quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6872: Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (7): Ébano Febre Africana, de Ryszard Kapuscinski (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Agosto de 2010:

Queridos amigos,
Estou mesmo a acabar as férias e Ryszard Kapuscinski não podia ser melhor companhia.

Aconselho a todos os confrades que leiam esta longa viagem de 40 anos desde os primórdios da descolonização até ao surrealismo da guerra da Eritreia. Estamos a falar do mesmo Kapuscinski que é autor de uma outra obra de grande fôlego “Mais um Dia de Vida – Angola, 1975”, publicado também na editora Campo das Letras, em 1998.

Vou agora parar uns dias, mas garanto que vou levar este empolgante Ébano até ao fim.

Um abraço do
Mário


Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (7)

por Beja Santos

Ébano, uma grande angular sobre África...
para compreender melhor a Guiné-Bissau



Arrefeceu ao anoitecer, no entanto o arvoredo está silencioso, imóvel, como se esperasse o fim desta semana em braseiro. O termo das férias é uma evidência, segunda-feira saio daqui melancólico, gosto a valer desta casa toda em pedra, cercada de floresta, com um zumbido do IC8 lá ao fundo. Para já, travo a melancolia com toda esta exaltação que tem acompanhado a leitura da obra com que findo as férias com chave de ouro: “Ébano, Febre Africana”, por Ryszard Kapuscinski, Campo das Letras, 2002. O polaco Ryszard Kapuscinski é tido por muitos especialistas como um dos maiores jornalistas do século XX. Tendo começado a sua vida profissional como correspondente na Ásia e no Médio Oriente, reteve na sua obra-prima Ébano 40 anos de África. Ali começou em 1957. Como ele esclarece, Ébano não é um livro sobre África mas sobre encontros que teve com africanos. África é um continente demasiado grande para poder ser descrito. África é um conceito geográfico, um cosmos versátil, imprevisível, dominado por uma natureza luxuriante, que por vezes ultrapassa o paraíso bíblico, devastada por questões étnicas avassaladoras. A África de Kapuscinski remete-nos para as reportagens que ele efectuou logo em 1958, quando esteve no Gana, no arranque da descolonização.

Ele fala-nos de quando saiu do avião se ter sentido confrontado com o cheiro dos trópicos: “Cheiro de corpos quentes e peixe seco, carne apodrecida e mandioca tostada, flores secas e plantas aquáticas podres, resumindo, um cheiro a tudo o que é simultaneamente agradável e nojento, aquilo que atrai e repele. Este cheiro sopra das palmeiras próximas até nós, nasce na terra quente, liberta-se dos esgotos da cidade”. E sente-se surpreendido pelo andar dos africanos nessa Acra densamente urbanizada: “Na rua misturam-se automóveis e peões. Tudo se move ao mesmo tempo. Peões, carros, bicicletas, carrinhos de mão, vacas e cabras. Na berma, para lá do esgoto, desenrola-se a vida doméstica e a vida comercial, as mulheres apiloam a mandioca, tostam bolbos de taro sobre brasas de carvão, preparam alguma receita especial. Tudo às claras, como se houvesse uma regra que mandasse toda a gente sair de casa às 8 da manhã para vir para a rua”. No Gana Nkrumah é o líder incontestado. Kapuscinski vai conversar com Kofi Baako, o ministro para a educação e informação. O modo como decorre a entrevista faz ver a Kapuscinski que estes líderes africanos descobrem a política e a independência com devoção e sinceridade, falam do progresso como os iluministas falavam da Razão. O jornalista apercebe-se da profunda religiosidade africana que toma conta da realidade, que se fundamenta no mundo dos antepassados no reino dos espíritos. A noção de tempo é uma categoria passiva, uma inversão completa do pensamento europeu. O africano está habituado a esperar e está dominado pelas contingências da vida em grupo, subordinado ao clã. Viajando de autocarro entre Acra e Kumasi, o jornalista revê a evolução acelerada entre o colonialismo do final do século XIX e o processo da descolonização. Foi na II Guerra Mundial que se deu a viragem. Até aí, a diferença de raça e cor da pele foi o tema central, todos os conflitos se reduziam à oposição branco-negro: o branco era o senhor, o dominador, era intocável. Os africanos foram chamados a combater nessa guerra em teatro europeu e fazem uma descoberta chocante: que a potência colonizadora também pode ser vencida (caso da França), vêem os brancos a refugiarem-se em pânico durante os bombardeamentos, esfomeados. Até então o único contacto que tinham tido com a vida dos brancos era com a vida luxuosa que os colonizadores gozavam. Esses veteranos regressaram a África e adquiriram a noção de independência. Foi assim que tudo começou na descoberta de uma nova entidade. De novo na rua, Kapuscinski sente-se maravilhado com a comunicação entre africanos e escreve: “O modo como se é saudado e a atmosfera do primeiro encontro são determinantes para o destino de uma relação. Deve mostrar-se desde o primeiro encontro uma grande alegria e uma simpatia espontânea. É frequente ver-se duas pessoas paradas no meio da rua, vergadas pelo riso. Não significa que estejam a contar anedotas uma à outra. Estão apenas a cumprimentar-se. Se o riso acabar de repente ou a saudação está terminada e pode agora passar-se ao tema central da conversa, ou então os intervenientes no acto de saudação estão só a dar descanso aos respectivos diafragmas”.

