sexta-feira, 8 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23416: Notas de leitura (1462): A lusitanização e o fervor católico na Guiné, um ideário do Estado Novo na publicação “Política de Informação”, por José Júlio Gonçalves, 1963 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Outubro de 2019:

Queridos amigos,
A grande mudança que constituiu a governação de Sarmento Rodrigues, uma verdadeira arrancada nas comunicações, transportes, infraestruturas, urbanização, saúde, educação, etc., também se fez acompanhar de uma preocupação confessional e cultural, os discursos de Sarmento Rodrigues eram perfeitamente claros quanto à necessidade de intensificar o uso da língua portuguesa num processo cultural mais amplo, prismado de "lusitanização". Numa atmosfera imperial, também se era sensível ao facto de a Guiné sofrer todos os impactos de séculos de crescente islamização e aonde o mundo missionário progredira de forma lenta e inconstante, havia que mudar as coisas. É à luz desse ideário que se deve ler, penso eu, o trabalho de compilação elaborado por José Júlio Gonçalves que, reconheça-se, leu cuidadosamente todos os artigos publicados sobre esta matéria religiosa no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa. Tudo mudou com a independência, a língua portuguesa é a do Estado e as missões são um dos pilares fundamentais nas políticas de saúde e de educação na Guiné-Bissau. São assim as ironias da História...

Um abraço do
Mário



A lusitanização e o fervor católico na Guiné, um ideário do Estado Novo

Beja Santos

José Júlio Gonçalves foi professor extraordinário do então Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina. O seu livro de ensaios publicado em 1963, “Política de Informação”, inclui um trabalho que o autor publicara anteriormente no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa em 1958 e que aqui vem completar com largas referências a outras colaborações recolhidas no referido Boletim Cultural que permitem ao autor apresentar um quadro da vida confessional da Guiné para, sem ambiguidades, retomar uma política seguida pelo governador Sarmento Rodrigues para reforço da língua e da cultura portuguesa bem como de maior suporte à religião católica na colónia, de modo a travar fundamentalmente os riscos de um islamismo que pudesse vir a constituir um elemento dissolvente da presença portuguesa. Como é sabido, nem a religião islâmica se revelou hostil à presença portuguesa como se mostrou agradada pela aceitação das escolas corânicas, pela crescente construção de mesquitas e do apoio às peregrinações a Meca. Uma luta surda se travou entre vários governadores entre os apoios à escola laica ou à escola de missionários. A missionação na Guiné datava de fresca data, foram os franciscanos que se impuseram e daí a respeitabilidade com que ainda hoje são credenciados. O sistema educativo foi permanentemente frágil e difuso, conheceu crescimento durante o período da guerra colonial graças aos familiares dos militares e deles próprios, investiu-se tarde e más horas no sistema educativo. Este, deploravelmente, continua em bolandas desde a independência.

O trabalho de José Júlio Gonçalves mostra-nos as etnias animistas (Felupes, Baiotes, Banhuns, Papéis, Brames, Balantas e Bijagós), as etnias animistas pouco islamizadas (Manjacos e sub-ramos Balantas), as etnias gradualmente islamizadas (Cassangas, Nalus, Beafadas e Pajadincas), seguem-se as etnias quase completamente islamizadas (predominantemente Fulas e Mandingas) e as minorias constituídas por católicos e por um grupo ainda mais minoritário de protestantes.

Vê-se que o autor leu atentamente a bibliografia da época e que lhe permite dissecar todas as etnias animistas à luz das investigações do tempo. É nas entrelinhas e nas observações que se perceciona qual a mensagem que o autor pretende fazer passar. Predominam as escolas muçulmanas sobre as escolas missionárias. Lembra-se que em meio século de atividade, entre 1900 e 1950, o islamismo obteve na Guiné mais adesões que os cristãos em cinco séculos de evangelização. Apela-se a uma maior eficiência da atuação dos missionários católicos, mas não se hesita em escrever: “Indígena islamizado está perdido para o cristianismo. Os maometanos guineenses têm grande respeito pelos missionários cristãos; não têm mesmo hesitação em mandar os filhos às escolas onde eles lecionam. Mas ao menor intento de catequese, ao mais pequeno sinal de que o espírito da criança se está interessando pela religião dos brancos – logo se ergue uma barreira a isolá-lo e a afastá-lo de tal influência. O missionário bem sabe isso e evita distribuir assim a sua atividade pelas áreas francamente islamizadas”.

