1. Mensagem do nosso tertuliano Cherno Baldé*, com data de 27 de Dezembro de 2011:
Caro amigo Carlos Vinhal,
Juntamente envio um pequeno excerto do livro de Amadu Ampaté Ba, dedicado ao seu mestre Tcherno Bokar Tall de Bandiagara (Bandjagara). Se acharem que não destoa e tem interesse para publicação, então não exitem, se for o caso contrário, também não há mal nisso. Esta minha iniciativa vem na linha e a propósito da recente publicação de um excerto do livro do Sr. Augusto Schwarz, pai do Eng. Pepito sobre o Cherno Rachid de Quebo que numa publicação anterior já se tinha referido ao Tcherno Bokar de Bandiagara.
Com os melhores cumprimentos,
Cherno Baldé
PS: Eu sei que o blogue privilegia escritos e trabalhos pessoais ainda não publicados mas não resisti à tentação de contribuir na divulgação de uma mensagem e de um ideal de paz e amor fraternal entre os homens de todas as religiões e de todas as regiões do mundo num período em que a violência e a conquista de territórios coloniais fazia furor entre as potencias do mundo.
AS TRÊS LUZES
(…) O olho (‘ayn) que se encontra no fundo de cada homem precisa de uma luz para ver o mundo na sua verdadeira essência e, sobretudo, para perceber as realidades divinas. Mas nem todos os caminhos são acessíveis a toda a gente.
Um dia, estando ele (Tcherno Bokar) a falar (com os seus alunos) sobre a noção da luz (nur em árabe), fiz-lhe a seguinte pergunta:
- Tcherno, quantas luzes místicas existem?
-Oh meu amigo, respondeu ele, eu não sou o homem que viu todas as luzes, não obstante, posso falar-te de três luzes simbólicas:
A primeira é a que tiramos da matéria sólida quando a friccionamos, pondo-a em combustão. Esta luz, assim obtida, não pode aquecer e iluminar senão um espaço bem limitado. Ela corresponde, simbolicamente, à fé das massas, dos indivíduos pouco evoluídos na escala mística. A este nível, os adeptos não podem ir p’ra além da imitação (taqlid) e da letra. A obscuridade da superstição envolve-os, o frio da incompreensão fá-los tremer. Eles ficam encolhidos num cantinho da tradição onde fazem o mínimo de barulho possível. Esta luz é aquela que anima os crentes quando ainda se encontram no degrau da fé dita Sulbu (solida).
A segunda luz é a do sol. Ela é superior à primeira no sentido em que ela é mais vasta e mais potente. Ela ilumina tudo o que existe sobre a terra e o aquece. Esta luz simboliza a fé de grau médio na via mística. Assim como o sol, ela dissipa as trevas logo que entra em contato com elas. É uma fonte vivificante para todas as criaturas. Ela simboliza as luzes que detêm os adeptos no degrau místico da fé dita Sa’ilu (liquida). Da mesma forma que o sol ilumina e aquece todos os seres que, desde este momento, são irmãos, os adeptos que conseguiram chegar a esta luz media, vêm e tratam como irmãos tudo o que vive debaixo do sol e recebe a sua luz. Eles não menosprezam a primeira luz, em virtude da sua função preparatória indispensável, mas eles já não são como os insectos que dançam a volta duma chama de fogo onde, às vezes, se queimam. A primeira luz, assim como aquela que a simboliza pode, dependendo das circunstâncias, ser apagada ou reacendida; pode ser transportada de um lugar a outro; dito de outra maneira, ela pode mudar de forma e de potência, enquanto que a segunda luz mantém-se fixa e imutável na sua perenidade, como a do sol. Ela virá sempre da mesma fonte e continuará igual a si mesma através dos séculos.
A terceira luz é aquela que nos chega do centro da existência; é a luz de Deus. Quem se atreverá a descrevê-la? É uma obscuridade mais brilhante que todas as luzes juntas. É a luz da verdade. Aqueles que têm a felicidade de aqui chegar perdem a sua identidade, transformam-se no que poderia ser uma gota de água caída no (rio) Niger, ou ainda num mar infinitamente mais vasto em extensão e profundidade. Neste grau, Jesus transformou-se no espírito (Santo) de Deus, Moisés no seu interlocutor, Abraão no seu amigo e finalmente, Mohammad (Mahomet) no sêlo das Suas missões na terra.
OS TRÊS GRAUS DA FÉ
Tendo refletido sobre o que tinha acabado de ouvir, perguntei-lhe de novo:
-Tcherno, quantas formas de fé existem, afinal?
Oh meu irmão, respondeu, não sei ao certo. A fé não é quantificável como os membros de um agregado familiar, nem mesurável como a distância de Bandiagara a Mopti. Não se pode pesá-la como o milho de Bankassi ou as frutas do mercado de Dourou. Para mim, a fé é a soma da confiança que temos em Deus e o grau (nível) da nossa convicção e é, também, a fidelidade para com o nosso criador. A fé aquece-se ou se esfria; ela varia de acordo com as pessoas e segundo os meios.
Para simplificar, esquematizo a fé da maneira seguinte: A fé Sulbu, a primeira, que chamei de fé sólida; a fé Sai’lu, a secunda, que chamei de fé liquida; e finalmente a fé ghazyu, a mais subtil, que é como um vapor gasoso.
