1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Março de 2015:
Queridos amigos,
É imperdoável ficar só em Angra do Heroísmo, há muito mais património histórico e riquezas naturais em derredor. Basta pensar em Praia da Vitória. Recomendo aos potenciais viandantes que leiam previamente Vitorino Nemésio, ele tinha aqui a sua terra natal. E se viajarem mais para o Ocidente, é obrigatório ler ou reler "Mau tempo no canal".
Outro aspeto surpreendente da Terceira é sentir-se uma melhor repartição da riqueza, é certo que há o dinheiro dos emigrantes mas sente-se que há vida com bastante qualidade, uma classe média atuante.
Espero que não resistam agora a visitar a Terceira, vem aí os voos low cost, não esqueçam.
Um abraço do
Mário
Alguns encantos da ilha Terceira
Beja Santos
Não se pode sair de Angra sem visitar o Castelo de S. Filipe e a reserva florestal do Monte Brasil. O Castelinho, conhecido por S. Sebastião, está no outro extremo, também é impressionante, tem hoje no seu interior uma pousada. Angra dispôs de mais fortes e fortins, havia que dissuadir o corso e a pirataria tentados pelas enormes riquezas vindas do Oriente e das minas do México e do Perú. São Filipe, também conhecido São João Baptista do Monte Brasil é uma imensidão de muralhas e possui uma lindíssima porta de armas, aqui viveram Gungunhana e D. Afonso VI, há memórias dos dois. Na previsão de um desembarque hostil na Terceira posicionaram-se em pontos estratégicos peças de artilharia que ali estão, relíquia do passado.
Há alguns anos atrás o artista Manuel Botelho fez uma exposição com armas, espingardas metralhadoras, eram fotografias que pareciam não possuir volume, não meter respeito, estavam ali como metal organizado, como estética em instalação, autênticos ready made. Não me canso de olhar esta peça, tive sorte com a luz e o ambiente, sei que é memória de uma guerra, porventura nem funcionou, os Aliados ficaram a muitos quilómetros daqui, nas Lajes, era o porta-aviões e ancoradouro que se iria revelar indispensável para as frotas aéreas, caso da Guerra dos Seis Dias e os ataques ao Iraque.
Temos aqui as indicações para o museu a céu aberto, de um lado está esta dissuasora artilharia, mas se o visitante inclinar a cara tem de frente a magnífica angra e um recorte transversal do casario entre S. Mateus da Calheta e Porto Judeu. Que contraste, no cimo deste Monte Brasil.
Saiu-se de Angra do Heroísmo, Ribeirinha é a primeira povoação, depois Feteira, a Serretinha, mais adiante Porto Judeu, e depois paragem obrigatória em S. Sebastião. Há razões de sobra para visitar este portentoso tempo, cheira ainda a século XV, mas é o século XVI que aqui predomina, é bem patente o tardo-gótico, dá gosto a harmonia do alçado e dos volumes, afagar esta cantaria. No interior está reservada uma enorme surpresa, imagine-se, há por ali pinturas murais, caso único nas ilhas.
Posso ler na brochura da matriz da vila de S. Sebastião: “Em termos insolares, estas pinturas murais são caso único. São as mais antigas que se conhecem nas ilhas e, em termos nacionais, pertencem a um grupo restrito de frescos primo-quinhentistas que simultaneamente estão em bom estado de conservação”. Julga-se que estes frescos terão sido elaborados entre 1510 e 1530. O fresco da direita é de S. Martinho o outro é de uma santa que não fixei. Por ali divaguei a mirar os tetos e as alfaias religiosas, as portas laterais também são impressionantes. Infelizmente, foram imagens que se perderam.
O culto do Espírito Santo prevalece nesta região arquipelágica, é devoção incontornável, tal como o Senhor Santo Cristo. A hierarquia católica teve grande contencioso com estes ritos, a coroação do menino imperador, cerimonial talvez com resquícios de paganismo. O que interessa é que não há freguesia que não possua o seu Império bem garrido, sempre bem mantido. Foi autorizado a entrar no império pelos pintores em plena lavra, as cerimónias estão para breve, apanhei o altar nu, a imagem de Santa Isabel e as coroas do Espírito Santo estão guardadas em casa do mordomo. É impossível não nos impressionarmos com estes templos, únicos no país.
Prossegue o passeio pela Fonte do Bastardo, o objetivo é a Praia da Vitória, terra de muitas belezas e com belo porto, nele começou a derrocada do miguelismo, aqui perderam a veleidade da supremacia naval. Entrámos primeiro na matriz, templo de enorme riqueza, também tardo-gótico, tivemos sorte com a hora, andava por ali o sacristão que nos levou a ver as preciosidades da sacristia. E o inesperado aconteceu.
Pena é que o menino Jesus não apareça mais nítido, ele faz parte da história de Portugal, quase de maneira insólita. Como se sabe, D.ª Maria II deu à luz 11 filhos, e era tal a devoção neste menino na Praia da Vitória que sempre que se aproximava a sua hora feliz vinham buscá-lo, a monarca pariu sempre com este Jesus a seu lado.
Desde a minha primeira visita à Terceira que este soberbo edifício não me sai da memória, nada conheço de tão vigoroso, com tal peso ancestral de modernidade quinhentista ímpar. É a câmara de Praia da Vitória, permitiram a visita ao salão nobre, edificante e com uma pompa e circunstâncias contidas. Tudo bem mantido, em ponto nenhum se veem lixos no chão, circula-se com prazer. E antes de almoço, visita-se ali ao pé a casa de Vitorino Nemésio, ali nasceu em 19 de dezembro de 1901, há objetos pessoais, pode ver-se o seu primeiro livro da juventude, a sua guitarra e fotografias. E fomos à casa das tias, quem leu o magnífico “Mau tempo no canal”, sabe como estas tias foram tão importantes na juventude deste grande nome da literatura portuguesa.
Antes de comer um filete de abrótea e saborear um bocadinho de alcatra de carne (bem procurei uma alcatra de peixe boca negra, não fui bem sucedido), passou-se da Igreja da Misericórdia, tem uma fachada vasta, o fotógrafo amador preferiu este detalhe, convenhamos que há muita garridice nestes azuis e brancos, os terceirenses incentivam as cores garridas, quase fluorescentes, é uma defesa contra o céu de chumbo, como se a natureza se confrontasse com os verdes dos prados, estes azuis esmaltados, castanhos, amarelos, a paleta é delirante.
Banqueteados, vamos agora a caminho das Lajes, a povoação é enorme, vimos o lado português e o lado norte-americano, do aeroporto arrancou um avião pesadão que infletiu para as Américas. Uma passageira da excursão pediu ao guia que se parasse num pasto, gostava de dar ao neto uma foto com vacas. Aproveitei a deixa, e já está, é daqui que vem leite, manteiga e queijo que tanto aprecio, é surpreendente a evolução destes lacticínios, tão saborosos com os queijos de S. Jorge à frente.
Estamos à beira mar, caminhamos para o ponto oposto de Angra do Heroísmo, há muitos miradouros, Ponta do Mistério, Ponta das Quatro Ribeiras, Ponta da Furna, Ponta dos Biscoitos. Procurei registar imagens destas costas escarpadas, há aqui muita falésia a pique, em contraste com tons azuis e turquesa das águas com a espuma muito branca sobre os pedregulhos e calhaus rolados. Espero que apreciem.
Não estivesse um dia tão nebulado e víamos claramente visto a Ilha de S. Jorge, que parece um paquiderme adormecido. Mas não, o que mais gosto neste escarpado são os tons azuis da água, e aquele instante em que a tromba de água se deflagra no rochedo. Que querem, vaidades do amadorismo.
O guia está esmorecido, os céus turvaram-se, é impossível ir ao interior, nesta altura não se pode visitar a Gruta do Algar do Carvão, e com este nevoeiro não é agradável andar pelas reservas florestais no coração da ilha. Toca de aproveitar onde há visibilidade, visitamos demoradamente os biscoitos, vamos agora até Altares, pasmem com a igreja paroquial de S. Roque dos Altares. É quase uma cópia numa igreja norte-americana, desobedece na sua estrutura à configuração do património religioso açoriano, mas é imponente, ao lado visitamos o museu etnográfico, singelo, o império é também imponente. E há mais surpresas no interior da igreja, vejam.
O altar-mor é marcadamente neogótico, as cores são bem vistosas, tudo muito aprumado, não pode haver negligências em tudo quanto seja local de culto, é o esmero na reparação para fazer face às inclemências das chuvas diluvianas, dos ventos que lembram tornados e de uma humidade capilar que não sendo rapidamente sustada tudo apodrece. Uma natureza que faz com que o açoriano viva em permanente sobressalto. As térmitas são outra forma de cataclismo, desfazem as casas, parecem epidemia, são tão temidas quase como os tremores de terra, esses sismos crónicos que a vulcanologia quer prever, para salvar vidas.
O passeio acabou, vamos agora para Angra. Sento-me frente ao mar, recapitulo outras visitas. Mal cheguei e perguntei pela casa museu do senhor Ernesto Oliveira Martins, um grande colecionador. Morreu, a casa está fechada, desta feita não vou ver pratas preciosas, mobiliário indo-português, marfins requintados. É assim a viagem, fica uma coletânea de momentos especiais da nossa existência. Desde que aqui aportei, em 1967, sinto-me irremediavelmente tocado por esta cultura e afabilidade. E pela primeira vez na vida parto sabendo que dentro de dias vou regressar a uma ilha mais à frente, o Pico. Espero dar notícias.
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Nota do editor
Último poste da série de 18 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14384: Os nossos seres, saberes e lazeres (78): Relato de visita a Angra do Heroísmo (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quarta-feira, 25 de março de 2015
Guiné 63/74 - P14405: Parabéns a você (879): Rui Silva, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 816 (Guiné, 1965/67)
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Nota do editor
Último poste da série de 24 de Março de 2015 > Guiné 63/74 - P14402: Parabéns a você (878): Braima Djaura, ex-Soldado Condutor Auto Rodas da CCAÇ 19 (Guiné, 1972/74)
Nota do editor
Último poste da série de 24 de Março de 2015 > Guiné 63/74 - P14402: Parabéns a você (878): Braima Djaura, ex-Soldado Condutor Auto Rodas da CCAÇ 19 (Guiné, 1972/74)
terça-feira, 24 de março de 2015
Guiné 63/74 - P14404: Notas de leitura (696): "Os Segredos da Censura", por César Príncipe (Manuel Joaquim)
1. Mensagem do nosso camarada Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67), com data de 21 de Março de 2015:
Meus caros editores:
A leitura do livro "Os Segredos da Censura", de César Príncipe, levou-me a redigir este texto.
Acho que o tema tem algum interesse mas o texto está um pouco comprido. Eu bem tentei mas não consegui pô-lo mais curto nem saber por onde o separar para publicação em duas partes.
Se no vosso entender for publicável, estejam à vontade no seu modo de edição.
Muito obrigado pelo vosso trabalho. Nem imaginam quanto vos estou grato e vos admiro!
Fraternalmente, um grande abraço para cada um de vós, meus caros amigos e camaradas.
Manuel Joaquim
Guerra Colonial
O controlo da informação na política ultramarina portuguesa
Manuel Joaquim
Durante os governos de Salazar e de Caetano, um dos meios usados para controlar politicamente o país era o exame prévio da matéria que os órgãos de informação quisessem publicar. Para isso havia uma “Comissão de Censura”, nome alterado por M. Caetano para “Comissão de Exame Prévio”. Esta Comissão vigiava todo o tipo de informação, desde a escrita (jornais, livros e revistas, etc.) até à radiofónica e televisiva. Também as artes e espectáculos estavam sujeitos ao mesmo exame prévio (teatro, cinema, canções, cartazes, etc.). Era proibida a publicação ou a exibição de tudo o que a “Censura” achasse não estar de acordo com as ideias do poder vigente (político e religioso).
A este propósito tenho presente o livro do jornalista César Príncipe, “OS SEGREDOS DA CENSURA” (3ª edição, 1994). Nele estão transcritos os telegramas telefonados pela Comissão de Exame Prévio do Porto para o Jornal de Notícias (JN) desde 05/01/1967 até 24/04/1974, assim como “Circulares dos Correios e Telecomunicações de Portugal sobre livros e revistas proibidos de circular” emitidas nos anos 1970 a 1974.
São quase sete centenas de telegramas e é de ficar de boca aberta perante o que neles se lê. Tendo sido dirigidos a um só jornal e num certo período de tempo, podemos imaginar a enormidade da soma de todos os telegramas deste género enviados pelos “coronéis da censura” para todos os órgãos de informação, durante as dezenas de anos de vigência do regime do Estado Novo!
Pelos referidos telegramas se vê que tudo era assunto sujeito a censura prévia: qualquer tipo de ideologia e actividade políticas, órgãos de comunicação social, trabalho e relações laborais, religião, epidemias, desastres naturais, guerras, fome, apoios sociais, cooperativas, aumentos de preços, barracas, abortos, emigração, ensino, suicídios, adultérios, homossexualidade, proxenetismo, prostituição, pedofilia, assassínios, fraudes, roubos, etc. etc. O resultado de tudo isto foi a criação de um país-ficção, um país idealizado e propagandeado pelo Governo como um país exemplar habitado por um povo exemplar. A verdade do país real era bem diferente.
