o António, é conhecido como o “santo casamenteiro do Minho” (embora seja mais os das "velhas" e das "encalhadas"):
- Santiago de Compostela, o "Mata-mouros",
- São Pedro, o Apóstolo, o Pescador, também conhecido pela alcnha de "porteiro do céu", o que det as chaves do paraíso;
São João Evangelista, o Apóstolo Amado;
São Francisco de Assis;
- São Lucas, o Médico; etc.
Neste caso, as alcunhas estão ligadas à devoção popular, mas também aos usos e costumes, enquanto os cognomes surgem muitas vezes por via da região ou cidade de origem ou, então, por uma qualidade ou feito especial atribuído ao santo (profissão, título, grandeza espiritual, milagre).
PS2 - Não se pense que a atribuição de um cognome pouco honroso ao rei é exclusivo da gente lusitana.. Uma rápida volta pela história das monarquias que nos estão mais próximas (Espanha, França, Inglaterra), também corroboram a tendêrncia. Aqui vai uma lista de alguns exemplos injuriosos ou depreciativos de monarcas estrangeiros:
- Espanha > Henrique IV (1425–1474): chamado “o Impotente”, devido à sua incapacidade física e política; | Carlos II (1661–1700), conhecido como “o Enfeitiçado", por causa da sua saúde debilitada e perturbações mentais, atribuídas a feitiçaria;
- França > Carlos VI (1368–1422), “o Louco”, devido a surtos de insanidade que marcaram o seu reinado; | João II de França (1319–1364), chamado “o Bom, mas em sentido irónico (foi desastroso na guerra contra os ingleses e acabou prisioneiro);
- Inglaterra > Etelredo II (968–1016), “o Despreparado” ("the Unread"); | João de Inglaterra (1166–1216), o“Sem Terra”, porque herdou quase nada do pai; ou ainda o “João Sem Nada de Bom”; sem esquecer Eduardo II (1284–1327), muitas vezes referido como “o Efeminado” ou “o Incompetente”, pela sua falta de capacidade militar e dependência de favoritos.
(Pesquisa: LG + Assistente de IA / Gemini, ChatGPT)
(Condensação, revisão / fixação de texto, negritos: LG)