Rua de Brunhoso
1. Em mensagem do dia 28 de Fevereiro de 2017, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), enviou-nos mais um texto sobre Brunhoso, desta vez falando sobre as casas e as gentes.
Brunhoso há 50 anos
12 - As casas e as gentes
Em Brunhoso há ruas inteiras onde não vive ninguém, nem passa vivalma. Nas Fontainhas a maior parte das casas de todas as ruas estão vazias, sem vida, fechadas e somente guardam recordações de gente que partiu há décadas para fugir a uma vida de muito trabalho, sacrifícios e privações.
Nas outras zonas da aldeia, sobretudo as menos centrais, o panorama é idêntico, vêem-se casas simples e pequenas que nos primeiros anos da diáspora para terras de França, os chefes de família, quando o dinheiro lhes começou a sobrar para esses “excessos”, procuraram melhorar em comprimento ou altura para dar mais conforto às suas famílias numerosas. Depressa se deram conta de que essas soluções em espaço e conforto não eram o que procuravam.
Com o tempo e mais poder económico, passaram a construir ou comprar casas maiores na aldeia e também, por vezes, por influência dos filhos já mais crescidos, na vila ou nas grandes cidades. Dispersas pelo casario, igualmente desabitadas, ou com um ou dois habitantes nostálgicos ou resistentes ao vendaval dos tempos que tem dispersado as gentes para muitos destinos, vêem-se as casas dos lavradores “remediados”. No geral reconhecem-se por terem, no primeiro andar da frontaria, duas janelas e ao centro uma porta com sacada. Tal como a “casa grande” da D. Adelaide, que já retratei nestas crónicas, são casas construídas na mesma época, com um estilo mais moderno, embora mais modestas e menos espaçosas.
Casa de lavrador remediado
Ainda existem algumas casas em ruínas, ao estilo antigo, com escaleiras (escadas em Trás-Os-Montes, tal como na Galiza) exteriores, de pedra, com varandas de madeira. Nas décadas de sessenta e setenta, quando todos abandonavam a aldeia à procura de melhores condições de vida, os lavradores fizeram um derradeiro esforço, que as condições sempre débeis duma agricultura de subsistência em decadência acelerada pela saída dos seus melhores trabalhadores, lhes permitiram, para garantirem aos filhos alguma instrução e a possibilidade de procurarem também fora da aldeia alguma hipótese de futuro. Foram enviados para seminários, onde o ensino era muito mais barato mas sendo os padres demasiado exigentes e os seminários claustrofóbicos, a maior parte deles pouco se demoravam por lá. Foram depois mandados para colégios o que obrigou os pais a um esforço financeiro acrescido.
Casas antigas com escaleiras e varanda
Os lavradores, para aguentar esse esforço pouco habitual no passado, venderam terras por bom preço aos emigrantes, desejosos por adquirir esses bens, quando já tinham amealhado muito dinheiro. Um mau investimento de que se irão dar conta brevemente, quando descobrem que o seu trabalho duro e mal pago era afinal a mais valia dessas terras e sem a força do seu trabalho não tinham rentabilidade. Tiveram porém um prazer enorme em serem proprietários de hortas, olivais e grandes terras de cultivo que tinham trabalhado tantos anos para outros e que passavam a ser deles e nessa transmissão de bens eles sentiram-se renascer e crescer em poder e auto-estima.
Hoje, mesmo que muitas dessas terras estejam incultas, como a maioria das da aldeia, são propriedades deles, a terra passou a estar mais dividida e quem viveu e cresceu no meio dela tem sempre a esperança que nalgum futuro dos seus descendentes ela volte a tornar-se produtiva e útil.