Para o Governo de então, não havia guerra no Ultramar mas acções de manutenção da ordem pública. Portugal nunca admitiu, oficialmente, a existência de guerra nas colónias portuguesas em África. Veja-se este telegrama da Comissão de Exame Prévio, dirigido ao JN em 12-01-1970:
«Na posse do 2.º comandante da PSP de Lisboa – disse-se que ele já fez três comissões de serviço no Ultramar, a primeira “logo na eclosão da guerra”. Ora, não há guerra. Não se pode dizer isso. Deve ter sido confusão do repórter … Coronel Saraiva.»
Repare-se na data, Janeiro de 1970! O Governo continuava a dizer que não havia guerra, nove anos depois dela iniciada! “Deve ter sido confusão do repórter” – ironiza (?) o coronel censor!
Numa recente emissão da RTP, onde se falava de “mulheres na guerra colonial”, a esposa de um combatente diz que ao chegar a Lourenço Marques alguém lhe disse que não havia guerra nenhuma em Moçambique, que essa ideia de guerra era uma invenção dos militares para justificarem a sua presença ali, o que eles queriam era ganhar bom dinheiro. De nada lhe valeu reafirmar a certeza de que o marido estava mesmo a combater.
Também recentemente o historiador António Costa Pinto disse que a gravidade da guerra colonial passou despercebida a muita gente em Angola e Moçambique. Disse-o na apresentação de um estudo sobre a chamada “população retornada” que, no fim da guerra, abandonou precipitadamente os territórios africanos. Gente que vivia alheada do conflito bélico, com pouca ou mesmo nenhuma consciência dos perigos que a guerra representava para o seu futuro, foi violentamente surpreendida pelo processo de descolonização e pelo modo como esta foi feita. A verdade do que se passava tinha-lhes passado ao lado. E não só por sua culpa mas também por causa do minucioso controlo oficial da informação, falada e escrita. Tudo isto lhes criou uma falsa realidade, o que em grande parte poderá explicar o seu não entendimento dos problemas político-sociais que depois as atingiriam.
Percebo agora a verdade de uma frase ouvida algumas vezes a pessoas escorraçadas de África, após o fim da guerra colonial: “nunca pensei que isto (me, nos) pudesse acontecer”.
Mas não foi só nos palcos de guerra que isto aconteceu. Também na então chamada “Metrópole” aconteceu algo parecido. O poder político tentava impedir que se viesse a criar uma consciência nacional do que se passava nos palcos de guerra em África.
É verdade que os ex-combatentes regressados traziam milhares de notícias sobre a realidade do que se passava na guerra colonial. Mas, como todos sabemos hoje, a maior parte deles portou-se como se tivesse assinado um pacto de silêncio sobre a guerra, muitas vezes só quebrado no seio da própria família. Esquecer os seus tempos de combatente era o que mais queria e o mais depressa possível.
Assim, as reais histórias da guerra iam ficando abafadas. Só passavam notícias, crónicas e reportagens que estivessem devidamente alinhadas com a política em vigor e cuja divulgação não viesse alterar a pacatez da vida pública e social e não causasse contestação à política seguida pelo Governo. Quem quisesse falar publicamente da sua vida de combatente, só com muita sorte não seria incomodado se esses seus relatos fossem contra a orientação governamental.
O país, em geral, não tinha grande noção do que se passava em África com os seus combatentes. À primeira vista, não havia notícias de mortos e feridos já que era difícil encontrá-las nos órgãos de informação. Os nomes dos militares falecidos eram divulgados em sintéticos comunicados do Serviço de Informação Pública das Forças Armadas e publicados num pequeno e obscuro espaço de um ou outro jornal.
Tudo se fazia para fazer crer que a chamada guerra do ultramar pouco mais era que um conjunto de fortes escaramuças, a deixarem de existir mais dia menos dia.
“Se não há guerra, não há combatentes”. Foi esta orientação que impediu a criação oficial da figura cívica de “ex-combatente do ultramar” e a sua agregação em associação de veteranos de guerra. Era politicamente perigosa tal instituição pelo que poderia fazer na divulgação da verdade do que se passava. E economicamente também o seria. Veja-se a este propósito o telegrama de 27/03/1973, enviado ao JN:
«O Diário Popular queria dar uma notícia muito grande sobre as regalias que os Estados Unidos concedem (muitas) aos desmobilizados do Vietnam – CORTAR. Dr. Ornelas». “Muitas” regalias, diz o censor.
Em Março de 1964, a Comissão de Censura definia assim o modo de tratamento das notícias sobre um levantamento popular em Moçambique, na área do Niassa:
“Quanto aos acontecimentos na Niassalândia (Moçambique), eliminar as estatísticas que as Agências estão fazendo do total de mortos e feridos. CORTAR todas as notícias relativas a violências executadas sobre os pretos pelos brancos. Não dar publicidade às atitudes anti-nativas das tropas locais europeias na repressão da revolta. Não dar notícias sobre tiroteio ou fogo aberto sobre multidões a fim de evitar especulações. Não há inconveniente em que se relatem violências exercidas pelos negros sobre os brancos nem que se diga que os motins são instigados pelos comunistas”.
É exemplar esta orientação noticiosa do regime de Salazar. Veja-se a duplicidade: nada de relatar violências dos brancos sobre os negros mas não há inconveniente em relatar violências dos negros sobre os brancos. Esta orientação é exemplar também por tudo o mais que pede: a negação total da verdade e a permissão política para criar uma mentira que passe por verdade. Imagine-se alguém, na altura, a dizer-se bem informado sobre o que se tinha passado na Niassalândia baseado na informação dada pelos órgãos de comunicação social!
Comissão de Exame Prévio do Porto. Telegramas telefonados ao JN, de 05/01/1967 a 24/04/1974:
De entre todos os telegramas referidos, seleccionei 62 dos 112 relacionados com a política ultramarina portuguesa e a guerra colonial.
30/4/67. «Pampilhosa. Actos de loucura de um sargento do exército. Não dizer que é sargento do exército. Senhora de Vila Maior, S. Pedro do Sul, morreu ao tomar conhecimento de que o filho embarcava para o Ultramar. Não falar em Ultramar. (…)»
10/11/67. «A Direcção dos Serviços de Censura pede aos jornais que, ao referirem-se à política portuguesa em África nunca digam: política do Governo. É que isso pode induzir em erro os estrangeiros, levando-os a crer que se trata de uma política de facção. Por isso convém: política portuguesa em África e política de Portugal em África.»
6/6/68. «O bispo de Carmona, D. Francisco da Mata Mourisca, efectuou (…) uma conferência sobre o 3º Congresso Mundial de Apostolado dos Leigos – CORTAR TUDO. (…).
30/7/68. «Em Soutelo, uma rapariga suicidou-se depois do namorado ter seguido para Angola, mobilizado. Não falar na ida para Angola. (…).»
6/8/68. «Forças rodesianas ou sul-africanas (passagem pelo nosso território) – CORTAR. (…).»
14/9/68. «Na Candeia-Bar foi preso um rapazola que ali praticou distúrbios. Não dizer que regressou há pouco do Ultramar. (…).»
22/2/69. «O ministro da Defesa pede que não se noticie o aparecimento dos corpos irreconhecíveis de militares mortos na Guiné. (…).»
30/10/69. «Quanto ao Ultramar – NADA. Verbas despendidas na Defesa – NADA. (…).
12/1/70. «Na posse do 2º comandante da PSP de Lisboa – disse-se que ele já fez três comissões de serviço no Ultramar, a primeira logo na “eclosão da guerra”. Ora, não há guerra. Não se pode dizer isso. Deve ter sido confusão do repórter … (…).» [Depois de 9 anos de guerra, não se pode dizer que há guerra !!! ... ]
20/1/70. (…). Agressão mortal a um soldado indígena – não dizer, em título, que o morto era soldado. (…).»
2/7/70. «O Papa recebeu, no Vaticano, terroristas portugueses – CORTAR TUDO. MUITO CUIDADO. (…)»
4/7/70. «Nota do Ministério dos Negócios Estrangeiros acerca da audiência concedida pelo Papa a chefes terroristas de Angola, Guiné e Moçambique – CORTAR o último período: “Por esse motivo o governo entende que não podem tais factos deixar de ser levados, desde já, ao conhecimento da Nação.” (…)» [Até comunicados do Governo eram censurados!]
9/7/70. «Entrevista do general Deslandes, em Moçambique – CORTAR referência à necessidade de 1 milhão de europeus. (…)»
13/11/70. O bispo do Porto visitou, na cadeia de Caxias, o Rev. Mário de Oliveira – CORTAR. (…).» [Mais conhecido por padre Mário da Lixa, foi capelão militar em Mansoa (BCaç. 1912), de Novembro/1967 a Março/1968. É membro deste blogue.]
18/11/70. «Julgamento de um alferes miliciano considerado responsável por um desastre em que morreram 47 militares. Só pode sair a composição do Tribunal, nomes de advogados e a sentença. (…).»
22/11/70. «Regresso do Niassa a Cascais para desembarcar um furriel ferido. Não dizer que foram a bordo almirantes ou autoridades. (…).»
15/12/70. «Assembleia Nacional. Deputado falou do progresso de Angola, mas disse que ainda há travões. Em título ou subtítulo – não falar em travões. (…)»
23/12/70. «Oferta de auxílio militar da África do Sul a Portugal. Poderá ser: “Portugal recusou auxílio militar da África do Sul”. (…)»
21/1/71. «No Supremo Tribunal de Justiça foi julgado o recurso de um chefe de posto de Angola que bateu num preto e o preto veio a falecer. Foi julgado e condenado – CORTE TOTAL. (…)»
23/3/71. «Criança morta em Guimarães. Lançou uma granada à lareira. Não pode sair em título: “Recordação do Ultramar”, como um jornal de Lisboa pretendeu pôr. (…).»
14/5/71.«Não pôr, em título, 1 milhão e meio de contos para acorrer a despesas da Armada e da Aeronáutica. (…).»
12/6/71. «Foguetões na Guiné. Não usar: “Bissau alvejada por foguetões de longo alcance”. Desvio de táxi aéreo para o Congo – Não falar, em título, no alferes miliciano. (…).»
24/6/71. «(…). Tenente do exército, agora regressado do Ultramar, António Madeira, suicidou-se. Lançou-se, de uma janela da pensão, à rua – CORTAR TUDO. (…).»
31/7/71. «Angoche – não se pode publicar notícia alguma. Só notas oficiosas. (…)»
15/9/71. «Em Tete um automóvel terá tocado numa mina, morrendo os ocupantes. É para CORTAR. (…).»
7/11/71. «Amílcar Cabral nos Estados Unidos – CORTAR. (…)»
2/12/71. «(…). Não destacar os títulos da intervenção do almirante Reboredo e Silva sobre a chefia política e militar em Angola e Moçambique. (…)»
14/12/71. «Sessão de homenagem aos combatentes do Ultramar, em Viana do Castelo (Câmara ou Governo Civil) – MANDAR. É que parece que só apareceu um mutilado porque os outros faltaram, visto terem recebido convites para a sessão mas não para o banquete… (…).»
10/1/72. «(…). Candidatura independente pelo círculo da Guiné do Dr. Baticão [sic] Ferreira ou qualquer homenagem a ele – TUDO CORTADO. (…)»
22/1/72. «(…). Soldado da Guiné escreveu uma carta aos jornais dizendo que esteve ferido e ninguém ligava às suas exposições.SUSPENDER.(…).»
17/2/72. «Proposto o bloqueio dos portos de Lourenço Marques e Beira. Não pôr, em título, bloqueio. Um título que não chame a atenção.(…)»
14/3/72. «Visita do ministro da Defesa ao Quartel-General do Porto. Ele disse: “há toda a conveniência em eliminar problemas criados em unidades da Metrópole que se reflectem grandemente no Ultramar”. Esta parte é CORTADA TOTALMENTE. (…).»
14/4/72. «Inspecções militares em Chaves. (…) não pôr em título que os aleijados substituem os sãos. É verdade. Passou-se. Mas … (…).»
9/6/72. «Assalto em Sintra. Não dizer que os autores desertaram, quando em serviço em unidades combatentes na Guiné. (…).»
7/8/72. «Presença do ministro das Finanças de França (Giscard d’Estaing) no continente e no Ultramar – NADA. (…)»
3/9/72. «Homenagem em Angola ao coronel Rebocho Vaz. Não pode sair qualquer referência ao facto de o jantar lhe ter sido oferecido por haver terminado a sua comissão de serviço. (…)»
6/10/72. «Quanto ao ministro Iam Smith, não dizer que no regresso está prevista uma reunião com o presidente do Conselho, ou que a vinda dele cá seria para um acordo prevendo a intensificação da luta contra o terrorismo. (…).
7/10/72. «Comunicado das Forças Armadas de Moçambique sobre dois acidentes de viação. No título pôr só “Comunicado”. Não se pode falar em mortos. (…).»
13/11/72. «Avião desviado pelos pretos – CUIDADO com os títulos. (…)»
25/11/72. «Carta aberta de capelães militares – MANDAR. (…).»
21/1/73. «Sobre a morte de Amílcar Cabral pode sair o que consta dos telegramas. Pode ser na 1ª página com o relevo que entenderem – duas ou três colunas. (…). Comentários é que terão de ser MANDADOS.(…)»
1/2/73. «(…). Amílcar Cabral é assunto que morreu. Não se pode falar mais. (…)»
7/2/73. «(…). Caso do avião que foi para Tânger. Não dizer que o piloto é cabo miliciano. (…).»
