Na altura, chamámos a atenção para a importância que se revestia, para o nosso blogue e para a memória da guerra da Guiné (1971/74), a publicação deste tipo de documentos (caso das cartas e dos aerogramas), para se poder conhecer e perceber melhor a mentalidade dos nossos camaradas guineenses que combateram o PAIGC sob a bandeira portuguesa, e que, depois da independência pagaram caro (muitos deles, com a discriminação, a perseguição, a prisão, a tortura e a morte) a sua condição de "cães dos colonialistas"...
Reportando-nos ao teor do aerograma, repare-se como o Tala Djaló (presumivelmente fula ou futa-fula), descreve a entrada da CCAÇ 6 na base de Lanchandé, a sul de Bedanda, em perseguição a um grupo que havia atacado o aquartelamento das NT. Para ele, "turra" era sinónimo de "balanta" e a guerra que então se travou tinha também muitos contornos de guerra tribal ou interétnica...
Em termos secos e simples, diz ele que o pessoal do PAIGC de Lanchandé (e não havia distinção entre combatentes e população, armada ou desarmada) fora apanhado a dormir: 11 foram mortos, à queima-roupa, e 4 foram capturados... Esta era a "cultura do ronco", em pleno consulado spinolista: apesar da "psico", a guerra continuou implacável...
Na devida altura também agradecemos, ao Hugo Moura Ferreira, esta prciosidade, que foi o último aerograma do Tala Djaló, destacando a sua sensibilidade e e sua cultura, ao ter sabido conservar em arquivo "este singelo aerograma que o teu amigo Dajló te enviou para Portugal" em 1970.
O Tala Djaló era, em 1965/67, ao tempo do cap inf Aurélio Manuel Trindade, o comandante da 4ª CCAÇ / CCAÇ 6, o chefe do pelotão de mílicias de Bedanda, o Pel Mil 143. Não sabíamos era que, em 1967, tinha sido ferido em combate, e ingressado depois na 1ª CCmds Africanos, cuja instrução e formação se realizou em Fá Mandinga, a escassos quilómetros de Bambadinca, sector L1, ou seja no meu tempo (CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71), na altura em que o nosso saudoso Jorge Cabral era o cmdt do Pel Caç Nat 63, aquartelada em Fá Mandinga.
2. Transcrição, revisão e fixação do texto por L.G., com respeito pelo original (que, além de erros ortográficos, não trazia praticamente nenhuma pontuação).
Fá Mandinga [.] 22/10/70
Caro amigo Moura F[er]reira
Recebi a sua carta na qual fiquei muito contente contigo.
Amigo Moura [:] Eu ainda não esqueço de ti [.] Aquela revista que tu me mandou eu já mostrei aos meus colegas [.] Todo ficamos muito contente e toda a companhia por saber da sua [?][.]
Eu já lhe mostrou a revista [.] Eu quero que tu me manda uma fotografia sua que [é] para eu a mostrar meus colegas todo [.] Já te conheço pela carta e falta pela cara [.] Eu agradeço-te me mandar uma fotografia sua bem tirada [.]
Olha [,] a nossa antiga companhia CC[AÇ] 6 fizeram ronco no [?] tempo os turras venha atacar Bedanda.
Depois quando [a]tacaram[,] retiraram no Lanxandé e depois do ataque o capitão mandou logo sair a companhia atrás dos turras [.] Quando chegaram a companhia no Lanxandé [,] alguns dos turras estavam a dormir e logo chegou a companhia e cercaram a tabanca em toda a volta[.] Depois [entraram] nas casas dos Balanta [.] Na dentros das casa encontra[vam]-se lá alguns a dormir e logo é só chegar[.] 1ª coisa é [a]panhar ainda armas e, logo a seguir [,] é que se cerca os turras nas cama [.]
Resultado [:] foi assim 11 mortos, 4 capturados, 14 armas [a]panhadas e muitas coisas [a]panhadas [.] Os comandantes daquele grupo foi [a]pnhado e 2º chefe dele também foi [a]apanhado[.] Mais 2 soldados dos turra também foi [a]panhado [.]
Amigo Moura Ferreira [,] a companhia de Bedanda continou [a] ser valente no mato [.]
Toda a sua família cumprimento e teu irmão [.] E eu quero que tu me [ar]ranja um boné de sargento mas não é [a]quele branco, é[a]quele da farda nº 2 [.] É que eu quero que [ar]ranja nada mais [,] amigo.
Remetente: Manuel Talabiu Djaló, Furriel , SPM 0798.
Destinatário: Hugo Fernando de Moura Ferreira, Stº António, Costa da Caparica
3. O que é o cap inf Aurélio Manuel Trindade, comandante em 1965/67 da 4ª CCAÇ / CCAÇ 6 (e hoje ten gen ref) escreveu sobre o Tala, no livro "Panteras à Solta" (ed. de autoor, s/l, s/d, c, 2010/2020) (***) ? Aqui fica mais uma nota de leitura (****):
O então alferes de 2ª linha, comandante do Pelotão de Milicias (nº 143, acrescenta o Hugo Moura Ferreira) é sempre referido simplesmente por"Tala", sem apelido (Djaló ou Jaló). Mas não temos dúvida de que se trata do mesmo indivíduo.
Mas em julho de 1965, quando o cap Cristo ("alter ego" do autor) chega a Bedanda, em julho de 1965, o comandante do pelotão de milícias era um tal Amadeu, "um fula sabido (...) e com fama de ser grande vigarista, usando e abusando da sua posição para conseguir vantagens materiais e não só. Não é um elemento muito querido dos militares, nem da população da tabanca, nem sequer dos próprios milícias que comanda" (pág. 21).