Já em Dar-es-Salam, o autor analisa a africanização, um processo tenso, díspar, com novas manifestações de luta pelo poder. Porque o novo poder vem acompanhado do seu clã, tem que partilhar tudo com os irmãos e com os primos, quem não respeitar este princípio condena-se à exclusão. Quem pode escapar a esta lógica são os não nacionais, caso dos comerciantes oriundos do Próximo Oriente ou da Ásia, que continuam a viver dentro das suas categorias sociais. Com a africanização, antigas relações interétnicas que tinham sido congeladas ou simplesmente ignoradas pelo colonizador, ressuscitaram, activaram-se. No caso preciso de Uganda, os antigos reinos reacenderam os seus conflitos. O jornalista adoece com a malária, sentiu-se invadido por um frio atroz, penetrante, começou a tiritar e a ter convulsões. Ele fala assim deste sofrimento: “Entramos no mundo que ainda há instantes ignorávamos completamente, mundo que acaba por nos vencer, descobrimos dentro de nós vales, fendas e abismos glaciares. Depois da crise, fica-se um verdadeiro destroço humano, uma pessoa nada numa poça de suor, tudo lhe dói, sente tonturas e náuseas. Quando se pega ao colo de uma pessoa assim, tem-se a sensação que ela não tem nem ossos nem músculos”.

O olhar do jornalista dirige-se agora para a expansão colonial, que passou das cidades do litoral para as profundezas do continente: é o tempo a epopeia dos caminhos-de-ferro, estradas e pontes. É nisto que um golpe de Estado rebenta em Zanzibar, é para ali que se dirigem os jornalistas. O aeroporto de Zanzibar está encerrado, os jornalistas dirigem-se a Dar-es-Salam. Depois de várias negociações, alugaram um pequeno avião e voaram para Zanzibar. Atónito, descobre a improvisação, as ordens e contra-ordens dos revoltosos. Zanzibar ficou conhecida pelo seu comércio de escravos que durou 400 anos, nele participaram a Europa, as suas Américas e numerosos países do próximo oriente e da Ásia. Por aqui passaram caravanas de escravos oriundos do Congo, Malawi, Zâmbia, Uganda e Sudão. É um país onde os árabes dominam os africanos negros, estão em permanente discórdia. O golpe de Estado foi desencadeado por John Okello, de 25 anos, meio analfabeto que tem um slogan: “Deus deu Zanzibar aos africanos e prometeu-me que a ilha ia voltar a ser nossa”. Para isso é preciso expulsar os árabes e aguardar a retirada dos ingleses. Na véspera da revolta, Okello autoproclama-se marechal de campo e os trabalhadores agrícolas e polícias atribuem-lhe o grau de general do exército. O encontro entre os jornalistas e Okello é surpreendente. Como iremos ver a seguir.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 18 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6867: Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (6) (Mário Beja Santos)

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