Os baldões da vida e da fortuna pelos caminhos do Mundo levaram-os a uma análise e compreensão dialéctica das relações económicas e sociais muito diferentes da que tinham quando estavam limitados ao pequeno mundo onde nasceram e foram criados, sem horizontes ou aspirações para além de um trabalho duro para garantir a sobrevivência. Passaram a ser proprietários de boas casas e de terras, deixaram de ser humildes e passaram a exigir a quota de dignidade a que todos os homens têm direito. Por sua vez os velhos lavradores, os que duramente trabalhavam as terras muitas vezes também pagando jeiras a trabalhadores sem terras, morrem após esse derradeiro esforço de garantir algum futuro aos filhos, depois de verem que a terra já não lho podia garantir. A morte deles antecede o abandono progressivo dos campos e a morte anunciada há décadas dessa agricultura tão antiga que com poucas variantes reproduzia a agricultura das antigas civilizações do Mediterrâneo, do tempo de Jesus Cristo, dos romanos, dos gregos, dos antigos egípcios e outros. Amaram essas hortas, esses campos de trigo e centeio, os olivais, os sobreirais, os lameiros e regadas (campos de pasto) com o mesmo amor com que amaram as suas mulheres, os filhos, os netos, os pais e os avós, porque eles, como Xamãs da terra-mãe, estiveram sempre ligados aos seus mistérios, à sua renovação, ao milagre das colheitas do trigo, do centeio, do azeite, do vinho, das batatas e do linho.
Havia uma relação profunda entre o respirar da Terra ao ritmo das estações do ano e a vida destes homens dificilmente traduzível em palavras, porque a Terra não se exprime por palavras e os lavradores sempre na sua companhia habituaram-se a ser parcos no seu uso. A relação primordial do homem, aquela que mais o humaniza é essa relação que estabelece com a natureza e com os seus elementos. Com a morte deles e com o fim dessa agricultura milenar, perderam-se milhares e milhares de páginas, nunca escritas, de sabedoria, sobre essa comunhão tão estreita entre os homens e a natureza. Isto poderia levar-nos a fazer considerações sobre a agricultura moderna, mecanizada, intensiva, híbrida, de laboratório, industrializada. Para não alongar demasiado esta crónica deixo isso à reflexão de cada um.
A casa grande que se retrata, reproduz uma casa de lavrador rico construída na primeira metade do século XIX. Desse século havia outras casas grandes, talvez cinco, propriedades dos lavradores ricos, que tinham anexas ou próximas as lojas do gado, os palheiros, as curraladas e por vezes as casas dos criados, quando não dormiam na loja dos animais. Essas casas grandes, de paredes de xisto cobertas com cal, com mais de um metro de largura, foram construídas num estilo incaracterístico, somente com a preocupação de serem espaçosas e sólidas. Duas dessas casas recordo-me que foram transformadas e em parte modernizadas para um estilo mais actual.
Casa de lavrador rico
Curralada de lavrador rico, de 1817
Outras duas foram demolidas por compradores que construíram casas novas nesse espaço. Quem as construiu e quem primeiro as habitou, é hoje uma incógnita pois a história não escrita da terra, aquela que se transmite pelo falar das gentes de geração em geração, diz-nos que todas as famílias de grandes proprietários de terras que dominaram a aldeia a maioria dos anos do século vinte eram originárias doutras povoações mais ou menos distantes.
Casa antiga
Quando eu era criança ainda, conheci a família dos Pereiras, dois irmãos e uma irmã, mais velhos do que os meus pais, que não deixaram herdeiros, de quem se dizia que eram os descendentes da família mais rica de Brunhoso. Ao tempo eram lavradores modestos, muito discretos, educados e duma delicadeza extrema no trato com toda a gente. Dos antepassados deles se dizia que com uma lapada (o mesmo que pedrada) de um homem, se percorria toda a área agrícola da freguesia sempre a atingir uma propriedade deles.
Terá havido um padre Coelho, homem muito rico, dono da "Casa das Feiticeiras" que pelo seu estilo senhorial penso que terá sido construída pelos Távoras, e que a família dele terá adquirido quando essa família poderosa caiu em desgraça. Com a morte do padre nos finais do século XIX sem deixar herdeiros, os seus bens terão sido adquiridos (ou herdados?) pela família Neves Ferreira, originária da aldeia de Castelo Branco.