5/3/73. «(…). Rui Patrício. Qualquer referência a que a viagem à África do Sul é motivada pelo “aumento de tensão nas fronteiras setentrionais da Rodésia e de Moçambique” – CORTAR. (…)»
27/3/73. «O Diário Popular queria dar uma notícia muito grande sobre as regalias que os Estados Unidos concedem (muitas) aos desmobilizados do Vietname – CORTAR. (…)»
21/5/73. «Relato da reunião da Assembleia Legislativa da Guiné. Discurso do padre Cruz Amaral – MANDAR. Tem CORTES. (…). Dr. Ornelas.»
23/5/73. «Ajudas de custo mais altas para os militares. No título, não pôr mais altas. Só ajudas de custo para militares. (…).»
6/6/73. «Telegrama sobre o Congresso dos Combatentes. 400 combatentes da Guiné contra o Congresso – MANDAR para CORTAR. (…).»
22/8/73. «Oficiais milicianos. O decreto pode publicar-se. Mas sem comentários. (…).»
3/9/73. «Comunicado do Episcopado de Moçambique sobre o alegado massacre [Wiriamu] – TOTALMENTE PROIBIDO. (…).»
5/11/73. «Permanência em Portugal do ministro das Finanças da África do Sul – PROIBIDO. Só é autorizado a sua partida. (…)» 7/11/73. «Relatório da Diamoc (Diamantes de Moçambique), falando em prejuízos devido ao terrorismo na região de Tete – MANDAR. (…)»
11/12/73. «Racionamento de gasolina no Exército. Circular do Quartel-Mestre General – PROIBIDA. (…).»
3/1/74.«De Lisboa mandaram avisar todos os jornais: “Não é autorizada a publicação de qualquer comunicado ou notícia referentes a problemas de carreira militar ou de situação de qualquer categoria das Forças Armadas. (…).»
21/1/74. «Adis-Abeba estuda embargo de petróleo a Portugal – não referir, em título, “a Portugal”. (…)»
14/2/74. «Artigo de um jornalista francês que esteve em Timor - TRANSCRIÇÃO PROIBIDA. Dizia mal de nós e que os indonésios não tinham desistido de ocupar Timor. (…)»
2/3/74. «Africanos na Sociedade das Nações [sic]. Não lhes chamar, em título, nacionalistas. (…)»
16/3/74 .« (…). 0.45: Demissão de Costa Gomes e António Spínola – EMBARGO até às 5 horas da manhã. Se o jornal sair antes, não pode.» 1.10: «O caso de Lamego é para PROIBIR. Quanto ao caso das Caldas da Rainha parece que o senhor director do EXAME PRÉVIO vai autorizar mais qualquer coisa. Mas ainda não se sabe o que é. Ele ainda está a ler os papéis todos e depois é que dirá. Portanto, mandem o que têm.» (23.35) «Rebentou uma mina entre Viseu e Lamego – feriu um soldado e matou outro. É para PROIBIR. (…).»
19/3/74. «Regresso do general Luz Cunha – PROIBIDA qualquer referência ao Spínola. (…).»
24/3/74. «Acidente de Castelo Branco com camioneta de explosivos. Notícia puramente objectiva. NADA que as pessoas fiquem a pensar que era uma camioneta militar.(…).»
11/4/74. «Niassa – já se pode dizer que saiu. Notícia pequena. O barco só largou às 23 horas por ter tido necessidade de fazer novas provisões para substituir as estragadas pela explosão. Quanto aos nomes dos feridos – NADA! (…).»
18/4/74. « (…). Confraternização dos alunos do Colégio Militar – PROIBIDAS indicações dos nomes dos oficiais que fizeram parte do curso X ou do curso Y. Isto para não referir os assuntos que os senhores têm de MANDAR SEMPRE CÁ, mas que às vezes se esquecem … (…).»
Por esta pequena amostra (só de um jornal) ficamos a perceber um pouco da política governamental usada para ocultar da opinião pública a verdade sobre o que se passava no âmbito militar/guerra no ultramar.
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Nota do editor
Último poste da série de 23 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14400: Notas de leitura (695): "Império Ultramarino Português", Empresa Nacional de Publicidade, 1950 (1) (Mário Beja Santos)
Meus caros editores:
A leitura do livro "Os Segredos da Censura", de César Príncipe, levou-me a redigir este texto.
Acho que o tema tem algum interesse mas o texto está um pouco comprido. Eu bem tentei mas não consegui pô-lo mais curto nem saber por onde o separar para publicação em duas partes.
Se no vosso entender for publicável, estejam à vontade no seu modo de edição.
Muito obrigado pelo vosso trabalho. Nem imaginam quanto vos estou grato e vos admiro!
Fraternalmente, um grande abraço para cada um de vós, meus caros amigos e camaradas.
Manuel Joaquim
Guerra Colonial
O controlo da informação na política ultramarina portuguesa
Manuel Joaquim
Durante os governos de Salazar e de Caetano, um dos meios usados para controlar politicamente o país era o exame prévio da matéria que os órgãos de informação quisessem publicar. Para isso havia uma “Comissão de Censura”, nome alterado por M. Caetano para “Comissão de Exame Prévio”. Esta Comissão vigiava todo o tipo de informação, desde a escrita (jornais, livros e revistas, etc.) até à radiofónica e televisiva. Também as artes e espectáculos estavam sujeitos ao mesmo exame prévio (teatro, cinema, canções, cartazes, etc.). Era proibida a publicação ou a exibição de tudo o que a “Censura” achasse não estar de acordo com as ideias do poder vigente (político e religioso).
A este propósito tenho presente o livro do jornalista César Príncipe, “OS SEGREDOS DA CENSURA” (3ª edição, 1994). Nele estão transcritos os telegramas telefonados pela Comissão de Exame Prévio do Porto para o Jornal de Notícias (JN) desde 05/01/1967 até 24/04/1974, assim como “Circulares dos Correios e Telecomunicações de Portugal sobre livros e revistas proibidos de circular” emitidas nos anos 1970 a 1974.
São quase sete centenas de telegramas e é de ficar de boca aberta perante o que neles se lê. Tendo sido dirigidos a um só jornal e num certo período de tempo, podemos imaginar a enormidade da soma de todos os telegramas deste género enviados pelos “coronéis da censura” para todos os órgãos de informação, durante as dezenas de anos de vigência do regime do Estado Novo!
Capa de "OS SEGREDOS DA CENSURA", de César Príncipe
Editorial Caminho - 156 páginas - 3ª edição, 1994
Pelos referidos telegramas se vê que tudo era assunto sujeito a censura prévia: qualquer tipo de ideologia e actividade políticas, órgãos de comunicação social, trabalho e relações laborais, religião, epidemias, desastres naturais, guerras, fome, apoios sociais, cooperativas, aumentos de preços, barracas, abortos, emigração, ensino, suicídios, adultérios, homossexualidade, proxenetismo, prostituição, pedofilia, assassínios, fraudes, roubos, etc. etc. O resultado de tudo isto foi a criação de um país-ficção, um país idealizado e propagandeado pelo Governo como um país exemplar habitado por um povo exemplar. A verdade do país real era bem diferente.
Para o Governo de então, não havia guerra no Ultramar mas acções de manutenção da ordem pública. Portugal nunca admitiu, oficialmente, a existência de guerra nas colónias portuguesas em África. Veja-se este telegrama da Comissão de Exame Prévio, dirigido ao JN em 12-01-1970:
«Na posse do 2.º comandante da PSP de Lisboa – disse-se que ele já fez três comissões de serviço no Ultramar, a primeira “logo na eclosão da guerra”. Ora, não há guerra. Não se pode dizer isso. Deve ter sido confusão do repórter … Coronel Saraiva.»
Repare-se na data, Janeiro de 1970! O Governo continuava a dizer que não havia guerra, nove anos depois dela iniciada! “Deve ter sido confusão do repórter” – ironiza (?) o coronel censor!
Numa recente emissão da RTP, onde se falava de “mulheres na guerra colonial”, a esposa de um combatente diz que ao chegar a Lourenço Marques alguém lhe disse que não havia guerra nenhuma em Moçambique, que essa ideia de guerra era uma invenção dos militares para justificarem a sua presença ali, o que eles queriam era ganhar bom dinheiro. De nada lhe valeu reafirmar a certeza de que o marido estava mesmo a combater.
Também recentemente o historiador António Costa Pinto disse que a gravidade da guerra colonial passou despercebida a muita gente em Angola e Moçambique. Disse-o na apresentação de um estudo sobre a chamada “população retornada” que, no fim da guerra, abandonou precipitadamente os territórios africanos. Gente que vivia alheada do conflito bélico, com pouca ou mesmo nenhuma consciência dos perigos que a guerra representava para o seu futuro, foi violentamente surpreendida pelo processo de descolonização e pelo modo como esta foi feita. A verdade do que se passava tinha-lhes passado ao lado. E não só por sua culpa mas também por causa do minucioso controlo oficial da informação, falada e escrita. Tudo isto lhes criou uma falsa realidade, o que em grande parte poderá explicar o seu não entendimento dos problemas político-sociais que depois as atingiriam.
Percebo agora a verdade de uma frase ouvida algumas vezes a pessoas escorraçadas de África, após o fim da guerra colonial: “nunca pensei que isto (me, nos) pudesse acontecer”.
Mas não foi só nos palcos de guerra que isto aconteceu. Também na então chamada “Metrópole” aconteceu algo parecido. O poder político tentava impedir que se viesse a criar uma consciência nacional do que se passava nos palcos de guerra em África.
É verdade que os ex-combatentes regressados traziam milhares de notícias sobre a realidade do que se passava na guerra colonial. Mas, como todos sabemos hoje, a maior parte deles portou-se como se tivesse assinado um pacto de silêncio sobre a guerra, muitas vezes só quebrado no seio da própria família. Esquecer os seus tempos de combatente era o que mais queria e o mais depressa possível.
Assim, as reais histórias da guerra iam ficando abafadas. Só passavam notícias, crónicas e reportagens que estivessem devidamente alinhadas com a política em vigor e cuja divulgação não viesse alterar a pacatez da vida pública e social e não causasse contestação à política seguida pelo Governo. Quem quisesse falar publicamente da sua vida de combatente, só com muita sorte não seria incomodado se esses seus relatos fossem contra a orientação governamental.
O país, em geral, não tinha grande noção do que se passava em África com os seus combatentes. À primeira vista, não havia notícias de mortos e feridos já que era difícil encontrá-las nos órgãos de informação. Os nomes dos militares falecidos eram divulgados em sintéticos comunicados do Serviço de Informação Pública das Forças Armadas e publicados num pequeno e obscuro espaço de um ou outro jornal.
Tudo se fazia para fazer crer que a chamada guerra do ultramar pouco mais era que um conjunto de fortes escaramuças, a deixarem de existir mais dia menos dia.
“Se não há guerra, não há combatentes”. Foi esta orientação que impediu a criação oficial da figura cívica de “ex-combatente do ultramar” e a sua agregação em associação de veteranos de guerra. Era politicamente perigosa tal instituição pelo que poderia fazer na divulgação da verdade do que se passava. E economicamente também o seria. Veja-se a este propósito o telegrama de 27/03/1973, enviado ao JN:
«O Diário Popular queria dar uma notícia muito grande sobre as regalias que os Estados Unidos concedem (muitas) aos desmobilizados do Vietnam – CORTAR. Dr. Ornelas». “Muitas” regalias, diz o censor.
Em Março de 1964, a Comissão de Censura definia assim o modo de tratamento das notícias sobre um levantamento popular em Moçambique, na área do Niassa:
“Quanto aos acontecimentos na Niassalândia (Moçambique), eliminar as estatísticas que as Agências estão fazendo do total de mortos e feridos. CORTAR todas as notícias relativas a violências executadas sobre os pretos pelos brancos. Não dar publicidade às atitudes anti-nativas das tropas locais europeias na repressão da revolta. Não dar notícias sobre tiroteio ou fogo aberto sobre multidões a fim de evitar especulações. Não há inconveniente em que se relatem violências exercidas pelos negros sobre os brancos nem que se diga que os motins são instigados pelos comunistas”.
É exemplar esta orientação noticiosa do regime de Salazar. Veja-se a duplicidade: nada de relatar violências dos brancos sobre os negros mas não há inconveniente em relatar violências dos negros sobre os brancos. Esta orientação é exemplar também por tudo o mais que pede: a negação total da verdade e a permissão política para criar uma mentira que passe por verdade. Imagine-se alguém, na altura, a dizer-se bem informado sobre o que se tinha passado na Niassalândia baseado na informação dada pelos órgãos de comunicação social!
Comissão de Exame Prévio do Porto. Telegramas telefonados ao JN, de 05/01/1967 a 24/04/1974:
De entre todos os telegramas referidos, seleccionei 62 dos 112 relacionados com a política ultramarina portuguesa e a guerra colonial.
30/4/67. «Pampilhosa. Actos de loucura de um sargento do exército. Não dizer que é sargento do exército. Senhora de Vila Maior, S. Pedro do Sul, morreu ao tomar conhecimento de que o filho embarcava para o Ultramar. Não falar em Ultramar. (…)»
10/11/67. «A Direcção dos Serviços de Censura pede aos jornais que, ao referirem-se à política portuguesa em África nunca digam: política do Governo. É que isso pode induzir em erro os estrangeiros, levando-os a crer que se trata de uma política de facção. Por isso convém: política portuguesa em África e política de Portugal em África.»
6/6/68. «O bispo de Carmona, D. Francisco da Mata Mourisca, efectuou (…) uma conferência sobre o 3º Congresso Mundial de Apostolado dos Leigos – CORTAR TUDO. (…).
