quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24813: Historiografia da presença portuguesa em África (392): "Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878)", por António Carreira; Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, 1972 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Março de 2023:

Queridos amigos,
Nos preparativos de uma viagem que fiz a S. Vicente e Santo Antão fiz algumas leituras recapitulativas e meti no saco outras que me permitissem entender melhor a presença portuguesa naquele arquipélago. Resolvi reler uma obra indispensável de António Carreira, "Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata", com sucessivas edições tanto em Portugal como em Cabo Verde, e foi assim que vi o modo tão bem organizado como este investigador de nomeada refletiu sobre a importância dos tangomaos ou "lançados" a quem Carreira atribui um papel de extrema utilidade. 

Esta obra data de 1972 e prenuncia outros estudos tanto de sua lavra como de outros. Carreira irá escrever sobre o tráfico de escravos, anunciará nesta obra da formação de uma sociedade escravocrata a presença nos rios de Guiné de judeus e cristãos novos, tema que outros autores desenvolverão. Neste trabalho aprofundará o papel das companhias majestáticas e dos seus insucessos. Aborda sempre conceitos todos este comércio negreiro, a partir do século XIX vilipendiado, dentro de um quadro da mentalidade do tempo em que para todos o comércio da escravidão era lícito.

Um abraço do
Mário



Lançados ou Tangomaos, a análise de António Carreira

Mário Beja Santos

Quando publicou em 1972 esta obra ainda hoje referencial, António Carreira já tinha largo percurso historiógrafo, consultara em Cabo Verde o registo de escravos, produzira a importante obra Panaria Cabo-Verdiana-Guineense, As Companhias Pombalinas de Navegação, Comércio e Tráfico de Escravos. No prefácio justifica porque é que o tema é ingrato já que tem a ver com o tenebroso período da escravatura e socorre-se do exemplo inglês: 

“Nenhuma nação negociou tanto como ela em escravos. Com este negócio amealhou lucros fabulosos. Em certo momento, e no seu interesse direto, arvorou-se em campeã do abolicionismo. Nessa campanha usou de todos os processos, lícitos e ilícitos. Publicou livros sobre o tráfico, nuns descrevendo os seus horrores e condenando-o; em outros defendendo a sua manutenção. E não parece que haja algum inglês que tenha qualquer sentimento de culpa pelo que os seus antepassados fizeram – e numa escala nunca igualada por um outro povo.”

Na capa da segunda edição, bem como na primeira edição, de iniciativa do autor, aparece a Casa-grande de S. Martinho, nos arredores da Praia, seria uma das últimas reminiscências da época escravocrata.

Voltei a ler esta obra exemplar em jeito de me preparar para uma viagem que fiz às ilhas de S. Vicente e Santo Antão e verifiquei que,  para além da história dos contratos de arrendamento, da obtenção de escravos, das mercadorias usadas neste comércio, da formação do crioulo e até se chegar à situação social na época que antecedeu a abolição, Carreira tratava com a melhor investigação possível do seu tempo os lançados ou tangomaos, e assim considerei da maior utilidade fazer uma recensão de personagem tão determinante do seu tempo.

“Na fase inicial, os lançados eram constituídos apenas por brancos (cristãos e judeus) estantes em Santiago, e por alguns reinóis não moradores que com aqueles se mancomunavam e faziam parceria nos negócios. Poucos anos volvidos o seu número avolumou-se não apenas pela afluência de mais brancos como pelo surto de mulatos e de pretos-forros, uns e outros de inteira confiança dos brancos. 

Admitimos que a participação de mulatos e de pretos-forros nas atividades comerciais de brancos (compra de géneros e de escravos, venda de mercadorias) nos rios de Guiné só foi possível após a formação de um meio de comunicação válido entre esses dois grupos – de brancos e de pretos e mulatos – ou seja, incontroversamente, a língua crioula.

Independentemente do condicionalismo criado pelas leis de comércio, temos também de considerar como outros dos factores a influir do surto do lançado os resultantes das normas fixadas para a residência de brancos no Ultramar (limitações postas ao fornecimento aos brancos de Santiago das chamadas mercadorias defesas necessárias aos tratos e resgates, política seguida no arrendamento das áreas de comércio e limitações postas à residência de brancos nos rios de Guiné).”