E surpreende-nos com a afirmação que é possível catequizar as populações islamizadas, “não se esqueça que o sul de Portugal já foi habitado por muçulmanos que, em boa parte, se fizeram cristãos”. Mas as surpresas não ficam por aqui, o autor alerta para a possibilidade de os brancos se socorrerem de práticas de feitiçaria ou passem a usar amuletos iguais aos dos negros. E não sendo muito claro a quem está a culpabilizar, observa que o islamismo avançava em direção à faixa litoral e que não havia firmeza no binómio Administração – Missões. Sugere uma ocupação missionária que deve não só visar as regiões ainda pagãs como também as dominadas pelas etnias islamizadas.

Falando do protestantismo na Guiné, diz existir uma missão evangélica anglo-americana que tem sede em Bissau e várias filiais e que mantém um dispensário de combate à lepra em Bissorã. É um protestantismo que sabe atuar no campo assistencial e que dispõe de fundos. E deixa um alerta: “Os missionários protestantes não favorecem a nossa política de integração porque não lusitanizam, mas são cuidadosos no trato com as nossas autoridades administrativas”.

Discreteia seguidamente sobre alguns aspetos mais representativos da influência árabe-islâmica na Guiné, especificando a ação dos marabus, mouros, judeus e sírios. Contextualiza a atividade das confrarias muçulmanas (a Qadiria e a Tidjania), citando Teixeira da Mota:
“A confraria dos Qadiria foi fundada no século XII na Mesopotâmia. Na África Ocidental, o movimento está desligado da confraria-mãe e subdividido em confrarias independentes, embora todas subordinadas aos ideias e práticas da ordem Qadiria. Os fiéis aspiram ao aniquilamento do ser perante Deus, para o que se recomendam práticas comparáveis às dos dervixes orientais (…). Na nossa Guiné os principais centros Qadiria são Jabicunda e Bigene, na circunscrição de Bafatá. Parece que a maioria dos Mandingas do nosso território segue a ordem Qadiria. Quanto à confraria Tidjania, diz igualmente Teixeira da Mota que “é de origem relativamente recente (fins do século XVIII) e especificadamente africana, constituindo, além do lado religioso, uma ordem política e em certas épocas também guerreira, nomeadamente sob o afamado Al Hadj Omar, que se serviu dela para combater os Qadiria, cuja influência suplantou no Futa Djalon e Futa Toro. Na Guiné Portuguesa um dos principais centros Tidjania é Ingoré, onde um xerifo prepara numerosos talibés vindos de áreas distantes, inclusive Beafadas. Ao que parece, a maioria dos Fulas segue esta ordem”.

As etnias islamizadas iam exercendo a ação catequística junto dos animo-feiticistas, daí resultando fenómenos como a mandinguização e a fulanização. E o documento de divulgação salta agora para as Artes Plásticas, concluindo que as proibições religiosas na escultura, vedando, por exemplo, a reprodução de figuras animadas, tornavam as Artes Plásticas muito pobres, as grandes exceções era a escultura bijagó e o que restava da escultura nalu.

Em jeito de conclusão, o autor enfatizava a urgência de: dar maior incremento à ação missionária e católica, sugerindo que a catolicização devia ser predominantemente dirigida para as famílias monogâmicas; estudar atentamente os nexos políticos resultantes da peregrinação a Meca, sobretudo naqueles aspetos que mais de perto se prendem (ou possam vir a prender-se) com a nossa soberania nas terras guineenses; combater a difusão do árabe como língua franca e litúrgica da Guiné, incrementando o crioulo e criando mais escolas para difusão do português; vigiar sempre a administração da Justiça – pedra de toque da nossa civilização e que mais vivamente apaixona a mentalidade dos primitivos atuais. Todo o ato injusto conduz à rebelião latente. Daí a necessidade de a justiça europeia nunca dever aparecer inferiorizada em relação aos preceitos corânicos.