30/7/68. «Em Soutelo, uma rapariga suicidou-se depois do namorado ter seguido para Angola, mobilizado. Não falar na ida para Angola. (…).»
6/8/68. «Forças rodesianas ou sul-africanas (passagem pelo nosso território) – CORTAR. (…).»
14/9/68. «Na Candeia-Bar foi preso um rapazola que ali praticou distúrbios. Não dizer que regressou há pouco do Ultramar. (…).»
22/2/69. «O ministro da Defesa pede que não se noticie o aparecimento dos corpos irreconhecíveis de militares mortos na Guiné. (…).»
30/10/69. «Quanto ao Ultramar – NADA. Verbas despendidas na Defesa – NADA. (…).
12/1/70. «Na posse do 2º comandante da PSP de Lisboa – disse-se que ele já fez três comissões de serviço no Ultramar, a primeira logo na “eclosão da guerra”. Ora, não há guerra. Não se pode dizer isso. Deve ter sido confusão do repórter … (…).» [Depois de 9 anos de guerra, não se pode dizer que há guerra !!! ... ]
20/1/70. (…). Agressão mortal a um soldado indígena – não dizer, em título, que o morto era soldado. (…).»
2/7/70. «O Papa recebeu, no Vaticano, terroristas portugueses – CORTAR TUDO. MUITO CUIDADO. (…)»
4/7/70. «Nota do Ministério dos Negócios Estrangeiros acerca da audiência concedida pelo Papa a chefes terroristas de Angola, Guiné e Moçambique – CORTAR o último período: “Por esse motivo o governo entende que não podem tais factos deixar de ser levados, desde já, ao conhecimento da Nação.” (…)» [Até comunicados do Governo eram censurados!]
9/7/70. «Entrevista do general Deslandes, em Moçambique – CORTAR referência à necessidade de 1 milhão de europeus. (…)»
13/11/70. O bispo do Porto visitou, na cadeia de Caxias, o Rev. Mário de Oliveira – CORTAR. (…).» [Mais conhecido por padre Mário da Lixa, foi capelão militar em Mansoa (BCaç. 1912), de Novembro/1967 a Março/1968. É membro deste blogue.]
18/11/70. «Julgamento de um alferes miliciano considerado responsável por um desastre em que morreram 47 militares. Só pode sair a composição do Tribunal, nomes de advogados e a sentença. (…).»
22/11/70. «Regresso do Niassa a Cascais para desembarcar um furriel ferido. Não dizer que foram a bordo almirantes ou autoridades. (…).»
15/12/70. «Assembleia Nacional. Deputado falou do progresso de Angola, mas disse que ainda há travões. Em título ou subtítulo – não falar em travões. (…)»
23/12/70. «Oferta de auxílio militar da África do Sul a Portugal. Poderá ser: “Portugal recusou auxílio militar da África do Sul”. (…)»
21/1/71. «No Supremo Tribunal de Justiça foi julgado o recurso de um chefe de posto de Angola que bateu num preto e o preto veio a falecer. Foi julgado e condenado – CORTE TOTAL. (…)»
23/3/71. «Criança morta em Guimarães. Lançou uma granada à lareira. Não pode sair em título: “Recordação do Ultramar”, como um jornal de Lisboa pretendeu pôr. (…).»
14/5/71.«Não pôr, em título, 1 milhão e meio de contos para acorrer a despesas da Armada e da Aeronáutica. (…).»
12/6/71. «Foguetões na Guiné. Não usar: “Bissau alvejada por foguetões de longo alcance”. Desvio de táxi aéreo para o Congo – Não falar, em título, no alferes miliciano. (…).»
24/6/71. «(…). Tenente do exército, agora regressado do Ultramar, António Madeira, suicidou-se. Lançou-se, de uma janela da pensão, à rua – CORTAR TUDO. (…).»
31/7/71. «Angoche – não se pode publicar notícia alguma. Só notas oficiosas. (…)»
15/9/71. «Em Tete um automóvel terá tocado numa mina, morrendo os ocupantes. É para CORTAR. (…).»
7/11/71. «Amílcar Cabral nos Estados Unidos – CORTAR. (…)»
2/12/71. «(…). Não destacar os títulos da intervenção do almirante Reboredo e Silva sobre a chefia política e militar em Angola e Moçambique. (…)»
14/12/71. «Sessão de homenagem aos combatentes do Ultramar, em Viana do Castelo (Câmara ou Governo Civil) – MANDAR. É que parece que só apareceu um mutilado porque os outros faltaram, visto terem recebido convites para a sessão mas não para o banquete… (…).»
10/1/72. «(…). Candidatura independente pelo círculo da Guiné do Dr. Baticão [sic] Ferreira ou qualquer homenagem a ele – TUDO CORTADO. (…)»
22/1/72. «(…). Soldado da Guiné escreveu uma carta aos jornais dizendo que esteve ferido e ninguém ligava às suas exposições.SUSPENDER.(…).»
17/2/72. «Proposto o bloqueio dos portos de Lourenço Marques e Beira. Não pôr, em título, bloqueio. Um título que não chame a atenção.(…)»
14/3/72. «Visita do ministro da Defesa ao Quartel-General do Porto. Ele disse: “há toda a conveniência em eliminar problemas criados em unidades da Metrópole que se reflectem grandemente no Ultramar”. Esta parte é CORTADA TOTALMENTE. (…).»
14/4/72. «Inspecções militares em Chaves. (…) não pôr em título que os aleijados substituem os sãos. É verdade. Passou-se. Mas … (…).»
9/6/72. «Assalto em Sintra. Não dizer que os autores desertaram, quando em serviço em unidades combatentes na Guiné. (…).»
7/8/72. «Presença do ministro das Finanças de França (Giscard d’Estaing) no continente e no Ultramar – NADA. (…)»
3/9/72. «Homenagem em Angola ao coronel Rebocho Vaz. Não pode sair qualquer referência ao facto de o jantar lhe ter sido oferecido por haver terminado a sua comissão de serviço. (…)»
6/10/72. «Quanto ao ministro Iam Smith, não dizer que no regresso está prevista uma reunião com o presidente do Conselho, ou que a vinda dele cá seria para um acordo prevendo a intensificação da luta contra o terrorismo. (…).
7/10/72. «Comunicado das Forças Armadas de Moçambique sobre dois acidentes de viação. No título pôr só “Comunicado”. Não se pode falar em mortos. (…).»
13/11/72. «Avião desviado pelos pretos – CUIDADO com os títulos. (…)»
25/11/72. «Carta aberta de capelães militares – MANDAR. (…).»
21/1/73. «Sobre a morte de Amílcar Cabral pode sair o que consta dos telegramas. Pode ser na 1ª página com o relevo que entenderem – duas ou três colunas. (…). Comentários é que terão de ser MANDADOS.(…)»
1/2/73. «(…). Amílcar Cabral é assunto que morreu. Não se pode falar mais. (…)»
7/2/73. «(…). Caso do avião que foi para Tânger. Não dizer que o piloto é cabo miliciano. (…).»
5/3/73. «(…). Rui Patrício. Qualquer referência a que a viagem à África do Sul é motivada pelo “aumento de tensão nas fronteiras setentrionais da Rodésia e de Moçambique” – CORTAR. (…)»
27/3/73. «O Diário Popular queria dar uma notícia muito grande sobre as regalias que os Estados Unidos concedem (muitas) aos desmobilizados do Vietname – CORTAR. (…)»
21/5/73. «Relato da reunião da Assembleia Legislativa da Guiné. Discurso do padre Cruz Amaral – MANDAR. Tem CORTES. (…). Dr. Ornelas.»
23/5/73. «Ajudas de custo mais altas para os militares. No título, não pôr mais altas. Só ajudas de custo para militares. (…).»
6/6/73. «Telegrama sobre o Congresso dos Combatentes. 400 combatentes da Guiné contra o Congresso – MANDAR para CORTAR. (…).»
22/8/73. «Oficiais milicianos. O decreto pode publicar-se. Mas sem comentários. (…).»
3/9/73. «Comunicado do Episcopado de Moçambique sobre o alegado massacre [Wiriamu] – TOTALMENTE PROIBIDO. (…).»
5/11/73. «Permanência em Portugal do ministro das Finanças da África do Sul – PROIBIDO. Só é autorizado a sua partida. (…)» 7/11/73. «Relatório da Diamoc (Diamantes de Moçambique), falando em prejuízos devido ao terrorismo na região de Tete – MANDAR. (…)»
11/12/73. «Racionamento de gasolina no Exército. Circular do Quartel-Mestre General – PROIBIDA. (…).»
3/1/74.«De Lisboa mandaram avisar todos os jornais: “Não é autorizada a publicação de qualquer comunicado ou notícia referentes a problemas de carreira militar ou de situação de qualquer categoria das Forças Armadas. (…).»
21/1/74. «Adis-Abeba estuda embargo de petróleo a Portugal – não referir, em título, “a Portugal”. (…)»
14/2/74. «Artigo de um jornalista francês que esteve em Timor - TRANSCRIÇÃO PROIBIDA. Dizia mal de nós e que os indonésios não tinham desistido de ocupar Timor. (…)»
2/3/74. «Africanos na Sociedade das Nações [sic]. Não lhes chamar, em título, nacionalistas. (…)»
16/3/74 .« (…). 0.45: Demissão de Costa Gomes e António Spínola – EMBARGO até às 5 horas da manhã. Se o jornal sair antes, não pode.» 1.10: «O caso de Lamego é para PROIBIR. Quanto ao caso das Caldas da Rainha parece que o senhor director do EXAME PRÉVIO vai autorizar mais qualquer coisa. Mas ainda não se sabe o que é. Ele ainda está a ler os papéis todos e depois é que dirá. Portanto, mandem o que têm.» (23.35) «Rebentou uma mina entre Viseu e Lamego – feriu um soldado e matou outro. É para PROIBIR. (…).»
19/3/74. «Regresso do general Luz Cunha – PROIBIDA qualquer referência ao Spínola. (…).»
24/3/74. «Acidente de Castelo Branco com camioneta de explosivos. Notícia puramente objectiva. NADA que as pessoas fiquem a pensar que era uma camioneta militar.(…).»
11/4/74. «Niassa – já se pode dizer que saiu. Notícia pequena. O barco só largou às 23 horas por ter tido necessidade de fazer novas provisões para substituir as estragadas pela explosão. Quanto aos nomes dos feridos – NADA! (…).»
18/4/74. « (…). Confraternização dos alunos do Colégio Militar – PROIBIDAS indicações dos nomes dos oficiais que fizeram parte do curso X ou do curso Y. Isto para não referir os assuntos que os senhores têm de MANDAR SEMPRE CÁ, mas que às vezes se esquecem … (…).»
Por esta pequena amostra (só de um jornal) ficamos a perceber um pouco da política governamental usada para ocultar da opinião pública a verdade sobre o que se passava no âmbito militar/guerra no ultramar.
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Nota do editor
Último poste da série de 23 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14400: Notas de leitura (695): "Império Ultramarino Português", Empresa Nacional de Publicidade, 1950 (1) (Mário Beja Santos)
Guiné 63/74 - P14403: Blogpoesia (407): "Saio sempre de madrugada" (J.L. Mendes Gomes)
1. Em mensagem de 18 de Março de 2015, o nosso camarada Joaquim Luís
Mendes Gomes (ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66),
enviou-nos um poema da sua autoria, intitulado "Saio sempre de madrugada"
saio sempre de madrugada...
como o pescador
que vai para o mar.
sem bússola,
nem carta de marear.
só levo a rede fina
para pescar a maresia.
preciso inspirar o ar
que anda bailando
sobre as ondas.
me inflame as velas
e que meu barco vá
de vento em popa.
me chega um só poema,
seja belo,
mesmo sem rimas...
para eu levar à costa.
quero soltá-lo a bailar ao vento.
seja um regalo lindo
para toda a gente.
quem é que não gosta?...
Berlin, 18 de Março de 2015
8h46m
Joaquim Luís Mendes Gomes
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Nota do editor
Último poste da série de 21 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14393: Blogpoesia (406): "Tranquilidade das águas" e "O rio da história", dois poemas para o Dia Mundial da Poesia (J.L. Mendes Gomes)
saio sempre de madrugada...
como o pescador
que vai para o mar.
sem bússola,
nem carta de marear.
só levo a rede fina
para pescar a maresia.
preciso inspirar o ar
que anda bailando
sobre as ondas.
me inflame as velas
e que meu barco vá
de vento em popa.
me chega um só poema,
seja belo,
mesmo sem rimas...
para eu levar à costa.
quero soltá-lo a bailar ao vento.
seja um regalo lindo
para toda a gente.
quem é que não gosta?...