As referências aos lançados surgem no início do século XVI, são tratados como cristãos omiziados. E Carreira questiona de onde vem o nome de lançado e pouco depois o de tangomaos. Todos os cristãos que se instalassem nos rios e portos africanos sem licença régia eram havidos por lançados (de lançar, tomado no sentido de internar-se, avançar pelo sertão a negociar). O teor das cartas de arrendamento é drástico na proibição do que faziam os lançados, deviam ser mortos ou entregues aos capitães dos navios. Da documentação existente regista-se a presença de branco e de provavelmente judeus, e que faziam concorrência ao comércio régio, desarticulando-o, daí a pena de morte e o confisco de bens.

“Aparece nas leis (certamente já como linguagem corrente), um outro vocábulo que define esses mesmos transgressores: o de Tangomao e suas diferentes formas gráficas (Tanguomããos, Tamgo mãos, tangomao, tango-mao, tangosmaus, tangomagos, etc.), sempre com significado igual ao dado a lançado.” 

Carreira afasta qualquer hipótese de se relacionar este termo a uma divindade, refere apreciações da literatura de viagens como Valentim Fernandes, o padre Manuel Álvares que referem ídolos com tal nome, mas não encontra qualquer relação.

A economia mais afetada pela atividade dos tangomaos era a de Santiago, há pedidos constantes da câmara para tirar da Guiné os tangomaos. As ameaças não surtiram nenhum efeito, os tangomaos estavam de pedra e cal. Missionários como o padre Manuel Álvares tinham deles uma opinião que não era nada favorável dizendo que colaboravam com o gentio idólatra. André Donelha, em 1625, aponta a presença de tangomaos entre os Jalofos, na Serra Leoa e no rio de S. Domingos, outros relatos referem-nos nos Bijagós, em Cacheu e em partes de Geba.

E Carreira prossegue:

“No século XIX, e mesmo no atual, alguns autores tentaram esclarecer a origem do termo tangomao. A análise mais remota é de Tavares de Macedo, em 1857 que, depois de aludir às ordenações manuelinas e doações ao Hospital de Todos-os-Santos, cita o jurisconsulto Molina, tangomao é palavra que em terra de pretos significa os que vão pelas feiras e trocam mercancias por negros escravos que trazem aos portugueses a vender.”

Há outros autores que falam de tangomao como Pombeiro ou negociante de escravos. Carreira procura ser pormenorizado e avança com outras opiniões em que inclui Correia Lopes e Teixeira da Mota. Em sua opinião, os que viravam tangomaos não deveriam ser apenas reinóis idos acidentalmente aos resgates. Seriam, na grande maioria, os tais brancos estantes em Santiago e no Fogo e outros conluiados. Inicialmente tentou-se uma política de brandura para impedir a formação destes bandos de tangomaos, não resultou e mais adiante procurou-se a aplicação de sanções pecuniárias e depois a pena de morte.

E Carreira dá-nos o seguinte entendimento:

“Os lançados serviam de intermediários entre o traficante não estante, nacional e estrangeiro, e os chefes locais e as cáfilas procedentes do interior, vendedores de escravos e de géneros. Fixaram-se próximo do interior ou nos locais de concentração das caravanas, em regra junto aos portos de mar ou fluviais. Para atuar mais eficazmente valeram-se do seu conhecimento do meio e das línguas nativas. Esses homens duros e resolutos adaptaram-se facilmente a cada meio africano. Não se importaram de sacrificar a sua moral, a sua educação, a sua religião. Não temeram o clima de África, de si esgotante, nem a floresta ou as terras. O isolamento obrigou-os a ceder perante enormes forças sociais. Para se integrarem nos mais diferentes aspetos das sociedades onde viviam juntavam-se facilmente à mulher africana. Abjuravam da sua religião para seguir o chamado paganismo; aliavam-se a chefes amigos para combater e dominar inimigos. Não se intimidaram com a excomunhão. A onda de tangomaos cresceu por todo o século XVI e mais ainda na centúria seguinte, na proporção em que surgiam mais interessados no tráfico. Os primeiros a aparecer na competição foram os franceses, logo seguidos pelos ingleses e estes, a curto intervalo, pelos holandeses. De todos eles os tangomaos se tornaram clientes prestimosos.”

Em jeito de conclusão, os lançados ou tangomaos eram portugueses que violaram as ordens régias indo de Lisboa ou Santiago para os rios de Guiné na mira de enriquecer, adaptaram-se, socorreram-se de cerimónias mágicas para meter medo aos seus cativos, procedimento que deixou rasto, os escravos que irão para as ilhas de Cabo Verde manterão superstições (como aliás também muitos brancos) haverá nas ilhas feiticeiros e adivinhadores.