Todo este quadro ideológico enunciado por José Júlio Gonçalves se esfumou com as realidades da independência da Guiné-Bissau. A esfera confessional está alterada: o islamismo pouco cresceu, quem cresceu significativamente foi o catolicismo, e ambos os credos, a que se pode adicionar o protestantismo, se relacionam bem, sem querelas. A língua portuguesa, como Amílcar Cabral sempre advogou, foi “roubada” aos portugueses, é língua do Estado, Cabral era firme nesta decisão, o enclave tinha que se distinguir da língua francesa, para não ser engolido. Tal como Teixeira da Mota sugeria, o crioulo é a língua franca dos guineenses e a língua portuguesa lá prossegue aos tombos… sem preocupações de lusitanização. Quanto às missões, florescem, são respeitadas nos domínios da Saúde e da Educação, sobretudo. Em muitos casos, estes missionários são apoiados por organizações não-governamentais de gabarito, que contam com voluntários de excecional qualidade, preparando formadores e pessoal técnico e auxiliar em vários ramos da Saúde.

Imagem referente à Fundação Instituto Social Cristão Pina Ferraz, Missão Católica de Cumura.
Imagem referente à Fundação Instituto Social Cristão Pina Ferraz, Missão Católica de Cumura.
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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE JULHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23410: Notas de leitura (1461): "Crónicas Soviéticas", por Osvaldo Lopes da Silva; Rosa de Porcelana Editora, 2021 (Mário Beja Santos)

5 comentários:

Antº Rosinha disse...

A "lusitanização", aí está um termo bem engendrado, seria, como quem diz, aportuguesar aquela gente toda.

Ora esse professor José Júlio Gonçalves diz isso em 1963, ou seja, só com muitas escolas em português, o que na Guiné parece que foi coisa que nunca se deve ter dado grande importância.

Penso que nas nossas Áfricas apenas nas escolas se podia aportuguesar (um pouquinho)indígenas.

Na Guiné ainda conheci alguns jovens fulas que absorveram alguns calões com sotaque do norte, apreendido nos quartéis.

Verdadeiramente apenas estudantes, principalmente, se fossem da Casa do Império, além de saberem muito português e jogarem bem futebol, e conhecerem todos os rios de Portugal e todos os Reis da história, ninguém mais se poderia considerar "lusitanisado".

De Angola e Moçambique e Caboverde talvez houvesse bastantes, mas da Guiné propriamente dito, conhecer aportuguesados, históricos mesmo só Amilcar Casbral e o irmão, Vasco Cabral e um ou outro comerciante.

De Angola e Moçambique haveria bastantes, mas em Angola havia regiões que só mesmo hoje seria possível via satélite.

Enfim sonhava-se o que se podia.

Fernando Ribeiro disse...

Antº Rosinha e restantes camaradas,
Sempre ouvi dizer que Vasco Cabral não tinha qualquer laço de parentesco com Amílcar Cabral, apesar de partilhar com ele o apelido Cabral. Vasco Cabral não era irmão de Amílcar Cabral, nem primo, nem coisa nenhuma.

Mas foi oportuna a referência a Vasco Cabral a propósito da "lusitanização". Vasco Cabral foi poeta, coisa rara num economista como ele era. Os economistas costumam ser muito prosaicos, nada dados a lirismos.

A "lusitanização" em Vasco Cabral atingiu talvez o seu apogeu num soneto que ele escreveu, intitulado "O Último Adeus dum Combatente". Podemos ou não concordar com o seu conteúdo, mas temos que reconhecer que este soneto é muito camoniano. Ele está aqui:

https://www.escritas.org/pt/t/8524/o-ultimo-adeus-dum-combatente

Fernando de Sousa Ribeiro

Antº Rosinha disse...

Fernando Sousa, é verdade que Vasco Cabral não tinha a ver com Luís Cabral e Amílcar, havia mais um outro guineense também com muita cultura portuguesa, mas poucos comparados com angolanos, moçambicanos ou caboverdeanos.

Olhemos só para a quantidade de estudantes engajados no MPLA e FRELIMO e PAIGC, há muito poucos guineenses.