Berlin, 18 de Março de 2015
8h46m
Joaquim Luís Mendes Gomes
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Nota do editor
Último poste da série de 21 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14393: Blogpoesia (406): "Tranquilidade das águas" e "O rio da história", dois poemas para o Dia Mundial da Poesia (J.L. Mendes Gomes)
Guiné 63/74 - P14402: Parabéns a você (878): Braima Djaura, ex-Soldado Condutor Auto Rodas da CCAÇ 19 (Guiné, 1972/74)
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Nota do editor
Último poste da série de 22 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14396: Parabéns a você (877): José Lino Oliveira, ex-Fur Mil Amanuense do BCAÇ 4612/74 (Guiné, 1974)
Nota do editor
Último poste da série de 22 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14396: Parabéns a você (877): José Lino Oliveira, ex-Fur Mil Amanuense do BCAÇ 4612/74 (Guiné, 1974)
segunda-feira, 23 de março de 2015
Guiné 63/74 - P14401: Convívios (660): Rescaldo do último Encontro da Magnífica Tabanca da Linha, levado a efeito no passado dia 19 de Março (José Manuel Matos Dinis)
1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), actualmente Amanuense da Magnífica Tabanca da Linha, com data de 20 de Março de 2015:
No passado domingo, dia 15, recebi um surpreendente telefonema de um camarada muito estimado, cronista consagrado de estórias de antanho em confronto com a vida moderna de uma remota localidade transmontana, Brunhoso, mas também atento observador da vida moderna, em todos os seus contornos, não só rústicos, mas também cosmopolitas, onde se mostram as tendências de uma comunidade, e onde se acumulam as mais impertinentes manifestações de vaidade e inocuidade. O Francisco Baptista tem sabido lidar com as diferenças, e ainda poupa a sociedade moderna ao confronto com a sociedade de onde provém, onde se cultivavam valores e raízes.
No meio de um supermercado da capital tive a primeira oportunidade de manter uma animada conversa com ele. Falámos do Blogue, de alguns dos seus proeminentes membros, de encontros, e de matérias em que nos envolvemos. Mas também falámos de nós, do que nos anima e interessa, acabando com o desejo recíproco de provocarmos um encontro. Mas o que o Francisco queria dizer, é que tinha um grande desejo de vir ao encontro da Magnífica, mas as forças locais estavam a oferecer-lhe alguma resistência para a concessão da necessária autorização. Fronteiras do norte, claro!
Ontem, durante o encontro, citei várias outras mensagens ao pessoal, da parte de camaradas que não puderam comparecer, mas, amigavelmente, manifestaram votos de tudo decorresse com agrado geral. Foi o caso dos seguintes camaradas: o João Sacoto; o João José Martins; o Miguel Rocha, e, finalmente, o Marcelino da Mata que foi obrigado a desmarcar por força duma rara consulta médica para que foi convocado. Mereceram a atenção geral.
O dia estava bom, com temperatura agradável, que não era afectada pela suave brisa atlântica, e a luz era bastante clara, como que a sugerir a primavera que o encontro antecipou. Dois dias antes, por telefone, confirmei que estava tudo okay. Porém, na hora. veio a verificar-se que não estava, o que causou o desagrado geral, na medida em que o pessoal reivindica os direitos adquiridos sobre os mimos já alcançados, bom serviço, bom preço, e boa pinga, a célebre Esteva. O vinho sobre as mesas, com as garrafas já abertas, era da Casa Messias, mas do desagrado geral. Diligenciaram a substituição em poucos minutos provinda do Guincho, mas veio alguma coisa da região de Setúbal, um vinho escuro, áspero, só para pessoal de barba e palato rijo. Depois constatámos a falta de dois elementos, um na cozinha, outro na sala, a que se juntou uma outra confusão com a atribuição de uma dose para seis, numa mesa de 3, e vice-versa. O Senhor Comandante reagiu mal, pois até ele era afectado. A comida apresentou-se ao nível costumeiro. Logo se decidiu que o próximo encontro realizar-se-á noutro local.
Tiraram-se fotografias, e conviveu-se, com a dificuldade de serem convívios restritos à proximidade de cada mesa, e ao que era possível nos intervalos. Eu tive que sair mais cedo, 3 camaradas acompanharam-me, pois entreguei-lhes as chaves de casa para terem o que fazer, e fui avaliar a reparação de um estrago que fiz há dias atrás. Abalei preocupado, pois se os três gentios descobrissem onde guardo o melhor produto embotelhado, ficaria a chupar o dedo, dadas as evidentes facilidades de arrumação dos individuos, o João António e o Carlos Santa, apesar do perigo maior vir do perigoso lingrinhas To Zé Castanheira. Quando cheguei a casa, estavam encostados ao carro, no estacionamento, pois não tinham dado com as chaves acertadas. Já iam lindos, como se infere com facilidade. Mamaram um terço de uma Canadian Clube, deixaram-me para o jantar o equivalente a um copinho de Esteva, aberto na ocasião, e, tanto eu, como o João António, tomámos dois cálices de uma reserva Portal, que há una anos trouxe da adega. A minha psicóloga teve que ir perto de S. João das Lampas, no concelho de Sintra, buscar o neto que ali mora e frequenta a escola, pelo que ainda salvei uma boa parte dos líquidos disponibilizados. Avé!
Logo após os camaradas terem saído, telefonou-me o gerente do restaurante, que pediu desculpa pelas más ocorrências, e a quem comuniquei que vamos para outro azimute na próxima ocasião, mas, posteriormente, voltaremos ao contacto. É que uma mudança de ares pode fazer bem.
Assim, muito mal informado sobre os acontecimentos durante a minha ausência do encontro, não tive qualquer notícia desagradável, pelo que as coisas correram bem, e sei que houve pelo menos um encontro desde há 40 anos. Também tentei ligar ao Luís Graça, que teve a gentiliza de me enviar uma mensagem que só abri à posterior, mas não atendeu, e já era tarde na viragem do dia. Também falei com o Senhor Comandante que se referiu ao azar do serviço, e manifestou-me a preocupação se promoverem encontros mais garantidos, no sentido de proporcionar as melhores condições para convívio. Aceitou o argumento de que Oitavos vai sofrer uma punição, mas que oferece excelentes condições de localização, de estacionamento, de instalação, e tem sido uma excelente relação qualidade/preço. Verá-se, como dizia o outro.
Ainda me recomendou a transmissão de saudações para todos os camaradas do Blogue.
OBS: - Selecção das fotos da responsabilidade do editor
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Nota do editor
Último poste da série de 22 de Março de 2015 > Guiné 63/74 - P14398: Convívios (659): Encontro do pessoal da CCAÇ 816 (Bissorã, Olossato e Mansoa, 1965/67), dia 23 de Maio de 2015 em Fátima (Rui Silva)
No passado domingo, dia 15, recebi um surpreendente telefonema de um camarada muito estimado, cronista consagrado de estórias de antanho em confronto com a vida moderna de uma remota localidade transmontana, Brunhoso, mas também atento observador da vida moderna, em todos os seus contornos, não só rústicos, mas também cosmopolitas, onde se mostram as tendências de uma comunidade, e onde se acumulam as mais impertinentes manifestações de vaidade e inocuidade. O Francisco Baptista tem sabido lidar com as diferenças, e ainda poupa a sociedade moderna ao confronto com a sociedade de onde provém, onde se cultivavam valores e raízes.
No meio de um supermercado da capital tive a primeira oportunidade de manter uma animada conversa com ele. Falámos do Blogue, de alguns dos seus proeminentes membros, de encontros, e de matérias em que nos envolvemos. Mas também falámos de nós, do que nos anima e interessa, acabando com o desejo recíproco de provocarmos um encontro. Mas o que o Francisco queria dizer, é que tinha um grande desejo de vir ao encontro da Magnífica, mas as forças locais estavam a oferecer-lhe alguma resistência para a concessão da necessária autorização. Fronteiras do norte, claro!
Ontem, durante o encontro, citei várias outras mensagens ao pessoal, da parte de camaradas que não puderam comparecer, mas, amigavelmente, manifestaram votos de tudo decorresse com agrado geral. Foi o caso dos seguintes camaradas: o João Sacoto; o João José Martins; o Miguel Rocha, e, finalmente, o Marcelino da Mata que foi obrigado a desmarcar por força duma rara consulta médica para que foi convocado. Mereceram a atenção geral.
O dia estava bom, com temperatura agradável, que não era afectada pela suave brisa atlântica, e a luz era bastante clara, como que a sugerir a primavera que o encontro antecipou. Dois dias antes, por telefone, confirmei que estava tudo okay. Porém, na hora. veio a verificar-se que não estava, o que causou o desagrado geral, na medida em que o pessoal reivindica os direitos adquiridos sobre os mimos já alcançados, bom serviço, bom preço, e boa pinga, a célebre Esteva. O vinho sobre as mesas, com as garrafas já abertas, era da Casa Messias, mas do desagrado geral. Diligenciaram a substituição em poucos minutos provinda do Guincho, mas veio alguma coisa da região de Setúbal, um vinho escuro, áspero, só para pessoal de barba e palato rijo. Depois constatámos a falta de dois elementos, um na cozinha, outro na sala, a que se juntou uma outra confusão com a atribuição de uma dose para seis, numa mesa de 3, e vice-versa. O Senhor Comandante reagiu mal, pois até ele era afectado. A comida apresentou-se ao nível costumeiro. Logo se decidiu que o próximo encontro realizar-se-á noutro local.
Tiraram-se fotografias, e conviveu-se, com a dificuldade de serem convívios restritos à proximidade de cada mesa, e ao que era possível nos intervalos. Eu tive que sair mais cedo, 3 camaradas acompanharam-me, pois entreguei-lhes as chaves de casa para terem o que fazer, e fui avaliar a reparação de um estrago que fiz há dias atrás. Abalei preocupado, pois se os três gentios descobrissem onde guardo o melhor produto embotelhado, ficaria a chupar o dedo, dadas as evidentes facilidades de arrumação dos individuos, o João António e o Carlos Santa, apesar do perigo maior vir do perigoso lingrinhas To Zé Castanheira. Quando cheguei a casa, estavam encostados ao carro, no estacionamento, pois não tinham dado com as chaves acertadas. Já iam lindos, como se infere com facilidade. Mamaram um terço de uma Canadian Clube, deixaram-me para o jantar o equivalente a um copinho de Esteva, aberto na ocasião, e, tanto eu, como o João António, tomámos dois cálices de uma reserva Portal, que há una anos trouxe da adega. A minha psicóloga teve que ir perto de S. João das Lampas, no concelho de Sintra, buscar o neto que ali mora e frequenta a escola, pelo que ainda salvei uma boa parte dos líquidos disponibilizados. Avé!
Logo após os camaradas terem saído, telefonou-me o gerente do restaurante, que pediu desculpa pelas más ocorrências, e a quem comuniquei que vamos para outro azimute na próxima ocasião, mas, posteriormente, voltaremos ao contacto. É que uma mudança de ares pode fazer bem.
Assim, muito mal informado sobre os acontecimentos durante a minha ausência do encontro, não tive qualquer notícia desagradável, pelo que as coisas correram bem, e sei que houve pelo menos um encontro desde há 40 anos. Também tentei ligar ao Luís Graça, que teve a gentiliza de me enviar uma mensagem que só abri à posterior, mas não atendeu, e já era tarde na viragem do dia. Também falei com o Senhor Comandante que se referiu ao azar do serviço, e manifestou-me a preocupação se promoverem encontros mais garantidos, no sentido de proporcionar as melhores condições para convívio. Aceitou o argumento de que Oitavos vai sofrer uma punição, mas que oferece excelentes condições de localização, de estacionamento, de instalação, e tem sido uma excelente relação qualidade/preço. Verá-se, como dizia o outro.
Ainda me recomendou a transmissão de saudações para todos os camaradas do Blogue.
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OBS: - Selecção das fotos da responsabilidade do editor
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Nota do editor
Último poste da série de 22 de Março de 2015 > Guiné 63/74 - P14398: Convívios (659): Encontro do pessoal da CCAÇ 816 (Bissorã, Olossato e Mansoa, 1965/67), dia 23 de Maio de 2015 em Fátima (Rui Silva)
Guiné 63/74 - P14400: Notas de leitura (695): "Império Ultramarino Português", Empresa Nacional de Publicidade, 1950 (1) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Junho de 2014:
Queridos amigos,
Henrique Galvão e Carlos Selvagem são nomes de operativos coloniais e da boa escrita. Lançaram-se num empreendimento que foi a monografia do Império, injustamente esquecida.
É uma obra de divulgação que denota trabalho muito sério. Atenda-se à bibliografia, e veja-se como os dois escritores não descuraram as obras de maior interesse para a época. A única estranheza é não terem ido à atualidade, findaram a sua história da Guiné com o fim das guerras de ocupação, em 1936. Ora, Sarmento Rodrigues já estava a fazer uma obra de grande importância, tanto no campo da urbanização e obras públicas como na cultura, foi ele quem pôs a Guiné no mapa, subtraindo-a da obscuridade extrema em que se encontrava.
Deixa-se para outro texto o olhar destes dois autores sobre os aspetos parcelares daquele território que foi a colónia mais antiga do mundo moderno.
Um abraço do
Mário
Império Ultramarino Português (1)
(Monografia do Império), por Henrique Galvão e Carlos Selvagem
Beja Santos
A Empresa Nacional de Publicidade publicou em 1950, em quatro volumes, uma ousada obra de divulgação, uma detalhada monografia do Império. Assombra rarissimamente ver esta obra referida na bibliografia do Império Ultramarino: tem teoria que permite aferir as múltiplas conceções sobre o império, o que já não é pouco; e possui uma incontestável informação que nos leva a crer tratar-se de uma obra de divulgação ímpar, sem rival. Os autores esclarecem logo à entrada: “Obra de informação geral sobre o Império, objetiva, escrupulosa, completa – e, ao mesmo tempo, mais um subsídio de cultura média a amparar e guiar a consciência colonial do país”. Como se compreenderá, iremos falar exclusivamente da Guiné, matéria tratada nos dois primeiros volumes.