O caso mais célebre de tangomao que se conhece é de João Ferreira, natural do Crato, chamado pelos negros o Ganagoga, o que quer dizer na língua dos biafadas homem que fala todas as línguas. 

“Da ação dos tangomaos resultou, em parte apreciável, a ruína do comércio português em todos os setores do tráfico. Mas, a eles ficou devendo em grande medida o conhecimento pormenorizado de vastas regiões, do curso dos rios, das gentes e seus costumes e práticas, dos processos de comércio seguidos, das mercadorias preferidas, das produções locais de maior interesse. Difundiram costumes e concorreram para a formação e difusão do crioulo e do português. E ao fazer um balanço desapaixonado, tudo quanto se lhe aponta de nocivo fica compensado pelo que de bom e de útil fizeram.”
António Carreira, indiscutivelmente o mais influente e importante historiador de origem cabo-verdiana da sua geração. A sua obra "Cabo Verde, Formação e extinção de uma sociedade escravocrata", 1972, continua a ser incontornável na investigação universitária
Imagem constante no texto A poderosa "Bebiana Vaz" e o aparecimento dos "gans" Vaz e Gomes em Cacheu, por Celina Tavares, com a devida vénia
Imagem alusiva às “Signares”, que tiveram um papel determinante na construção do mundo moderno africano, a Guiné não escapou à sua influência, caso de Aurélia Correia
Imagem antiga da colonização portuguesa
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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24793: Historiografia da presença portuguesa em África (391): Grandes surpresas na publicação "As Colónias Portuguesas", Revista Ilustrada (6) (Mário Beja Santos)

6 comentários:

Joaquim Luis Fernandes disse...

E pensar que António Carreira (então gerente da Casa Gouveia) terá sido um dos principais responsáveis pela violenta e sanguinária repressão dos trabalhadores, no cais do porto de Pindgiguiti, em 3 de Agosto de 1959, que terá gerado grande pavor e descontentamento nas gentes de Bissau e incentivado os movimentos nacionalistas a unirem-se sob a direção do PAIGC, preparando-se para levarem por diante a luta armada contra as autoridades coloniais, que, infelizmente, muitos de nós, viemos a sofrer as consequências.
António Carreira, pai de um político português, nascido na Guiné, Medina Carreira, que bem conhecemos no pós 25 de Abril de 74, como Ministro das Finanças, até às suas pessimistas opiniões sobre a política económica e financeira de outros Ministros, da sua área política, mas de que se terá afastado.
As voltas que a vida dá.

Fernando Ribeiro disse...

A última imagem deste post tem como legenda "Imagem antiga da colonização portuguesa", mas não se vê colonização nenhuma. Mais valia que não tivesse legenda nenhuma.

Repare-se na figura que está mais à esquerda: está descalça, como todas as restantes, mas traz uma coroa na cabeça! Uma coroa! Atrás dela, veem-se pessoas tocando trompas e outros instrumentos, como que a chamar as atenções para a personagem coroada. Apesar de descalça, a personagem coroada parece ser uma figura importante. E é mesmo. É a rainha Ginga (em quimbundo chamada Nzinga Mbandi), como se pode ler (a custo) na legenda que está por baixo, e que no séc. XVII foi a soberana dos reinos de Ndongo e Matamba, na atual Angola.

O reino de Ndongo era o reino que existia numa vasta região em volta de Luanda, a sul do reino do Congo, com o qual fazia fronteira. Os soberanos do Ndongo usavam o título de Ngola, palavra que podemos traduzir por "rei". Deste título nasceu o nome "Angola", que foi dado ao território, como significando "Terra do Ngola". A própria Ginga, portanto, foi uma Ngola, isto é, uma rainha. O reino de Matamba, que ela própria fundou, situava-se mais para o interior, na região de Malanje, onde existe uma etnia que ainda é chamada de Gingas.