Fala-se também da família Brás, outros grandes proprietários, com raízes antigas na aldeia, que terão vendido à família Felgueiras e a outras famílias, sendo o mais conhecido, por ser o mais recente ainda com algum poder económico, que terá já morrido nas primeiras décadas do século vinte, o João Brás, que acabou por vender a quase totalidade dos bens que restavam da família. As causas que provocavam a ruína dessas família ricas, que levou a que tivessem que vender todos os bens a famílias provenientes doutras freguesias do concelho terão sido as seguintes: má administração, jogo, dificuldade em escoar os produtos agrícolas, envelhecimento ou indolência das novas gerações habituadas a viver sem trabalho e sacrifícios. A administração dessas casas agrícolas sabe-se que nem sempre era exemplar: no geral esses lavradores ricos não exerciam outra actividade agrícola a não ser supervisionar o trabalho dos outros, serviço de que por vezes encarregavam feitores. Os filhos e os outros descendentes também raramente sujavam as mãos no trabalho da terra. Tinham que sustentar os filhos e a restante família que no geral nada produzia, tinham que pagar e alimentar criados e criadas e ainda pagar a muitos trabalhadores que contratavam para as colheitas e outros serviços.
Rua de Brunhoso
O escoamento dos produtos agrícolas nalguns anos era difícil e pouco rentável. O jogo de cartas a dinheiro, antes de Salazar tomar o poder era uma autentica praga disseminada entre os povos do interior, que destruía casas e fortunas. Salazar com leis drásticas e uma fiscalização muito rigorosa acabou com esse vício. O ditador, que sempre teve como um objectivo nacional que o país fosse auto-suficiente em produtos agrícolas através da criação dos Grémios e das Federações Agrícolas garantiu também o escoamento da maior parte dos produtos agrícolas com algum lucro, com bastante nalguns anos, para os lavradores.
O trabalho na lavoura a baixo custo, garantiu-o pela ausência de sindicatos, salário mínimo e segurança social. Aproveitou para tal o vazio laboral que tinha herdado da Monarquia e da Primeira República, reforçado com alguma vigilância discreta sobre possíveis tentativas de alteração da ordem vigente. Os grandes lavradores e até os médios conseguiram ter mais rentabilidade e estabilidade económica durante o Estado Novo enquanto os trabalhadores sem terra nada beneficiaram com essa política.
Francisco
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Nota do editor
Último poste da série de 12 de janeiro de 2017 > Guiné 61/74 - P16948: Brunhoso há 50 anos (11): Crasto, Fraga do Poio e Rio Sabor (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)
5 comentários:
Caro Francisco, como gostei do seu poste, falando da sua terra ele fala um pouco da terra daqueles que nascemos nas aldeias deste país que é o nosso.
Hoje desconhecido para a maioria das gerações mais novas, mesmo alguns dos mais idosos parece quererem ignorar, ou ter "medo" de falar do seu passado.
Sou um daqueles que preferencialmente gosta de ouvir falar da da nossa terra e da sua gente.
Obrigado um abraço
António Eduardo Ferreira
Camarada Francisco Baptista a tua narrativa sobre Brunhoso, penso eu pode ser transportada para quase todo o interior de Portugal como diz a moda alentejana que copiei no google (com a devida vénia)
Um abraço.
É tão grande o Alentejo
No Alentejo eu trabalho
Cultivando a dura terra,
Vou fumando o meu cigarro,
Vou cumprindo o meu horário
Lançando a semente à terra.
É tão grande o Alentejo,
Tanta terra abandonada!…
A terra é que dá o pão,
Para bem desta nação
Devia ser cultivada.
Tem sido sempre esquecido,
À margem, ao sul do Tejo,
Há gente desempregada.
Tanta terra abandonada,
É tão grande o Alentejo!