Os jovens ultramarinos que tinham oportunidade de ser estudantes, não estudavam por rotina ou por obrigação, como em Portugal e na Europa em geral, eles, os poucos que podiam ser estudantes, eles "devoravam" tudo o que tivesse letras, pontos e virgulas.

E como antigamente só havia livros em Português e Brasileiro, no caso de Angola, tanto nos liceus como escola industrial e comercial eram todos uns craques em português, e todas as matérias.

E não desperdiçavam a oportunidade de aproveitar todas as disciplinas proporcionadas pela Mocidade Portuguesa.

Eram uns portugueses porreiraços, e diziam-nos aos que iamos daqui, que não faziamos lá falta nenhuma, que sabiam melhor que nós como se devia governar aquilo.

Mas claro que quanto a entregar aquilo tanto ao Amílcar, também um dos fundadores do MPLA, como aos outros "Estudantes", o Salazar não podia fazer tal coisa, pois no dia em que fizesse tal coisa, essa rapaziada era destruida passadas 24 horas.

Há muitas explicações para isto que acabo de afirmar.

O que salvou os estudantes ultramarinos sobreviventes e vencedores foi não haver uma atitude de entrega do poder a essa gente, de mão beijada.




Valdemar Silva disse...

Parece que o Vasco Cabral tinha alguma esperança, e escrevia poemas sobre isso mesmo.

Poema ESPERANÇA, de Vasco Cabral
É como se alguém me pisasse e eu me risse
-uma alegria toda cor e luz
É como se alguém me batesse e eu cantasse
-um canto de amizade e paz
É como se alguém me cuspisse e eu passasse indiferente
-um caminho claro como o dia
É como se alguém me apunhalasse e eu o abraçasse
-um fogo de fraternidade humana.
Eu sei o teu nome, eu sei o teu nome
este vício secreto e interior
esta balada do relógio da alma
este pulsar no coração do mundo
esta consciência duma ferida em chaga
este sentir a dor duma mulher pobre e faminta.
Eu sei o teu nome, eu sei o teu nome.
Ó silencioso grito dos camponeses sem terra!
Ó vento da certeza que os carrascos temem!

Valdemar Queiroz

Antº Rosinha disse...

Valdemar, a rapaziada ultramarina daquele tempo e tambem do nosso tempo, estudantes e muito cultos, como Amílcar, Vasco Cabral, e muitos angolanos e moçambicanos como Lúcio Lara e familia, Agostinho Neto, e bastantes mais, mas não tantos como aqueles que não aderiram aos movimento independentistas, tinham uma vida emocional muito baralhada e com imensas dúvidas.

Não sei se já leste na biografia de Vasco Cabral, que apoiou a campanha presidencial de Norton de Matos em 1949, um homem que foi dos portugueses mais acérrimos colonialistas.

Também já ouviste, pelo menos a mim que foi baleado na golpada de Nino Vieira, refugiou-se na embaixada sueca, e lá escapou, mas não abandonou a Guiné como a muitos nessa altura.

Como ficariam aquelas ideias?

Depois havia a complicação na vidas desses rapazes, que era casar com uma "indígena" ou uma estrangeira.

O próprio Amilcar acabou por estrategicamente divorciar-se de portuguesa (irmã de um capitão de uma companhia do Regimento de Luanda, da minha tropa), coisa que Agostinho Neto se negou a fazer contra apoiantes seus que exigiam que tinha que trocar a branca por uma preta.

Era inevitável acabar com as colónias, mas o verdadeiro sonho desses "estudantes",além das independências, era haver uma paz e uma tranquilidade como aquela que eles conheciam naquele momento das suas juventudes, antes de pegar em armas (1950 - 1960)

Amílcar profetizou quando já era tarde para corrigir nada, que seria morto pelos "seus" e não pelo colon.

Quando fiz o meu CSM em Nova Lisboa em 1959, em 30 do meu pelotão, os primeiros 10 classificados eram "estudantes" dos liceus ultramarinos e escolas industriais e comerciais.

Aprendi algumas coisitas com eles.

Um ou outro também sonhava alto.

Cumprimentos