segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9270: Notas de leitura (316): Literaturas da Guiné-Bissau, Cantando escritos da história (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Novembro de 2011:

Queridos amigos,
Estas “Literaturas da Guiné-Bissau” constituem seguramente o panorama mais actualizado de uma literatura que continua em fase de busca e afirmação. Temos aqui condições para estudar escritores de várias gerações, críticos da desgovernação, reconstrutores de mitos, vozes de desalento, narradores colocados entre a ficção e história, aparecem aqui trovadores e artífices da construção da Guiné-Bissau.
É um livro importante que não podemos descurar. É bem provável que algumas destas vozes anunciem as trombetas do futuro. Que todos nós gostaríamos que fosse a prosperidade e o desenvolvimento merecido para gente tão acolhedora e próxima de nós, na língua e na história.

Um abraço do
Mário


Literaturas da Guiné-Bissau

Beja Santos

“Literaturas da Guiné-Bissau: cantando os escritos da história é uma obra em que as várias críticas apresentadas constituem-se contributos para leituras de obras de autores guineenses e/ou de inspiração guineense, seguindo as mais diversas direcções e dicções, questionando, em alguns casos, a invenção/existência da nação guineense, e, em outros casos, indagando sobre a guineidade enquanto fio nevrálgico da entidade guineense”. É deste modo que Odete Costa Semedo e Margarida Calafate Ribeiro apresentam uma reflexão multifacetada, a várias vozes, poetas, contistas e romancistas justificam como estão a desconstruir e a reconstruir aquela que foi a língua do opressor e que evoluiu para língua de emancipação, opção e apropriação e também língua do coração (“Literaturas da Guiné-Bissau”, organização de Margarida Calafate Ribeiro e Odete Costa Semedo, Edições Afrontamento, 2011).

Os intelectuais guineenses sentem-se confrontados com várias lacunas e vazios culturais: têm conhecimentos difusos sobre o passado anterior à chegada dos portugueses, à proveniência das diferentes etnias, há muito poucos elementos sobre os impérios no qual se veio a organizar o território da Guiné-Bissau; segue-se uma abundante literatura de viagens que inclui navegadores, bispos e viajantes, há também alguns depoimentos de estrangeiros, no século XIX, com a primeira tipografia em Bolama, surgem os boletins oficiais e alguns jornais, e entre 1946 e 1973 publicaram-se 111 números do Boletim Cultural da Guiné Portuguesa. É evidente que o território das letras se espraiou por outras latitudes: inúmeros depoimentos das publicações coloniais, há a figura singular de Marcelino Marques de Barros, um cónego guineense que recolheu e publicou contos e cantigas da tradição oral; segue-se a literatura do período colonial onde preponderaram escritores como Fernanda de Castro e Fausto Duarte; e Amílcar Cabral e Vasco Cabral foram duas vozes relevantes na poesia apelativa à luta de libertação.

O livro abre dois textos críticos a contextualizar historicamente os modos e os porquês da actual literatura guineense: é uma pesquisa sobre o inconsciente colectivo, uma tentativa de afirmação mais além da literatura colonial e da literatura da resistência. Procurando um ponto de partida, considera-se Carlos Semedo como o primeiro autor guineense, alguém que em 1963 já escreve a pensar no futuro, para lá da presença colonial. Estas duas autoras procedem a um levantamento minucioso da literatura mormente nos verdes anos da independência até aos dias de hoje, dando ênfase à publicação, em 2010, de Traços no Tempo: antologia poética juvenil da Guiné-Bissau, com a participação de 23 poetas e onde abundam as temáticas do poeta sofrido com a dor de um país desencontrado. As autoras debruçam-se sobre a produção literária da geração de Tony Tcheka, Agnelo Regalla e Hélder Proença, a par de duas figuras marcantes da cena musical, Armando Salvaterra e José Carlos Schwarz. Antes do virar do século, surgem contistas e narradores como Domingas Sami, Manuel da Costa e Abdulai Sila, sendo este último autor considerado como um escritor profundamente original. Chega-se assim século actual, é tempo de fazer balanço sobre as utopias de construção da nação guineense. As ensaístas escrevem que o assassinato de Hélder Proença, em 2009, veio decretar o fim dos sonhos de Amílcar Cabral e referem que já em 1994 Carlos Lopes alertara para o modo como o sonho nacionalista se distanciara da concepção de Amílcar Cabral. Uma das tónicas dominantes da poesia da Guiné-Bissau da pós-independência manifesta-se pelo desencanto, é uma poesia que se vai afastando do tom épico-revolucionário, enveredando por um lirismo dos afectos.