Convém registar o que estes dois autores, nomes conceituados até dentro do regime, escreveram sobre o projeto henriquino: “O projeto de atingir por mar os fabulosos reinos do interior de África, de onde vinha o oiro, o marfim, as especiarias, os escravos negros, germinou no cérebro do Infante depois da sua ida à conquista de Ceuta pelas informações que ali veio a ter do intenso comércio das caravanas árabes e berberes através do Sara, vinda do grande empório de Tombuctu, dos Mandingas do Império de Melli (Mali) e de outros reinos negros de Gemach e Cantor”.
À luz dos conhecimentos da época, o Saara era um mar arenoso que dividia os homens brancos e os homens pretos. No imaginário dos homens, havia a Ocidente o reino dos Guinéus, ao centro a Líbia inferior e no remoto Oriente a Etiópia, da qual começava o mar que levava às índias e às terras do Preste João.
Ultrapassado o Cabo Bojador, o projeto tornara-se irreversível. Em 1441, Antão Gonçalves atinge o Cabo Branco, capturaram-se azenegues que deram informações sobre o comércio do oiro e sobre os habitantes do Sudão. Nesse ano, a Coroa enviou um embaixador a Roma para obter do Papa a doação perpétua das terras descobertas para a Coroa de Portugal, por dever considerar-se um esforço de cruzada. Da embaixada a Roma resultou a Bula a Rex Regum, de 1443. Nesse ano, Nuno Tristão chega à ilha de Arguim e Lançarote Esteves, Almoxarife de Lagos, organizou uma frota de seis navios que partiu para Arguim e depois para a Ilha de Tider, de onde trouxeram para o reino 235 cativos – os primeiros escravos. Talvez em 1444, Dinis Dias atinge o Rio Senegal, dobra o Cabo Verde (não confundir com o arquipélago) e chegou ao Cabo dos Mastros na Baía de Goreia. Em 1446, Nuno Tristão, que já descobrira o Cabo Branco e a Ilha de Arguim, chega numa caravela à foz de um largo rio (Gâmbia? Geba?) onde veio a falecer numa refrega com nativos.
Faz-se depois um interregno que irá durar até 1456, por motivo de questões internas. Nesta data, Cadamosto faz o reconhecimento da costa desde o Cabo Roxo até ao arquipélago dos Bijagós. Criou-se a capitania e feitoria da Ilha de Arguim, na Costa da Guiné.
Com o contrato com o arrendatário Fernão Gomes, em 1469, começou a exploração do monopólio real do comércio africano. A região entre o Rio Senegal e a Serra Leoa passou a denominar-se os Rios da Guiné, ficando reservada ao comércio dos moradores do arquipélago de Cabo Verde. E começam a existir relatos sobre as populações autóctones. Ao Sul do Casamansa habitavam os Felupes, os Cassangas, encravados entre os Mandingas do interior e os Brames do Sul. As margens do Rio Cacheu eram povoadas pelos Papéis, que ocupavam também a Ilha de Bissau, do outro lado do Geba ficavam os Balantas que se estendiam até ao reino de Cantor, terra dos Mandingas. Confinando com os Mandingas estava a terra de Guinala, povoada pelos Beafadas. No extremo Sul, até ao Rio Nuno, habitavam os Nalus.
Os autores descrevem com minúcia a presença dos lançados, que acabaram por ter um papel de primordial importância como bandeirantes e até comerciantes. D. João II, não havendo qualquer sinal da ocupação portuguesa na região, tratou da ocupação militar, mandou construir uma fortaleza na foz do Rio Senegal, projeto que não teve seguimento. No início do século XVI, os escravos já eram o principal produto do comércio da Guiné e Cabo Verde, a que se seguia, com muito menos importância, o marfim, o arroz, o algodão, a cera e a malagueta. A prosperidade deste comércio despertou a cobiça de holandeses, ingleses, franceses e espanhóis. Depois da destruição da Invencível Armada, Portugal ficou desprovido de navios, o que precipitou a decadência do comércio. Em 1622, o comércio nos rios da Guiné era dominado pelos estrangeiros. Em 1628, o Governador e Capitão Geral Corte Real foi à Guiné e conseguiu expulsar os holandeses de Bezeguichor (Goreia) mas, por falta de recursos, os holandeses cedo regressaram. As únicas entidades que exerciam funções públicas nos Rios da Guiné eram os feitores.
Cacheu principiou a formar-se em 1588 quando um cabo-verdiano, Lopes Cardoso, obteve autorização do régulo brame para fundar uma aldeia e fortificá-la com algumas peças de artilharia. Cacheu será o núcleo embrionário da futura colónia da Guiné. Durante o domínio filipino a presença portuguesa nos Rios da Guiné que outrora ia do Cabo Branco até à Costa da Mina, ficou muito limitada: em 1640 ia da faixa do rio Casamansa até à foz do Bolola. De recuo em recuo, a presença portuguesa na costa da Guiné ia-se aproximando das fronteiras que irão ser desenhadas pela Convenção Luso-Francesa de 1886.
Com a Restauração, procurou recuperar-se o tempo perdido. Gonçalo Gamboa d’Ayala foi nomeado em 1641 Capitão-Mor de Cacheu, é no seu tempo que fundam Farim e Zinguichor. A partir de 1678, a administração portuguesa dos Rios da Guiné sofre uma nefasta transformação pelo estabelecimento da Companhia de Cacheu, com poderes majestáticos, criada à semelhança das companhias inglesas, francesas e holandesas. Foram tempos de abusos inomináveis que provocaram a revolta dos naturais, que atacaram a praça. A causa fundamental de todos estes distúrbios, hostilidade de indígenas e europeus, era a proibição de comércio com os estrangeiros, e estes pagavam melhor.
Bissau começou então a ganhar importância, com um núcleo de comerciantes cabo-verdianos e indígenas cristianizados, os Grumetes. Como continuasse a falta de recursos, fundou-se a Companhia de Cacheu e Cabo Verde, mas sem o exclusivo do comércio. Nova operação ruinosa.
A fortaleza de Bissau foi concluída em finais de 1697 e demolida em 1708. Em 1753, fez-se uma nova fortaleza que durou pouco. Em 1776, começou a construção da terceira fortaleza, com o nome de S. José. Com todas as suas obras de manutenção e restauro, é a fortaleza da Amura que conhecemos hoje.
Vive-se uma nova época de decadência com a malograda Sociedade de Comércio das Ilhas de Cabo Verde. Assim se chegou a 1792, ano em que uma sociedade filantrópica de Londres tentou estabelecer na costa da Guiné uma colónia europeia, com o fim de pôr em prática um regime de produção que dispensasse a escravatura e apenas se servisse de trabalhadores negros e livres. Vai começar um contencioso que ficará conhecido na história como a Questão de Bolama.
O início do século XIX é marcado pelos ataques dos Fulas ao velho Império Mandinga. A partir de 1815, um novo facto veio modificar o regime económico da Guiné – as restrições no comércio de escravos. Parecia que se ia abrir um novo ciclo de decadência. Mas uma importante viragem chegou com a nomeação de Honório Pereira Barreto como governador do distrito da Guiné (1837). Barreto irá firmar a soberania portuguesa em vários pontos da colónia, estabelecerá acordos com régulos e comprará vários territórios para a Coroa na margem esquerda do Rio Casamansa. Barreto irá escrever um documento incontornável para a compreensão da presença portuguesa, “Memória sobre o estado atual da Senegâmbia Portuguesa”.
A história moderna da Guiné inicia-se pela Carta de Lei de 18 de março de 1879 que transformou a Guiné em província ultramarina, o 1.º Governador será o Coronel Agostinho Coelho.
As rebeliões não param, envolvem Fulas, Beafadas, Papéis… autoridades e comerciantes vivem circunscritos num número reduzido de praças e presídios. Será o Capitão João Teixeira Pinto quem irá inverter essa situação através de um conjunto de campanhas que levaram a que a Guiné Continental perdesse a beligerância ativa.
Em 1928, com base no modelo holandês, a colónia é dividida administrativamente em 4 Intendências e 12 Residências, sistema que se revelou pouco eficaz, pelo que, a partir de 1933, a Guiné passou a compreender dois concelhos – Bolama e Bissau – e as 7 circunscrições civis de Cacheu, Farim, Mansoa, Bafatá, Gabu, Buba e Bijagós. Com a campanha de pacificação de Canhambaque, a partir de 1936, desapareceram os focos de rebelião da Guiné.
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 20 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14391: Notas de leitura (694): Mapas da Guiné: existem muitos e estão mal estudados (Mário Beja Santos)
Queridos amigos,
Henrique Galvão e Carlos Selvagem são nomes de operativos coloniais e da boa escrita. Lançaram-se num empreendimento que foi a monografia do Império, injustamente esquecida.
É uma obra de divulgação que denota trabalho muito sério. Atenda-se à bibliografia, e veja-se como os dois escritores não descuraram as obras de maior interesse para a época. A única estranheza é não terem ido à atualidade, findaram a sua história da Guiné com o fim das guerras de ocupação, em 1936. Ora, Sarmento Rodrigues já estava a fazer uma obra de grande importância, tanto no campo da urbanização e obras públicas como na cultura, foi ele quem pôs a Guiné no mapa, subtraindo-a da obscuridade extrema em que se encontrava.
Deixa-se para outro texto o olhar destes dois autores sobre os aspetos parcelares daquele território que foi a colónia mais antiga do mundo moderno.
Um abraço do
Mário
Império Ultramarino Português (1)
(Monografia do Império), por Henrique Galvão e Carlos Selvagem
Beja Santos
A Empresa Nacional de Publicidade publicou em 1950, em quatro volumes, uma ousada obra de divulgação, uma detalhada monografia do Império. Assombra rarissimamente ver esta obra referida na bibliografia do Império Ultramarino: tem teoria que permite aferir as múltiplas conceções sobre o império, o que já não é pouco; e possui uma incontestável informação que nos leva a crer tratar-se de uma obra de divulgação ímpar, sem rival. Os autores esclarecem logo à entrada: “Obra de informação geral sobre o Império, objetiva, escrupulosa, completa – e, ao mesmo tempo, mais um subsídio de cultura média a amparar e guiar a consciência colonial do país”. Como se compreenderá, iremos falar exclusivamente da Guiné, matéria tratada nos dois primeiros volumes.
Convém registar o que estes dois autores, nomes conceituados até dentro do regime, escreveram sobre o projeto henriquino: “O projeto de atingir por mar os fabulosos reinos do interior de África, de onde vinha o oiro, o marfim, as especiarias, os escravos negros, germinou no cérebro do Infante depois da sua ida à conquista de Ceuta pelas informações que ali veio a ter do intenso comércio das caravanas árabes e berberes através do Sara, vinda do grande empório de Tombuctu, dos Mandingas do Império de Melli (Mali) e de outros reinos negros de Gemach e Cantor”.
À luz dos conhecimentos da época, o Saara era um mar arenoso que dividia os homens brancos e os homens pretos. No imaginário dos homens, havia a Ocidente o reino dos Guinéus, ao centro a Líbia inferior e no remoto Oriente a Etiópia, da qual começava o mar que levava às índias e às terras do Preste João.
Ultrapassado o Cabo Bojador, o projeto tornara-se irreversível. Em 1441, Antão Gonçalves atinge o Cabo Branco, capturaram-se azenegues que deram informações sobre o comércio do oiro e sobre os habitantes do Sudão. Nesse ano, a Coroa enviou um embaixador a Roma para obter do Papa a doação perpétua das terras descobertas para a Coroa de Portugal, por dever considerar-se um esforço de cruzada. Da embaixada a Roma resultou a Bula a Rex Regum, de 1443. Nesse ano, Nuno Tristão chega à ilha de Arguim e Lançarote Esteves, Almoxarife de Lagos, organizou uma frota de seis navios que partiu para Arguim e depois para a Ilha de Tider, de onde trouxeram para o reino 235 cativos – os primeiros escravos. Talvez em 1444, Dinis Dias atinge o Rio Senegal, dobra o Cabo Verde (não confundir com o arquipélago) e chegou ao Cabo dos Mastros na Baía de Goreia. Em 1446, Nuno Tristão, que já descobrira o Cabo Branco e a Ilha de Arguim, chega numa caravela à foz de um largo rio (Gâmbia? Geba?) onde veio a falecer numa refrega com nativos.
Faz-se depois um interregno que irá durar até 1456, por motivo de questões internas. Nesta data, Cadamosto faz o reconhecimento da costa desde o Cabo Roxo até ao arquipélago dos Bijagós. Criou-se a capitania e feitoria da Ilha de Arguim, na Costa da Guiné.
Com o contrato com o arrendatário Fernão Gomes, em 1469, começou a exploração do monopólio real do comércio africano. A região entre o Rio Senegal e a Serra Leoa passou a denominar-se os Rios da Guiné, ficando reservada ao comércio dos moradores do arquipélago de Cabo Verde. E começam a existir relatos sobre as populações autóctones. Ao Sul do Casamansa habitavam os Felupes, os Cassangas, encravados entre os Mandingas do interior e os Brames do Sul. As margens do Rio Cacheu eram povoadas pelos Papéis, que ocupavam também a Ilha de Bissau, do outro lado do Geba ficavam os Balantas que se estendiam até ao reino de Cantor, terra dos Mandingas. Confinando com os Mandingas estava a terra de Guinala, povoada pelos Beafadas. No extremo Sul, até ao Rio Nuno, habitavam os Nalus.