A vida da rainha Ginga e a sua ação política e militar estão bem documentadas, como se pode ler na confusa página da Wikipedia que lhe é dedicada (https://pt.wikipedia.org/wiki/Ana_de_Sousa). Por um lado, o historiador António de Oliveira Cadornega (https://pt.wikipedia.org/wiki/Ant%C3%B3nio_de_Oliveira_de_Cadornega), seu contemporâneo, faz-lhe abundante referência na sua obra História Geral das Guerras Angolanas, publicada em 1680. Por outro lado, o frade capuchinho italiano Giovanni Antonio Cavazzi da Montecuccolo (https://en.wikipedia.org/wiki/Giovanni_Cavazzi_da_Montecuccolo) representou a sociedade dos reinos do Congo, Ndongo e Matamba em coloridas aguarelas muito naïves, mas extremamente informativas, como esta.

Ginga foi uma rainha extremamente inteligente e astuta, que procurou manter e alargar o seu poder perante a cobiça de portugueses e de holandeses, sem esquecer a dos muitos traficantes de escravos que se espalhavam pela região. É considerada uma heroína pelos angolanos. Aliás, já era uma heroína para os luandenses (pelo menos para estes) antes da independência de Angola em 1975.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Fernando, o teu apontamento sobre a Ginga merece um poste pelo que pesquisaste sobre ela e a sua época...

É bom que os angolanos, os portugueses e os holandeses(e os demais povos que andaram por essas bandas de África) tenham memória (ou não percam a memória)...A revisitação do passado é importante para todos nós que agora queremos construir e reforçar laços de amizade e cooperação entre os nossos povos, baseados numa relação de poder mais equilibrada, menos assimétrica, mais justa...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Pois é, Joaquim Luís Ferndes, o António Carreira (que o Amílcar Cabral citava e até respeitava como investigador social) tem um passado, na Guiné, como administrador colonial... E uma "mancha vermelha" (não queria escrever "negra", por causa da ambiguidade do termo...) no currículo: foi gerente da Casa Gouveia e, ao que oarece, terá sido mais patrão que os patrões de Lisboa...Contrariando até instruções da capital do Império, fez um braço de ferro somc os estivadores, marinheiros e demais trabalhadores do Pidjiguiti que, pura e simplesmente, reivindicavm mais uns pesos para comprar o "mafé"...

Conta que terá sido ele a chamar a polícia. E também se conta que ele se quis justificar perante a História: "Chamei a polícia mas não lhes dei ordens para disparar a matar"...

Um episódio vergonho na nossa história comum... O PAIGC (que ainda não existia, era apenaso PAI) quis aproveitar-se, "à posteriori", deste episódio sangrento... E aproveiutou-se, mesmo sem ter nada a ver diretamente com esta hist+oria...É assim que se constroem os mitos...

De qualquer modo, temos que separar as águas: o António Carreira como investigador não pode ser ignorado, esquecido, ostracizado... Aprendi algo mais sobre os "tangomaus"... Há livros (e autores) que já não ver tempo nem pachorra para ler... Por isso, obrigado ao Beja Santos pela nota de leitura... Temos o dever de gratidão para quem nos presta um serviço... O Beja Santos lê por nós muitos livros e autores que já não teremos tempo nem pachorra ler... Se calhar eu devia ter lido o António Carreira antes de ir para a Guiné...

A. Murta disse...

Sobre a Rainha Ginga.

Há uns bons anos li dois livros sobre essa mulher excecional e fiquei fascinado. Já conhecia muitas referências a essa personalidade que sempre me atraiu mas, afinal, não sabia nada.

Os livros são:

Romance
GINGA Rainha de Angola /
de Manuel Ricardo Miranda

Oficina do Livro / 2ª edição: Outubro de 2008.

O outro livro:

A RAINHA GINGA / E de como os africanos inventaram o mundo /
de José Eduardo Agualusa

QUETZAL Editores / 1ª edição: Junho de 2014.

Se puderem ler, verão como há mulheres de uma fibra incomum.

António Murta.

Joaquim Luis Fernandes disse...

Pois é, Luís Graça, pensando bem, compreende-se que Amílcar Cabral citasse e respeitasse António Carreira. Afinal, ambos estiveram na continuidade dos "lançados", dos "tangomaus". Foram dos "tangomaus" dos tempos modernos, do século XX, cada qual à sua maneira mas com objetivos semelhantes ou complementares. Só que, os tempos eram outros e tudo saiu ao contrário a quem os "lançou".

Já nós, também fomos enviados (levados) para a Guiné, mas para apanhar com a bosta. que estes e outros "tangomaus" produziram.
Mas nem tudo foi mau. Pelo menos no meu caso.

O agradecimento ao camarada Beja Santos que tanto tem feito pela nossa compreensão da Guiné que nos coube em sorte ou azar.