Um outro olhar é dado pelo próprio Tony Tcheka, ele garante que a literatura guineense está viva. Considera que se escreve mais hoje embora se continue a publicar pouco. A questão editorial prende-se com a ausência de sensibilidade para as questões de natureza cultural e literária e não esconde a sua mágoa: “As oportunidades têm-se esfumado nos actos tresloucados e irresponsáveis de muitos que teriam por obrigação construir e consolidar os alicerces da casa grande Guiné-Bissau. Porém, os escritores, músicos e artistas plásticos negam o estatuto de derrotados. Porfiam criando. Insistem na lírica. Optam pela via artística, porventura a mais consentânea com os sinais da terra, com o pulsar do quotidiano e o sentimento escancarado nas caras anónimas pungidas de mágoas encruadas”. Depois de repertoriar os principais nomes, de José Carlos Schwarz a Félix Sigá, de Filinto Barros a Odete Costa Semedo, Waldir Araújo e Silvano Gomes, Tcheka saúda o contributo da moderna poesia e refere-se assim a este vasto elenco: “São jovens poetas. Sonhadores sim, mas apalpando e interpretando o vaivém e o pulsar da terra dos poilões sagrados que albergam uma vida mitigada. Ultrapassaram as distâncias e juntaram-se no epicentro dos sentimentos. Ali onde a dor e a paixão se confundem (…) Justo será dizer que há uma construção nova. Entre os vários estilos identificados, nota-se a preocupação de um estilo novo. Em certos casos, celebra-se o casamento perfeito entre a temática social e a lírica, sofismada até com contornos inovadores, mas sempre muito perto dos cantares guineenses expressos por meio de uma oralidade eivada de valores culturais multifacetados”.

Maria Nazareth Soares Fonseca pergunta em que língua pode um guineense escrever, os africanos têm dentro de si a oralidade, os guineenses comunicam entre si pelo crioulo, cada escritor vê a língua portuguesa à sua maneira, não há preconceito de escrever em português, há memória e a história e há que enfrentar os problemas advindos da necessidade de assumir a língua da colonização como a língua da nova nação e também como língua literária, a despeito da língua do coração ser a dos ancestrais, uma negritude que ainda não encontrou a comunicação apropriada. Daí a prática decorrente de se escrever em crioulo, com um sabor forte de terra, dando mais vigor e autenticidade às tradições próprias dos costumes do país.

Fiquemos por aqui, por ora, há mais vozes que querem comunicar as suas maneiras de ver a literatura. Teresa Montenegro vem falar do fogo, luz e fulgor, entusiasmo, paixão e destruição, meio controlado e meio à solta, fogueira, ferro em brasa, na Guiné-Bissau o fogo está presente na forja dos ferreiros, na preparação do óleo vermelho, da cera, da cana e do sabão, mas também no fogo interior, o fogo que nas queimadas devora o capim. Esse fogo é uma força vital na tradição oral e na oratura, matrizes do crioulo desta Guiné-Bissau.

(Continua)
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 23 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9254: Notas de leitura (314): Recortes da História da Guiné-Bissau (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 23 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9259: Notas de leitura (315): De Campo em Campo, por Norberto Tavares de Carvalho (José Manuel Matos Dinis)

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