Os autores descrevem com minúcia a presença dos lançados, que acabaram por ter um papel de primordial importância como bandeirantes e até comerciantes. D. João II, não havendo qualquer sinal da ocupação portuguesa na região, tratou da ocupação militar, mandou construir uma fortaleza na foz do Rio Senegal, projeto que não teve seguimento. No início do século XVI, os escravos já eram o principal produto do comércio da Guiné e Cabo Verde, a que se seguia, com muito menos importância, o marfim, o arroz, o algodão, a cera e a malagueta. A prosperidade deste comércio despertou a cobiça de holandeses, ingleses, franceses e espanhóis. Depois da destruição da Invencível Armada, Portugal ficou desprovido de navios, o que precipitou a decadência do comércio. Em 1622, o comércio nos rios da Guiné era dominado pelos estrangeiros. Em 1628, o Governador e Capitão Geral Corte Real foi à Guiné e conseguiu expulsar os holandeses de Bezeguichor (Goreia) mas, por falta de recursos, os holandeses cedo regressaram. As únicas entidades que exerciam funções públicas nos Rios da Guiné eram os feitores.
Cacheu principiou a formar-se em 1588 quando um cabo-verdiano, Lopes Cardoso, obteve autorização do régulo brame para fundar uma aldeia e fortificá-la com algumas peças de artilharia. Cacheu será o núcleo embrionário da futura colónia da Guiné. Durante o domínio filipino a presença portuguesa nos Rios da Guiné que outrora ia do Cabo Branco até à Costa da Mina, ficou muito limitada: em 1640 ia da faixa do rio Casamansa até à foz do Bolola. De recuo em recuo, a presença portuguesa na costa da Guiné ia-se aproximando das fronteiras que irão ser desenhadas pela Convenção Luso-Francesa de 1886.
Com a Restauração, procurou recuperar-se o tempo perdido. Gonçalo Gamboa d’Ayala foi nomeado em 1641 Capitão-Mor de Cacheu, é no seu tempo que fundam Farim e Zinguichor. A partir de 1678, a administração portuguesa dos Rios da Guiné sofre uma nefasta transformação pelo estabelecimento da Companhia de Cacheu, com poderes majestáticos, criada à semelhança das companhias inglesas, francesas e holandesas. Foram tempos de abusos inomináveis que provocaram a revolta dos naturais, que atacaram a praça. A causa fundamental de todos estes distúrbios, hostilidade de indígenas e europeus, era a proibição de comércio com os estrangeiros, e estes pagavam melhor.
Bissau começou então a ganhar importância, com um núcleo de comerciantes cabo-verdianos e indígenas cristianizados, os Grumetes. Como continuasse a falta de recursos, fundou-se a Companhia de Cacheu e Cabo Verde, mas sem o exclusivo do comércio. Nova operação ruinosa.
A fortaleza de Bissau foi concluída em finais de 1697 e demolida em 1708. Em 1753, fez-se uma nova fortaleza que durou pouco. Em 1776, começou a construção da terceira fortaleza, com o nome de S. José. Com todas as suas obras de manutenção e restauro, é a fortaleza da Amura que conhecemos hoje.
Vive-se uma nova época de decadência com a malograda Sociedade de Comércio das Ilhas de Cabo Verde. Assim se chegou a 1792, ano em que uma sociedade filantrópica de Londres tentou estabelecer na costa da Guiné uma colónia europeia, com o fim de pôr em prática um regime de produção que dispensasse a escravatura e apenas se servisse de trabalhadores negros e livres. Vai começar um contencioso que ficará conhecido na história como a Questão de Bolama.
O início do século XIX é marcado pelos ataques dos Fulas ao velho Império Mandinga. A partir de 1815, um novo facto veio modificar o regime económico da Guiné – as restrições no comércio de escravos. Parecia que se ia abrir um novo ciclo de decadência. Mas uma importante viragem chegou com a nomeação de Honório Pereira Barreto como governador do distrito da Guiné (1837). Barreto irá firmar a soberania portuguesa em vários pontos da colónia, estabelecerá acordos com régulos e comprará vários territórios para a Coroa na margem esquerda do Rio Casamansa. Barreto irá escrever um documento incontornável para a compreensão da presença portuguesa, “Memória sobre o estado atual da Senegâmbia Portuguesa”.
A história moderna da Guiné inicia-se pela Carta de Lei de 18 de março de 1879 que transformou a Guiné em província ultramarina, o 1.º Governador será o Coronel Agostinho Coelho.
As rebeliões não param, envolvem Fulas, Beafadas, Papéis… autoridades e comerciantes vivem circunscritos num número reduzido de praças e presídios. Será o Capitão João Teixeira Pinto quem irá inverter essa situação através de um conjunto de campanhas que levaram a que a Guiné Continental perdesse a beligerância ativa.
Em 1928, com base no modelo holandês, a colónia é dividida administrativamente em 4 Intendências e 12 Residências, sistema que se revelou pouco eficaz, pelo que, a partir de 1933, a Guiné passou a compreender dois concelhos – Bolama e Bissau – e as 7 circunscrições civis de Cacheu, Farim, Mansoa, Bafatá, Gabu, Buba e Bijagós. Com a campanha de pacificação de Canhambaque, a partir de 1936, desapareceram os focos de rebelião da Guiné.
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 20 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14391: Notas de leitura (694): Mapas da Guiné: existem muitos e estão mal estudados (Mário Beja Santos)
domingo, 22 de março de 2015
Guiné 63/74 - P14399: Brunhoso há 50 anos (3): Festejos do Entrudo (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)
Brunhoso - Com a devida vénia
1. Em mensagem do dia 17 de Março de 2015, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), fala-nos dos festejos do Caranaval de antigamente da sua terra, Brunhoso.
Brunhoso há 50 anos
3 - Festejos do Entrudo
Como em quase todas as terras do nordeste transmontano e provavelmente na maioria das aldeias do interior do país, em Brunhoso celebravam-se três festas anuais: o Carnaval, o Natal e festa a um santo que nem sempre coincidia com o santo padroeiro.
No Carnaval, festa do tempo frio de Fevereiro, comia-se em excesso, sobretudo ao almoço, era o tempo das casulas com o bulho, noutras terras chamado butelo, o pé de porco, a orelha, a linguiça, tudo cozido numa grande panela de ferro à lareira. Bebia-se em excesso sobretudo vinho, durante o dia e noite, até as forças e as pernas o permitirem.
Os rapazes todos os anos faziam um grande boneco, com roupas velhas, que enchiam de palha, muitos deles vestiam-se com roupas de mulher ou disfarçados doutras formas, eram os caretos, passeavam pela aldeia, esse boneco, que era o Entrudo, num carro de vacas ou às costas de uns e outros, ao som de quadras improvisadas referidas ao dia e à figura, com muitas bombas de carnaval e bombas de lágrimas coloridas (rasca-pés na gíria do povo). Essa figura, da qual desconheço a origem e a idade, ganhou tanta importância que só recentemente entendi por que é que os meus conterrâneos falavam sempre no dia de Entrudo e não no dia de Carnaval. No Carnaval o rei era o Entrudo, um rei maltratado com violência física e verbal.
Acredito que quase toda a aldeia perdeu a memória da palavra Carnaval para se fixar somente no Entrudo, essa figura trágica, tão maltratada. O Carnaval ou Entrudo que dizem alguns eruditos terá origens em cultos anteriores ao cristianismo, tem um pouco de todos esses excessos dalgumas festas gregas, celtas, romanas e doutros povos, é pois natural que tenha uma origem muito antiga. Sendo uma festa popular, de brincadeiras, excessos vínicos e outros, sobretudo masculinos, pois era uma festa de rapazes e homens.
Festa que as mulheres toleravam e em que passivamente participavam, mostrando bastante medo, real ou ficticio pelo Entrudo e pelos caretos, e na alimentação melhorada em doces e petiscos que faziam, sabendo que estavam a contribuir para melhorar essa grande farra que era sobretudo deles, dos seus homens e dos seus filhos.
Caretos de Trás-os-Montes
O trabalho era muito, era duro, quase não havia dias de folga, os homens tinham direito a esse dia de descontração e de abandono das regras a que essa vida dura os obrigava. A Igreja, embora contrariada, também tolerava essa festa que não era dedicada a nenhum Deus ou Santo do seu calendário. A Quaresma estava à porta e os homens seriam obrigados a cumprir muitas penitências.
O antigo regime sendo tão austero e pouco tolerante com manifestações populares, sempre admitiu esse desvario, esse excesso com tanto álcool, bombas e arruaças.
Nunca se deve impedir a respiração da alma de um povo, Salazar, um ditador bastante erudito, criado junto do povo, compreendeu isso. A democracia, oxalá se mantenha, tem procurado acabar com o Carnaval. Para mim isso é das ofensas mais mesquinhas que têm tentado fazer ao povo, e estou a falar do povo mais humilde, que é o que mais se diverte nesse dia. É muito grave tirar-lhe o pão, mais grave ainda é querer tirar-lhe a alma e a alegria de viver.
Quem quis ou quem quer acabar com o Carnaval, nunca bebeu um copo de vinho numa roda na praça de uma aldeia, a passar de boca em boca, nunca conheceu nem amou esse povo simples e trabalhador.
Quando se fala tanto e se promovem patrimónios materiais e imateriais de Portugal para turista estrangeiro ver, ouvir, apreciar, porquê querer destruir a alma de um povo naquilo que ela tem de mais antigo, tão antigo, que ele encontra e abraça, uma multidão de parentes e amigos, que consigo vêm confraternizar nessa grande festa, nesse convívio tão pleno de emoções, tão alargado aos que partiram para longes terras, aos que continuam a sobreviver lá, em condições cada vez mais difíceis e aos que partiram para lá da vida.
VIVA O CARNAVAL! VIVA O ENTRUDO!
Saudações Transmontanas!
Um abraço
Francisco Baptista
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Nota do editor
Último poste da série de 18 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14381: Brunhoso há 50 anos (2): As Autoridades - Continuação (Francisco Baptista)
Guiné 63/74 - P14398: Convívios (659): Encontro do pessoal da CCAÇ 816 (Bissorã, Olossato e Mansoa, 1965/67), dia 23 de Maio de 2015 em Fátima (Rui Silva)
1. Mensagem do nosso camarada Rui Silva (ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67), com data de 17 de Março de 2015:
Caros e considerados amigos Luís, Vinhal e Magalhães Ribeiro
Recebam os maiores votos de uma boa saúde e também de uma boa forma (sempre) para sustentar este extraordinário Blogue.
Como sempre as minhas primeiras palavras são de saudação para todos os camaradas ex-Combatentes da Guiné, mais ainda para aqueles que de algum modo ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra.
Queiram publicar no Blogue o anúncio de mais uma Festa anual da Companhia de Caçadores n.º 816 - Guiné Portuguesa 1965 / 67, e do qual se junta em anexo.
Passem bem (!) e daqui vai também um grande abraço.
Rui Silva
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Nota do editor
Último poste da série de 18 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14382: Convívios (658): Almoço do pessoal da CCAÇ 2464/BCAÇ 2861, dia 18 de Abril de 2015 em Vila Real (António Nobre)
Caros e considerados amigos Luís, Vinhal e Magalhães Ribeiro
Recebam os maiores votos de uma boa saúde e também de uma boa forma (sempre) para sustentar este extraordinário Blogue.
Como sempre as minhas primeiras palavras são de saudação para todos os camaradas ex-Combatentes da Guiné, mais ainda para aqueles que de algum modo ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra.
Queiram publicar no Blogue o anúncio de mais uma Festa anual da Companhia de Caçadores n.º 816 - Guiné Portuguesa 1965 / 67, e do qual se junta em anexo.
Passem bem (!) e daqui vai também um grande abraço.
Rui Silva
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Nota do editor
Último poste da série de 18 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14382: Convívios (658): Almoço do pessoal da CCAÇ 2464/BCAÇ 2861, dia 18 de Abril de 2015 em Vila Real (António Nobre)
Guiné 63/74 - P14397: Libertando-me (Tony Borié) (9): Este fui eu
Nono episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.
Esta personagem fui eu, mas penso que, talvez em parte, também eras tu, que nasceste entre os anos trinta e cinquenta do século passado ou talvez até antes ou depois, andaste por aí, sobreviveste e hoje até tens a pachorra de me estar a ler.
Isto não é impressionante? Sobrevivemos, sendo filhos de mães que não se alimentavam com todas aquelas proteínas necessárias para o bom funcionamento do organismo, comiam queijo e toucinho gorduroso, andavam de “de barriga à boca”, até ao último dia, sempre a trabalhar na agricultura, sujas, com as pernas cheias de “varizes”, que eram umas veias saídas nas pernas, muito perigosas, devido ao esforço despendido e, talvez não só, algumas bebiam álcool, enquanto estavam grávidas, sem nunca fazerem um simples teste de diabetes. Nascemos. Fomos colocados para dormir, em berços ou numa simples canastra, cobertos com cobertores, farrapos ou panos feitos com tintas coloridas, feitas à base de chumbo, à base de brilhantes, de barriga para baixo ou para cima, um farrapo borrado e molhado por horas, chorando, às vezes chupando num pano molhado em água de açúcar, ou quando as nossas mães queriam trabalhar sem ouvir o nosso choro, nos colocavam um pouco de pão molhado em vinho, na boca, para assim, “adormecermos”.
Ouviam-te chorar. Talvez com dores em qualquer parte do corpo, embalavam-te por alguns momentos e calavas-te, não te administrando qualquer medicamento.
Mais tarde. Com a tal baba e ranho no nariz, às vezes sujo e com pouca roupa no corpo, pois normalmente usavas o resto da roupa dos teus irmãos, ou até do teu pai, fazendo chuva, frio ou calor, vias as outras pessoas andarem de bicicleta, sem capacetes ou outros utensílios de segurança, os que andavam de carro, não usavam cintos de segurança, as crianças não tinham assentos especiais, os pneus estavam carecas, não havia “air bags” e às vezes nem travões.