Trabalha homem trabalha
Se queres ter o teu valor
Os calos são os anéis
Os calos são os anéis
Do homem trabalhador
É tão grande o Alentejo,
Tanta terra abandonada!…
A terra é que dá o pão,
Para bem desta nação
Devia ser cultivada.
Meu amigo e camarada José Botelho Colaço, sempre tão atento e tão sábio, gostei muito do teu poema cantado à moda do Alentejo, que retrata bem o abandono em que o interior do país, se encontra, por causas diversas, entre norte e sul, já que dissecadas em vez de um comentário que irei fazer, escreviam um livro. As razões, a norte e a sul, como sabemos não serão sempre as mesmas.
Esforcei-me por encontrar algumas razões plausíveis, a norte, onde se situa a minha aldeia, por alguns conhecimentos históricos, por algumas deduções lógicas e por uma análise bastante estereotipada por influência de uma forte componente afectiva social e familiar. Porque gosto muito da História e quando jovem iniciei-me um pouco nessa ciência ou nesse ramo do conhecimento, como os eruditos lhe queiram chamar, aprecio muito o rigor histórico embora muitas vezes não o saiba cultivar. A análise que fiz sobre os nossos emigrantes, sobre os lavradores, médios ou ricos, sobre as políticas adoptadas pelos diferentes regimes políticos desde os fins do século XIX até à actualidade, sei que nem sempre obedecem a esse rigor histórico. Tive a esperança que alguém, um amigo, um camarada, com mais conhecimentos, do que eu, nesta área me desse alguma ajuda para uma melhor compreensão pessoal, deste assunto que mais do que amadores exige estudiosos.
Confesso que em todos os postes que escrevi sobre Brunhoso, nunca precisei tanto de uma crítica bem fundamentada pois eu não gosto de distorcer a História, nas suas bases fundamentais. Essa crítica mais amigável ou mais contundente não apareceu, apareceste tu, amigo Colaço, talvez com dúvidas de análise semelhantes, a sul, e o teu lindo poema alentejano que nos irmana mas não explica tudo.
Um grande abraço para ti e outro para o António Eduardo Ferreira que me quis cumprimentar duma forma muito simpática.
Francisco Baptista
Caro Francisco:
Está ali (nas palavras e nas fotografias) uma perfeita caracterização da sociedade de Brunhoso, nos seus diferentes patamares socioeconómicos : as casa mais pequenas que incorporam materiais mais rudes e obtidos no próprio local, pertencem aos assalariados; as de porte médio ou grande contendo espaço para adega e armazenagem de outros produtos e alfaias pertencentes aos lavradores mais pequenos; finalmente as casas dos quatro ou cinco lavradores maiores onde se inclui a casa da venda ou mercearia onde havia também o telefone e se distribuía o correio, construídas com granito trabalhado nas partes estruturais. O património edificado é o espelho dos habitantes de Brunhoso. Belo trabalho, amigo Francisco.
Um abração.
Havia um engenheiro transmontano chamado Trigo de Morais, com grande espírito colonial, que ajudou a "desencaminhar" muitos patrícios para as colónias Angola e Moçambique.
A especialidade desse grande homem era as barragens para rega e energia eléctrica.
Fez tanta propaganda daqueles trópicos que muitos transmontanos trocaram a emigração do Brasil por Angola e Moçambique.
No fim dos anos 50 chegou a formar-se um colonato em Angola, só de famílias de Trás-os-Montes, Capelongo, junto à barragem de Matala no Cunene.
Freixiel, foi o nome dado a uma povoação junto ao Cunene.
Essa gente, quando retornados, os mais novos, raramente regressaram às suas terras.
Até porque a maioria tinha vendido os seus bens para irem para as colónias e radicarem-se lá, e nada justificava regressarem à origens, ficaram pelas grandes cidades, França, Brasil, e outras Américas.
Foi o penúltimo processo de desertificação do interior norte do país.
Como havia transmontanos em Angola! povo fora de série.
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