quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Guiné 63/74 - P7640: Notas de leitura (191): Intervenção Rural Integrada, a experiência do norte da Guiné-Bissau, de Mamadu Jao (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Janeiro de 2011:

Queridos amigos,
Este livro de Mamadu Jao impressionou-me profundamente. É preciso ter coragem para desmantelar os interesses de uma ajuda ao desenvolvimento que, regra geral, decepciona e deixa as populações numa maior amargura. Não se devia fazer cooperação, sobretudo em meios rurais (a população da Guiné, como é de todos sabido, é profundamente rural) sem ouvir os antropólogos sociais e culturais.
Estes milhões e milhões da cooperação e da ajuda ao desenvolvimento podiam ter melhor sorte desde que se conhecesse verdadeiramente as aspirações dos seus potenciais beneficiários.
Esta leitura ajuda a perceber o caudal de desastres em que tem vivido a Guiné-Bissau.

Um abraço do
Mário


Porque tem falhado, porque continua a falhar, o desenvolvimento na Guiné-Bissau

Beja Santos

O título “Intervenção Rural Integrada, a experiência do norte da Guiné-Bissau”, de que é autor o antropólogo Mamadu Jao, não deixa antever a riqueza da análise sobre os problemas fundamentais do desenvolvimento e como as autoridades políticas da Guiné-Bissau, desde a independência, têm sistematicamente falhado na obtenção de resultados. Seja-me permitida a ousadia de sugerir que ninguém deve ir hoje para o Governo na Guiné-Bissau, ser ali cooperante, ou até mesmo voluntário de uma organização não-governamental sem ler este livro. O que é que ele tem de tão precioso?

Logo o prefácio de Flavien Fafali Koudawo que desafrontadamente avalia o falhanço dos financiamentos externos neste país que vive de projectos mas que não tem, para o seu funcionamento orgânico, um projecto. Logo em 1974, independentemente dos sonhos e do altruísmo da governação de Luís Cabral, visão clara desse modelo foi coisa que nunca houve. As próprias orientações do III Congresso do PAIGC (1977) que se debruçou sobre a reconstrução nacional conseguiu dar substância a um projecto nacional, as promessas de desenvolvimento derramaram-se em múltiplos projectos cujos resultados apontam para o zero de eficácia. Entendeu-se o progresso como uma corrida contra o tempo, desenhava-se à régua um rumo para recuperar o tempo perdido, o desenvolvimento era encarado como um processo linear ou seja se havia atraso com boa vontade e determinação mudavam-se as mentalidades, nasciam actividades, atingiam-se metas, era tudo simples como os cálculos matemáticos, bastava usar palavras mágicas como: participação comunitária, iniciativas de bases, desenvolvimento integrado ou duradouro, desenvolvimento humano. Os representantes das agências das Nações Unidas e os cooperantes oficiavam esta missa, arrastando o Estado, as ONG, as múltiplas associações guineenses. Gastaram-se milhões em nada, o balanço é desalentador e os porquês, escreve o prefaciador, estão bem enunciados no trabalho de Mamadu Jao.

O antropólogo (que é hoje director do INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa) começa por nos prevenir quanto à metodologia adoptada para análise do impacto de uma experiência de intervenção rural integrada. Ele parte de uma hipótese operacional: as dificuldades dos programas e/ou projectos de apoio ao desenvolvimento rural na Guiné-Bissau não se devem tanto às carência de ordem financeira e de recursos humanos mas são motivados sobretudo por: a incoerência na implementação das políticas de desenvolvimento; a adopção de estratégias de intervenção inadequadas; a deficiente administração e a má gestão dos recursos. Procede-se igualmente a análise de todo um conjunto de instituições que aparecem ligados ao programa, avaliam-se as suas inter-relações e procura-se saber como tudo funcionou e que resultados se obtiveram para a melhoria da qualidade de vida das populações envolvidas. O autor socorreu-se da bibliografia mais pertinente, de entrevistas e da sua própria observação.

Primeiro, o conceito de desenvolvimento rural integrado continua a ser sujeito a várias definições podendo abarcar crescimento económico, aumento de produtividade, melhor distribuição dos rendimentos, acréscimo do potencial humano no contexto das relações entre grupos sociais. Daí as receitas e os modelos para se obter esse potencial com a implementação de acções de desenvolvimento que devem partir dos interesses reais dos beneficiários. O que a prática tem ensinado é que os planificadores se substituem às aspirações e às práticas socioculturais das populações envolvidas. Quer-se desenvolver recorrendo ao capitalismo de Estado, a políticas socialistas, ignorando os usos e costumes, por puro voluntarismo. E daí o descalabro dos resultados.

Segundo, o autor apresenta-nos dados de base e percorre o historial de modelos de desenvolvimento desde a independência até ao final da década de 80. Daí parte para o desenvolvimento rural integrado na Guiné-Bissau e a ênfase política dada ao desenvolvimento rural tido como sector prioritário. Foram delineados objectivos para estes programas em várias regiões e a cooperação sueca aceitou co-financiar na região centrada em Bula um programa de desenvolvimento.

Terceiro, o autor apresenta a estratégia e depois desmonta-a em função dos resultados. Ninguém teve em consideração as questões étnicas, a preparação efectiva de quadros locais, ninguém supervisionou os transportes, a entrega de combustíveis, a formação de demonstradores, em suma tudo falhou nos sectores florestal, pecuário, social; as infra-estruturas tiveram vida efémera e não se cuidou da sua manutenção, as mulheres não foram enquadradas, não se assegurou assistência sanitária, etc. Tudo conjugado, os resultados são calamitosos, descurou-se o mau funcionamento dos ministérios (o mesmo é dizer que há um permanente bloqueio institucional) onde é proverbial a falta de definição de competências e por conseguinte nunca há coordenação efectiva de qualquer programa. Apurou-se ter existido gestão danosa de alguns dos intervenientes, cegueira na importação de equipamentos (inadaptados à realidade local e que depois se transformam em sucata pura).

Quarto, o antropólogo procede a análise de impacto, desagregando os aspectos da vida das populações que foram envolvidas, sempre com o cuidado de destacar o conflito entre a organização do poder, a organização do trabalho, a vida social e os conflitos que o programa não resolveu, daí ter-se ficado no impasse que redundou na desmobilização pura e simples das populações. Como não se cuidou da motivação no respeito dos usos e costumes, na criação de confiança, no uso de uma comunicação cultural apropriada, esta intervenção rural integrada não mudou ninguém.

Moral da história: é melhor ouvir as pessoas, conhecê-las e saber gerir as suas aspirações e não substitui-las. A ajuda ao desenvolvimento tem que mudar sob pena de agravar o descontentamento dos chamados países em vias de desenvolvimento. E a Guiné-Bissau não é excepção, bem pelo contrário.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 18 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7633: Notas de leitura (190): As Origens do Nacionalismo Africano, de Mário Pinto de Andrade (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Hélder Valério disse...

Caro MBSantos

Este livro parece ser de facto de leitura obrigatória para se perceber melhor o que é isso e como funciona, na prática, a 'ajuda'...
Por outro lado, também me parece ilustrar o facto de nem todos os elementos capazes de fazer uma reflexão aprofundada sobre a realidade da Guiné terem abandonado a região.

Torna-se assim, também, bem evidente, a correcção do rumo traçado pela AD na sua forma de trabalhar com as populações, procurando ensiná-las a emancipar-se em vez de as contemplar com coisas efémeras.

Abraço
Hélder S.