Bebíamos água dos ribeiros, das fontes, dos poços ou das minas e, não da garrafa.
Compartilhávamos um “pirolito” com quatro amigos, bebendo da mesma garrafa e ninguém realmente morreu por isso.
Comíamos biscoitos, broa, pão branco, manteiga real, toucinho, batatas, nabos, couves, feijão, arroz, mal ou bem cozinhado, bem ou mal lavados, na tal panela de três pernas, comunitária, que cozinhava para a família, às vezes para os vizinhos e entalava alguns legumes para os animais, tudo temperado às vezes com sal “amarelo e rançoso”, que se tirava da caixa, a que se chamava “salgadeira”, onde se guardava a carne salgada do porco, laranjadas ou pirolitos, feitos de água com açúcar, o que queríamos era “encher a barriga” e, nunca estávamos acima do peso.
Porquê? Porque estávamos sempre a brincar, ou a trabalhar na agricultura, lá fora, pois saíamos de casa pela manhã e andávamos lá fora o dia todo, estávamos de volta quando o sol desaparecia. Chegámos até aos dias de hoje, talvez porque passávamos horas construindo os nossos brinquedos, como por exemplo carrinhos de madeira com rodas de toros de pinheiros e, montá-los ladeira abaixo, sem travões, caindo e levantando-nos sem nunca nos queixarmos, aprendendo assim a resolver os nossos problemas.
E claro, aprendemos o “a, e, i, o, u”, ou a “a, b, c”, naquela “lousa” de pedra preta, onde um lápis era um “riscador”, também de pedra preta, sabíamos a “tabuada” de cor e salteado, nas salas de aula não havia tecto, víamos as telhas onde fazia frio no inverno e eram quentes a partir de Maio e, estava lá, ao lado daquele quadro, que nos parecia muito grande, uma cana comprida para manter o respeito, não tínhamos Playstations, Nintendos, jogos de vídeo, 150 canais na TV a cabo, não havia filmes de vídeo ou DVDs, com som surround, telefones celulares, computadores pessoais, com Internet.
Mas tínhamos amigos, era só vir à rua e encontrá-los. Só havia dois modelos de corte de cabelo, era comprido, de vários meses, talvez até anos, sem nunca ter sido cortado, onde havia os tais insectos a que nós chamávamos “lendias e piolhos”, ou rapado, onde o barbeiro deixava uma “franginha” na frente a cobrir parte da testa, caíamos das árvores, ficávamos magoados, quebrávamos os ossos ou até os dentes e não se ia ao hospital, nem havia acções contra as companhias de seguros por esses acidentes.
Comíamos vermes, terra e lama, enquanto brincávamos em terreno sujo e, os vermes não continuavam a viver em nós por toda a vida. Pelo nosso aniversário nunca nos deram brinquedos, tais como cópias de armas modernas, como pistolas e metralhadorasdo último modelo, mas sim brinquedos feitos por familiares, com paus ou bolas de trapos.
Aprendíamos a lidar com a decepção, se não éramos escolhidos para a equipa de futebol da nossa rua ou bairro.
Era inédita a ideia que os nossos pais iam socorrer-nos se por acaso quebrássemos a lei, pois eles realmente estavam sempre do lado da lei.
A nossa geração passou, entre outras, pela Segunda Guerra Mundial, por aquela maldita Guerra do Ultramar, produziu alguns dos melhores inventores, tendo sido em parte, uma explosão de inovação, nasceram líderes, claro, com algumas excepções, que têm solucionado a maior parte dos problemas que vão afectando o mundo de hoje, num mundo onde cada vez existem mais facilidades para alguns, mas muito mais dificuldades de sobrevivência, pelo menos para nós, os tais que nascemos entre aquelas datas, alguns até antes ou depois e, tanto no fracasso como no sucesso, sempre assumimos a nossa responsabilidade, os nossos compromissos, a palavra dada, para nós conta e aprendemos a lidar com tudo isso, embora agora, como já mencionámos antes, com muito mais dificuldade.
Se tu, que me estás a ler, és um deles, PARABÉNS. Tenta sobreviver, companheiro de jornada.
Tony Borie, Abril de 2014
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Nota do editor
Último poste da série de 15 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14368: Libertando-me (Tony Borié) (8): Retire da Terra o que é necessário para viver e nada mais
Esta personagem fui eu, mas penso que, talvez em parte, também eras tu, que nasceste entre os anos trinta e cinquenta do século passado ou talvez até antes ou depois, andaste por aí, sobreviveste e hoje até tens a pachorra de me estar a ler.
Isto não é impressionante? Sobrevivemos, sendo filhos de mães que não se alimentavam com todas aquelas proteínas necessárias para o bom funcionamento do organismo, comiam queijo e toucinho gorduroso, andavam de “de barriga à boca”, até ao último dia, sempre a trabalhar na agricultura, sujas, com as pernas cheias de “varizes”, que eram umas veias saídas nas pernas, muito perigosas, devido ao esforço despendido e, talvez não só, algumas bebiam álcool, enquanto estavam grávidas, sem nunca fazerem um simples teste de diabetes. Nascemos. Fomos colocados para dormir, em berços ou numa simples canastra, cobertos com cobertores, farrapos ou panos feitos com tintas coloridas, feitas à base de chumbo, à base de brilhantes, de barriga para baixo ou para cima, um farrapo borrado e molhado por horas, chorando, às vezes chupando num pano molhado em água de açúcar, ou quando as nossas mães queriam trabalhar sem ouvir o nosso choro, nos colocavam um pouco de pão molhado em vinho, na boca, para assim, “adormecermos”.
Ouviam-te chorar. Talvez com dores em qualquer parte do corpo, embalavam-te por alguns momentos e calavas-te, não te administrando qualquer medicamento.
Mais tarde. Com a tal baba e ranho no nariz, às vezes sujo e com pouca roupa no corpo, pois normalmente usavas o resto da roupa dos teus irmãos, ou até do teu pai, fazendo chuva, frio ou calor, vias as outras pessoas andarem de bicicleta, sem capacetes ou outros utensílios de segurança, os que andavam de carro, não usavam cintos de segurança, as crianças não tinham assentos especiais, os pneus estavam carecas, não havia “air bags” e às vezes nem travões.
Bebíamos água dos ribeiros, das fontes, dos poços ou das minas e, não da garrafa.
Compartilhávamos um “pirolito” com quatro amigos, bebendo da mesma garrafa e ninguém realmente morreu por isso.
Comíamos biscoitos, broa, pão branco, manteiga real, toucinho, batatas, nabos, couves, feijão, arroz, mal ou bem cozinhado, bem ou mal lavados, na tal panela de três pernas, comunitária, que cozinhava para a família, às vezes para os vizinhos e entalava alguns legumes para os animais, tudo temperado às vezes com sal “amarelo e rançoso”, que se tirava da caixa, a que se chamava “salgadeira”, onde se guardava a carne salgada do porco, laranjadas ou pirolitos, feitos de água com açúcar, o que queríamos era “encher a barriga” e, nunca estávamos acima do peso.
Porquê? Porque estávamos sempre a brincar, ou a trabalhar na agricultura, lá fora, pois saíamos de casa pela manhã e andávamos lá fora o dia todo, estávamos de volta quando o sol desaparecia. Chegámos até aos dias de hoje, talvez porque passávamos horas construindo os nossos brinquedos, como por exemplo carrinhos de madeira com rodas de toros de pinheiros e, montá-los ladeira abaixo, sem travões, caindo e levantando-nos sem nunca nos queixarmos, aprendendo assim a resolver os nossos problemas.
E claro, aprendemos o “a, e, i, o, u”, ou a “a, b, c”, naquela “lousa” de pedra preta, onde um lápis era um “riscador”, também de pedra preta, sabíamos a “tabuada” de cor e salteado, nas salas de aula não havia tecto, víamos as telhas onde fazia frio no inverno e eram quentes a partir de Maio e, estava lá, ao lado daquele quadro, que nos parecia muito grande, uma cana comprida para manter o respeito, não tínhamos Playstations, Nintendos, jogos de vídeo, 150 canais na TV a cabo, não havia filmes de vídeo ou DVDs, com som surround, telefones celulares, computadores pessoais, com Internet.
Mas tínhamos amigos, era só vir à rua e encontrá-los. Só havia dois modelos de corte de cabelo, era comprido, de vários meses, talvez até anos, sem nunca ter sido cortado, onde havia os tais insectos a que nós chamávamos “lendias e piolhos”, ou rapado, onde o barbeiro deixava uma “franginha” na frente a cobrir parte da testa, caíamos das árvores, ficávamos magoados, quebrávamos os ossos ou até os dentes e não se ia ao hospital, nem havia acções contra as companhias de seguros por esses acidentes.
Comíamos vermes, terra e lama, enquanto brincávamos em terreno sujo e, os vermes não continuavam a viver em nós por toda a vida. Pelo nosso aniversário nunca nos deram brinquedos, tais como cópias de armas modernas, como pistolas e metralhadorasdo último modelo, mas sim brinquedos feitos por familiares, com paus ou bolas de trapos.
Aprendíamos a lidar com a decepção, se não éramos escolhidos para a equipa de futebol da nossa rua ou bairro.
Era inédita a ideia que os nossos pais iam socorrer-nos se por acaso quebrássemos a lei, pois eles realmente estavam sempre do lado da lei.
A nossa geração passou, entre outras, pela Segunda Guerra Mundial, por aquela maldita Guerra do Ultramar, produziu alguns dos melhores inventores, tendo sido em parte, uma explosão de inovação, nasceram líderes, claro, com algumas excepções, que têm solucionado a maior parte dos problemas que vão afectando o mundo de hoje, num mundo onde cada vez existem mais facilidades para alguns, mas muito mais dificuldades de sobrevivência, pelo menos para nós, os tais que nascemos entre aquelas datas, alguns até antes ou depois e, tanto no fracasso como no sucesso, sempre assumimos a nossa responsabilidade, os nossos compromissos, a palavra dada, para nós conta e aprendemos a lidar com tudo isso, embora agora, como já mencionámos antes, com muito mais dificuldade.
Se tu, que me estás a ler, és um deles, PARABÉNS. Tenta sobreviver, companheiro de jornada.
Tony Borie, Abril de 2014
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Nota do editor
Último poste da série de 15 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14368: Libertando-me (Tony Borié) (8): Retire da Terra o que é necessário para viver e nada mais
Guiné 63/74 - P14396: Parabéns a você (877): José Lino Oliveira, ex-Fur Mil Amanuense do BCAÇ 4612/74 (Guiné, 1974)
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Nota do editor
Último poste da série de 17 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14375: Parabéns a você (876): José Armando F. Almeida, ex-Fur Mil TRMS do BART 2917 (Guiné, 1970/72)
Nota do editor
Último poste da série de 17 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14375: Parabéns a você (876): José Armando F. Almeida, ex-Fur Mil TRMS do BART 2917 (Guiné, 1970/72)
sábado, 21 de março de 2015
Guiné 63/74 - P14395: (In)citações (74): Fotos que por acaso não são da minha motorizada nem de uma outra portuguesa (Henrique Cerqueira)
1. Mensagem do nosso camarada Henrique Cerqueira (ex-Fur Mil da 3.ª CCAÇ/BCAÇ 4610/72, Biambe e Bissorã, 1972/74), com data de 17 de Março de 2015:
Caro camarada Luís Graça
Desta vês lanças o desafio das motos que tínhamos na Guiné e de preferência as Portuguesas.
Ora muito bem, aí vão umas fotos que por acaso não são da minha moto nem de uma Portuguesa.
O meu Miguel era um exímio condutor. As fotos ilustram o seu percurso. Ou seja, ele começou aos dois anos (aconselhável a todos os próximos condutores) a aprender a conduzir.
Começou por aprender em carrinho de rolamentos, depois passou para veículos militares, mais propriamente os “Mercedes militares” e então, como era a sua maior aspiração, passou às motos de Muito Alta Cilindrada, tão alta que a sua moto, como está representada, dava para tirar o motor enquanto estava parada, não fosse outro qualquer motar qualquer se servir dela.
Desculpem lá mas sinto muito orgulho de ter um filho que aos dois anos já era um excelente praticante das grandes velocidades.
Agora a falar a sério. Eu achei por bem enviar este escrito só para brincar um pouco.
Em Bissorã havia um menino mimado, que creio que era sobrinho do Amílcar Cabral, que tinha uma moto, mas esse preferia as Japonesas (Honda) penso até que era moda lá dos meninos bem da Guiné da altura. Nada de ressentimentos, mas às veses custava um pouco ter de fazer colunas de proteção para esses meninos se deslocarem a Mansoa ou Bissau.
Já a moto do Miguel, que penso que era uma BSA ou Triunf, era altamente ecológica porque gastava zero aos cem (sem motor).
Convém não esquecer que o Miguel nas suas lides motorizadas era sempre supervisionado pelo fiel amigo Inhatna Biofa. Nunca correu perigo de transgressão.
Malta um abraço e desculpem lá qualquer coisinha.
Henrique Cerqueira
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Nota do editor
Último poste da série de 10 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14136: (In)citações (73): Vive la Liberté! Vive la France" (Francisco Baptista, ex-alf mil, inf, CCAÇ 2616, Buba, 1970/71, e CART 2732, Mansabá, 1971/72)]
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