1. O primeiro grau da fé convém ao comum dos mortais, as massas, aos marabuts agarrados a letra. Esta fé é sustentada e canalizada pelas prescrições impostas por uma lei tirada dos textos revelados, sejam eles judaicos, cristãos ou muçulmanos. Nesse estádio, a fé tem uma forma precisa; ela é intransigente, dura como a pedra, de onde tiro o seu nome.
A fé no grau Sulbu é pesada e imóvel como uma montanha. Se for preciso ela prescreve (decreta) a guerra pelas armas, a fim de preservar o seu lugar e se fazer respeitar.
2. A fé Sa’ilu (liquida) é a fé dos homens que trabalharam e enfrentaram com sucesso as provas do Sulbu, da lei rígida que não admite compromissos. Estes homens triunfaram sobre as suas próprias fraquezas (defeitos) e se engajaram na via que leva à verdade. Os elementos desta fé Sa’ilu resultam do conhecimento; eles reportam-se das veracidades, venham donde vierem, sem considerações de origem ou de antiguidade. Estas veracidades, recolhidas e agrupadas, formam um corpo animado de um movimento perpétuo, duma constante marcha para frente, uma marcha de moléculas de água que brota do fundo das montanhas, escorrem através de diferentes solos, acumulam-se nos obstáculos, depois engrossam ribeiras e rios para, finalmente, desaguar no oceano da verdade divina. Esta fé, assim como o seu símbolo liquido, elimina os defeitos da alma, desgasta as rochas da intolerância e espalha-se em toda a parte, tomando sempre a forma do seu recipiente. Ela penetra os humanos segundo a configuração do seu terreno moral. A fé Sai’lu educa (disciplina) o adepto, fá-lo um homem de Deus capaz de entender e de apreciar a voz de todos os que falam do criador. Ela é vivificante, ela pode solidificar-se e tomar a forma de (grelle) granizo quando for preciso tratar de almas que ficaram no degrau (nível) primário da fé. Ela pode sublimar-se e elevar-se em forma de vapor como a fé Ghaziyu, nos céus da verdade. Ela estabelece o regime da cidadela de paz onde o homem e os animais convivem lado a lado, onde os três reinos vivem na irmandade. Aqueles que a possuem elevar-se-ão contra a guerra.
3. A fé ghaziyu (gasosa) é o terceiro e último grau. É o apanágio de uma elite dentro da elite. Seus elementos constituintes são tão puros quanto libertos de qualquer peso material que os pudesse reter na terra, eles se elevam como fumo no céu das almas puras. Aqueles que chegam a este nível de fé adoram Deus na verdade e numa luz incolor. A verdade divina floresce nos campos do amor e da caridade.
Nota:
Tierno Bokar Saalif Tall (1875/1939) nasceu em Ségou (actual Mali), foi fundador de uma escola corânica (zaouia) em Bandiagara (pais Dogon) para onde a família se tinha mudado após a entrada das tropas francesas em Ségou. Famoso pela sua mensagem de tolerância religiosa e de amor universal foi vitima de uma querela entre facções religiosas rivais envolvendo também o poder colonial francês que não conseguiu reconhecer a profundidade da mensagem de amor e de paz de Tierno Bokar. Antes da sua morte, um dos seus maiores desgostos resultava da constatação do declínio da espiritualidade e do papel cada vez mais crescente do dinheiro na vida das pessoas da sua época.
Referencia:
Excerto extraído do livro de Amadou Hampaté Ba : "Vie et enseignement de Tierno Bokar, le Sage de Bandiagara", Editions : Points (inedit sagesse).
Traduzido do francês por mim (Cherno Baldé), especialmente para o Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (Tabanca Grande) e peço desculpas ao autor e a todos por quaisquer erros ou insuficiências que resultarem dessa tradução.
Bissau, Dezembro de 2011.
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 25 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9266: O nosso sapatinho de Natal: Põe aqui o teu pezinho, devagar, devagarinho... (9): Votos de um novo ano, prenhe de esperanças renovadas, com duas sugestões de leitura (Cherno Baldé)
Vd. último poste da série de 26 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9270: Notas de leitura (316): Literaturas da Guiné-Bissau, Cantando escritos da história (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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2 comentários:
É tão bom ler-te hoje amigo. Tão bom.
Depois irei ler o que escreveste
Abraço fraterno do Torcato
Caro Cherno, fizeste bem em traduzir e enviar este texto.
Serve para ficarmos a conhecer as formas de abordar e entender essas questões, afinal tão importantes, por outros pontos de vista.
Gostei de tomar conhecimento dessa forma de explicar as "três luzes" e, por consequência, "os três degraus da fé".
Aliás, o número três, o mínimo indispensável para se ter a figura geométrica base, o triângulo, está patente em inúmeras abordagens do conhecimento humano, da filosofia, da religião, de qualquer prática que se considere: são os elementos da "Santíssima Trindade", são a "Fé, Esperança e Caridade", as 'luzes' maçónicas "o Livro Sagrado, o Esquadro e o Compasso", são a "Sabedoria, a Força e a Beleza", e por aí fora...
Muito interessante.
Abraço
Hélder S.
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