1. Nono episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 19 de Janeiro de 2011:
NA KONTRA
KA KONTRA
9º EPISÓDIO
Sentados no “bentem”, por momentos, estiveram os dois em silêncio. A essa hora nunca era demais contemplar as trovoadas ao longe, sem a preocupação das que se desencadeavam perto e que provocavam autênticos dilúvios. Por mais que lhe custasse o nosso Alferes expôs o mal estar da Kadidja e alertou para as consequências de ser a mulher do Chefe da Milícia a debandar. Por arrastamento podiam acontecer mais “deserções”.
O João ouve, nada diz, e o Alferes Magalhães espera que a conversa venha a surtir algum efeito.
O milícia Braima ainda toca o seu kora e o nosso Alferes começa a fazer planos para o dia seguinte. Ainda antes de ter a tal conversa com o João, pelo desejo incontido, iria procurar a Asmau à morança do pai, chefe de tabanca. Não sabia muito bem como abordaria o assunto nem tão pouco quem lhe iria aparecer, se a bajuda se os pais. O desejo de a rever estava a tornar-se incontrolável.
Depois de tomar o café, o Alferes Magalhães anda por ali dum lado para o outro a ganhar coragem e a pensar o que dizer, conforme quem lhe aparecesse à porta da morança do Chefe de Tabanca. Custou a decidir-se mas por fim, num repelão, arranca direito à morança da Asmau que fica no outro extremo da tabanca. Não vai pelo carreiro que serpenteia por entre as outras moranças. Vai a direito, como autómato programado para fazer um percurso entre dois pontos.
Como o calor já apertava e devido ao seu estado de alma chega ofegante. Tem que limpar o suor que lhe escorre da testa e lhe inunda as faces. Fora da morança não vê ninguém. Não tem coragem de chamar directamente pela Asmau e chama:
- Adramane, Adramane.
O Chefe de Tabanca aparece, baixando-se ao passar a porta da morança e logo pergunta:
- O senhor “Alfero precisar” alguma coisa?
O nosso Alferes sabia muito bem do que precisava, mas apesar da sua coragem como militar, neste caso vai-se totalmente “abaixo das pernas”. Para isso contribuiu também o aparecimento da bajuda Asmau, à porta. Não querendo estragar tudo logo ali no início, e porque lhe tremiam as pernas, o que lhe pôde sair da boca foi:
- “Kuma ku bu s’esta? kurpo di bo”?... Sabe, Chefe, nós andamos a comer sempre a mesma “bianda”, e para ver se variamos, queria saber se alguém da tabanca nos pode vender duas galinhas.
Tão depressa o Chefe de Tabanca mandou entrar o Alferes, como depressa a Asmau saiu. Em conversa de homens as mulheres não participam. A bajuda fugia-lhe por entre os dedos como “bentana” escorregadia.
Lá dentro o Chefe Adramane apressou-se a dizer:
- Ainda bem que me vem falar das galinhas, pois eu já estava em falta com o senhor “Alfero”, desde que aqui chegou. Tinha precisamente duas galinhas para lhe oferecer.
Depois dos respectivos agradecimentos e de conversarem de vários assuntos relacionados com a tabanca o nosso Alferes despede-se e vai reunir-se ao pessoal que iria começar os trabalhos dessa manhã. Pelo caminho congeminou que, para agradar ao Chefe de Tabanca, lhe irá oferecer uma lata de atum, das grandes, de três quilos. Aos seus homens dirá uma pequena “mentirinha”, que tinha trocado uma lata de atum por duas galinhas, para todos tirarem a barriga de misérias.
Ao regressar da morança do Chefe de Tabanca ouviu um gargalhar à porta de uma morança. Dirigindo-se para lá depara com o Dionildo mostrando a dois milícias, um baralho de cartas de jogar, daqueles com cenas pornográficas, o que provocava nos africanos daquela tabanca remota, um misto de gozo e de admiração pela depravação patente. Tinha que ser o Dionildo… O Alferes explica-lhe a “poluição” do seu acto, face à ingenuidade e pureza daquela gente, ao mesmo tempo que constata que realmente tinham vindo prevenidos. A criatividade não tem limites, pensa.
O nosso Alferes mandou o “Legionário” buscar as galinhas em troca da lata de atum, dando a explicação que tinha congeminado.
Nessa manhã adiantam-se os trabalhos. Chegada a hora do almoço, o nosso Alferes está de “água na boca”, não pela galinha preparada pelo “legionário”, mas por que não dizê-lo, pela sua amada.
Será que à noite, desta vez, irá ter com o João a conversa que tanto deseja?
Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 19 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7637: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (44): Na Kontra Ka Kontra: 8.º episódio
1 comentário:
Glossário do 9º episódio:
KUMA KU BU S’ESTA? KURPO DI BO?: Como você está? A saúde?
BENTANA: Peixe de rio muito comum na Guiné.
BIANDA: Comida, arroz cozido.
Mais informo que a palavra "Kurpo" escrita assim por um guineense se pode encontrar escrita "kurpu" num conceituado dicionário de crioulo.
Um abraço a todos e até amanhã.
Fernando Gouveia.
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