Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sexta-feira, 21 de janeiro de 2011
Guiné 63/74 - P7649: O Alenquer retoma o contacto (1): De Bissau para Mansoa com intervenções em Mansabá, Cutia, Bissorã e Porto Gole (Armando Fonseca)
O Alenquer retoma o contacto (1)
1. Mensagem de Armando Fonseca*, ex-Soldado Condutor do Pel Rec Fox 42, Guileje e Aldeia Formosa, 1962/64, com data de 19 de Janeiro de 2011:
Conforme o solicitado anteriormente, vou tentar não ser enfadonho, mas deixar alguns dados do que foram os meus tempos de Guiné passados entra 1962 e 1964.
Sem ter propriamente veia de escritor, vou narrar alguns factos tal como os tenho no meu caderno de apontamentos daquela altura.
Chegado a Bissau a 28 de Maio de 1962 no Navio António Carlos, não cito aqui os arrepios da partida visto que todos nós vivemos esse suplício, o navio fundeou ao largo e fui transportado para terra numa lancha, onde esperavam GMCs para transporte até ao quartel General onde fiquei instalado.
As camas e as respectivas roupas ainda não tinham sido desembarcadas e dormi as primeiras noites numa cama de campanha apenas com uma manta para me defender dos mosquitos mas com o calor intenso que se fazia sentir, ou se morria de calor ou se era comido pelos mosquitos.
No terceiro dia lá apareceu a cama e a roupa, e a promessa de mosquiteiro que nunca chegou a aparecer, se quis evitar de ser comido pelos bichos tive que ir comprar tecido e mandar fazer um mosquiteiro num alfaiate da cidade.
O pelotão levava como missão reforçar a defesa da cidade, incluindo o aeroporto, e então o meu primeiro serviço foi exactamente piquete ao aeroporto. Fazia 24 horas de serviço dia sim dia não, garantindo a segurança das partidas e chegadas dos aviões, quer fossem civis ou militares.
Antes das aterragens ou dos levantamentos lá ia passar revista a toda a pista observando se havia algo de anormal e só depois os aviões entravam na pista.
Às vezes no dia aparecia outro biscate para fazer inclusive atender a algumas escaramuças que apareciam na cidade, visto que, aquela data o comando do PAIGC era nos arredores da cidade, no Pilão, que se situa entre esta e o Quartel General.
Permaneci assim até aos finais de Agosto de 1963, altura em que fui sorteado para ser deslocado com a guarnição do meu carro para Mansoa, porque o Bcaç 512 que aí se encontrava e tinha distribuídas Companhias em Mansabá e em Bissorã, as quais tinha que abastecer, já estava com graves problemas nas deslocações das suas colunas e então pediu o reforço de um carro de cavalaria para acompanhar essas colunas.
Cheguei então a Mansoa em 28 de Agosto e comecei de imediato a fazer escoltas, quase todos os dias saía para Mansabá ou Bissorã, e quando assim não era, havia que escoltar pessoal que se deslocava para a capinagem das bermas das estradas desses percursos.
Na madrugada do dia 3 de Setembro chegou ao quartel a notícia de que Porto Gole tinha sido atacado e lá fomos pelas seis da manhã escoltar um pelotão da Ccaç 413 para ver o que se tinha passado. Ao chegarmos encontramos um cenário desolador, haviam cinco moranças totalmente queimadas, dois cipaios mortos, tendo os guerrilheiros levado preso o chefe de posto e um colono branco.
Já não regressamos a Mansoa e no dia seguinte começou a ser erigido ali um aquartelamento visto que tinha deixado de haver a segurança, até aí feita pelo chefe de posto e pelos cipaios, e aquele era um ponto crucial para apoio aos barcos que pelo Geba se deslocavam de Bissau para o interior.
Permaneci ali até haver condições para as tropas de caçadores terem um mínimo de segurança. Durante esse período a alimentação baseou-se quase sempre em bolachas e conservas, até haver condições para começar a matar uns carneiros e umas galinhas que por lá havia.
No dia 9 regressei a Mansoa, sendo retomada a rotina de escoltas e agora também a Porto Gole porque ninguém dava um passo sem que a auto metralhadora não fosse à frente da coluna.
No dia 13 um pouco antes do almoço ouviu-se ao longe um rebentamento e passado algum tempo apareceram dois homens a informar que o rebentamento tinha sido na tabanca de Cutia e que havia lá feridos.
Seguimos para lá e deparamos com dois feridos graves, um tinha um buraco na cabeça e o outro tinha uma perna e as duas mãos cortadas, o primeiro foi levado para o hospital, e o segundo, a família não deixou que o levassem, porque quiseram que ele morresse junto deles.
Em 22 fomos chamados para socorrer uma viatura civil e uma ambulância de transporte colectivo que estava a ser atacada entre Mansoa e Mansabá. Fomos lá e quando chegamos já o IN tinha abandonado o local levando todo o dinheiro e os géneros que seguiam nas viaturas.
A partir desta data, além das deslocações militares que chegavam a ser duas por dia, apareceram também as colunas civis que já não se deslocavam sem escolta militar.
No dia 24 saímos de Mansoa pelas cinco da manhã para ir tirar umas árvores que o IN tinha colocado na estrada que ligava Porto Gole a Enxalé e a deixara intransitável, e às oito horas com 44 árvores cortadas e retiradas, encontramos uma companhia que vinha de Enxalé ao nosso encontro e que a cerca de um quilometro tinha sofrido uma emboscada, onde se encontra um pelotão com vários feridos ligeiros e um Furriel com uma perna cortada, o qual ao fim de cinco horas, sem o socorro que a situação exigia, veio a falecer.
Além dos feridos havia ainda um granadeiro atascado na bolanha que nos deu muito trabalho a retirar.
Quando regressamos a Porto Gole era já noite e apenas com o pequeno almoço das quatro da manhã no estômago; depois de comermos alguma coisa regressamos a Mansoa que distava cerca de 27 quilómetros.
Este é o primeiro episódio, outro se seguirão se acharem por bem.
Um grande abraço do camarigo
Armando Fonseca,
Soldado 452 do
Pelotão de Rec Fox 42
__________
(*) Vd. poste de 22 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7023: Tabanca Grande (245): Armando Fonseca, ex-Soldado Condutor do Pel Rec Fox 42 (Guiné, 1962/64)
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2 comentários:
Camarigo Armando Fonseca
Muito interessante estas informações que aqui apresentas, para nos darem a conhecer algumas das actividades naqueles primeiros tempos do início ds Guerra na Guiné.
Para já, estes primeiros acontecimentos narrados na zona de Mansoa, para mim, que lá estive vários anos depois, parecem-me de muito interesse para ajuizar como começou e foi depois evoluindo a luta nesse Chão Balanta.
Fico aguardando a continuação.
Abraço
Jorge Picado
Caro camarigo Armando Fonseca
Este teu relato dá-nos uma ideia de como foram evoluindo, no terreno e nos meios, as acções que o IN desenvolvia e também os trabalhos cometidos às NT.
Dá-nos a indicação das datas em que zonas tidas como calmas começaram a ter 'problemas'. Indica-nos como os problemas de assistência médica, por exemplo, se tornaram imperiosos e também tiveram que evoluir.
E, percebe-se bem, como foram pioneiros em muitos locais e em muitas situações, tiveram que desbravar caminho e prepará-lo para outros que se seguiram e que, pelo menos em termos de instalações, não tiveram que esperar tanto pelos lençois...
Abraço
Hélder S.
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