O capitão Cristo não tinha consideração pela milícia de Bedanda: na frente do régulo, Samba Baldé, chamava-lhes "militares de meia tigela" (pág. 86). E quando decide fazer a sua "reforma agrária" em Bedanda, chama o Amadeu e o Tala e os demais milícias. Quer pôr toda a gente a trabalhar a bolanha:
"O Tala, o Amadeu e os sargentos vão dar o exemplo. Dispenso o pelotão de milícias de ir para o mato desde que todos estejam a trabalhar na bolanha. (...) Daqui a quatro meses, os que não tiverem bolanha deixam de ser milícias, eu não pago a malandros" (pp. 87/88)...
E a verdade é que o cap Cristo conseguiu pôr os "malandros" a lavrar arroz na bolanha e cultivar a mancarra junto ao arame farpado, no exterior da tabanca,,, E a reconstruir as moranças da tabanca bem como a estrada para o porto exterior (que ficava a 4 km de Bedanda).
Não sabemos exatamente quando é que o Tala passou a comandar o pelotão de milícias nº 143, talvez por volta de finais de 1965. Mas na verdade é sempre ele que vai para o mato, em reforço da companhia, quando há operações como, por exemplo, a fracassada tentativa de reabertura do itinerário Catió-Bedanda (pp. 148-165). Ou a ida a Salancaur, já no corredor de Guileje (pp.229-247). Ou ainda a "batalha de Nhai" (pp. 248-265).
Portanto, Tala é o seu homem de confiança no pelotão de milicias. Quando sai para o mato, leva duas secções, vinte homens. Nunca mais se ouve falar do Amadeu, a não ser na pág. 369, a propósito dos roubos às "mulheres do mato" que vinham a Bendanda vender os seus produtos e reabastecer-se de outros (em geral, cana e tabaco). Já o cap Cristo tinha gozado a sua segunda licença de férias (portanto isto deve-se ter passado já em 1967), qundo um dos seus alferes milicianos, feito com um comerciante local, roubou arroz às mulheres do mato. Foi exemplarmente punido com 3 dias de prisão simples, expulso da companhia e transferido para Catió.
(...) "Foi a segunda vez que o capitão teve conhecimento de roubos às mulheres do mato. A primeira vez, foi o Amadeu, alferes de segunda linha, ao tempo comandante do pelotão de milícias. Esse nativo, distinguido com o posto de alferes, teve a ousadia de assaltar várias vezes as mulheres do mato quando regressavam depois de venderem o arroz. Roubava-lhes a cana, o tabaco e o dinheiro, e ainda as violava. Depois mandava-as seguir para o mato. Logo que o captão soube disto, tirou-lhe o comando e entregou-o ao Tala, que estava graduado em aspirante. O capitão exigia que as mulheres do mato fossem resepitadas quando vinham à povoação e não admitia nenhum abuso por parte dos militares ou dos milícias, pois têm todos e em todos os momentos de servir de exemplo para a população civil" (pág. 369).
A confiança no Tala não impede o capitão de ser duro com ele, qundo o comportamento dos seus milícias o põe furioso (vd. "O reino do Nino", uma ida a Cobolol, pp. 396-409). A operação correu bem mas os milícias do Tala ter-se-ão "acorbardado" quando, de surpresa, são confronados com um grupo de guerrilheiros, alguns dos quais poderiam ter sido "apanhados à mão"... Eles pensavam que os milícias eram o grupo de "reforço que esperavam"... A milícia, em vez de responder que sim e avnçançr sem medo, soube o que dizer e fazer, instalando-se o tiroteio...
Reproduz-se aqui a "piçada" que o cap Cristo deu ao Tala, no regresso ao quartel:
(...) "Repara, Tala, como eu tenho razão. Se em vez de um pelotão de milícia eu levasse um pelotão de soldados à frente,. tínhamos agrardo os gajos à mão. Bastava que dissesem que sim, somos o reforço. Quando eles dessem conta, já tinham levado a maior surra da vida deles. Continuo a pensar que as milícias nunca mais vão à frente da coluna. Podes ir, até logo" (pág. 409)...
Entrento, algun tempo depois, finda comissão em julho de 1967, o capitão Cristo diz adeus a Bedanda e despede-se, emocionado, com um almoço na casa do Zé Saldanha, o comerciante mais antigo da localidade, e com um discurso do anfitrião que merece ser reproduzido aqui, noutra oportunidade (pp. 413-419).
(Continua)
__________
Notas de L.G.
(**) Vd. poste de 1 de junho de 2006 > Guiné 63/74 - P828: 'Retido pelo IN': o caso do meu amigo Tala Djaló, ex-fur grad 'comando' da 1º CCmds Africanos, desaparecido em Conacri, no decurso da Op Mar Verde, em 22/11/1970 (Hugo Moura Ferreira, ex-alf mil 1621, Cufar, e CCAÇ 6, Bedanda, 1966/77)
(***) 22 de dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - P376: Tabanca Grande: Hugo Moura Ferreira, ex-Alf Mil da CCAÇ 1621 (Cufar); CCAÇ 6 (Bedanda) (1966/68)
(...) Naturalmente que, como todos aqueles que por ali passaram (pelo menos grande parte deles), fiquei "apanhado" e tenho uma certa "paranóia" por aquelas terras e aquelas gentes. Digo mesmo que, se é que existe vida para além da morte, certamente em outra encarnação terei sido africano e guineense, pois que, tendo vivido também alguns anos em Angola, as saudades daquele pequeno país são muito maiores.(...)
(****) Vd. postes de: