sexta-feira, 6 de abril de 2012

Guiné 63/74 - P9707: Notas de leitura (348): Les Batisseurs D'Histoire, de Gérard Chaliand (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 29 de Fevereiro de 2012:

Queridos amigos,
Graças à ajuda providencial do investigador António Duarte Silva, que tão generosamente me dá acesso aos tesouros da sua biblioteca, tive acesso a mais obras de Gérard Chaliand, um especialista de renome mundial que nunca escondeu a sua profunda admiração pelo pensamento e obra de Cabral.
Traça uma síntese admirável pelo trabalho de Cabral na luta anticolonialista, com destaque para a evolução da guerrilha e a luta diplomática. Põe o pensamento de Cabral ao mesmo nível de importância de Frantz Fanon, Kissinger, Clausewitz ou Thomas Lawrence.

Um abraço do
Mário


Amílcar Cabral, um construtor da História 

Beja Santos 

Gérard Chaliand dispensa apresentações, é reconhecido à escala mundial como um dos maiores peritos na teoria das insurreições armadas. Em 1995 publicou um conjunto de ensaios batizados com o título “Os construtores da História” (Les Batisseurs d’Histoire, Arléa, 1995). Na apresentação da obra, Chaliand apresenta o seu trabalho como o produto de três décadas de viagens e reflexão, e não esconde o móbil do seu interesse: tentar perceber figuras proeminentes de diferentes culturas que convocaram povos para se libertarem do jugo colonial, incluindo o recurso à violência armada, e comenta a seleção dos seus eleitos.

Começando por Frantz Fanon, ele é um teórico incontornável do antigo colonialismo ativo a partir da guerra da Argélia, os seus escritos tiveram uma audiência em vários continentes. Chaliand encontrava-se na Argélia em 1963 quando decidiu visitar o movimento de libertação liderado por Amílcar Cabral. E escreve que foi com Amílcar Cabral (que ele classifica como a mais bela figura revolucionária produzida por África, a par de Nelson Mandela) que ele fez conhecimento da guerrilha guineense. E explica igualmente porque se interessou por figuras como o secretário de Estado norte-americano Henry Kissinger, Von Clausewitz, Sun Zi, Lawrence da Arábia e o conquistador espanhol Pedro Pizarro. Procede-se seguidamente a uma súmula do que ele escreve sobre Amílcar Cabral.

Considera que a África contemporânea deu três imagens exemplares de dirigentes políticos revolucionários: o mártir, Patrice Lumunba; o visionário Kwane Nkrumah, e o revolucionário por excelência, Amílcar Cabral. Pelo seu pensamento como pela sua estatura, Cabral ultrapassa o quadro da luta contra o colonialismo português e deve ser considerado como uma das grandes figuras do Terceiro Mundo. Chaliand faz o seguinte balanço sobre a ação e o pensamento de Cabral: capacidade para situar o colonialismo português como demasiado atrasado para encarar um domínio neocolonial e demasiado agarrado a um passado glorioso para só se pensar como entidade metropolitana; conhecimento concreto das estruturas sociais das populações da Guiné graças a uma prática do terreno e a uma análise do tipo marxista; capacidade para construir pacientemente um partido e estabelecer uma estratégia e de a rever quando necessário; no plano da luta armada, saber o que quer sob a formação de quadros, o estabelecimento de uma infraestrutura clandestina e possuir uma visão do funcionamento das chamadas regiões libertadas; apurado o sentido diplomático, conseguindo estabelecer relações de vizinhança sem conflito, equilibrando o seu relacionamento com os não-alinhados, com os governos ocidentais e recebendo apoio em armamento dos países comunistas; e jogando na hora certa a cartada da independência unilateral que agudizou o isolamento das autoridades de Lisboa e preparou a prazo a queda do regime; e, talvez o mais importante, a elaboração teórica original sobretudo no que toca à importância e às particularidades da luta de classes no quadro das sociedades africanas, análise que encadeou com a do papel e a ambivalência da pequena burguesia à frente dos movimentos de libertação nacional.

Enumera os principais dados curriculares de Cabral, o leitor interessado encontra-os sobretudo no trabalho de Julião Soares Sousa hoje documento de leitura obrigatória ("Amílcar Cabral - Vida e Morte de um Revolucionário Africano", Veja, 2011), não vale a pena estar aqui a repeti-los. Explica o que distingue Cabo Verde da Guiné: a Guiné foi regida até 1961 pelo estatuto do indigenato, que estabelecia uma discriminação racial de facto, o indígena não tinha direitos políticos, as suas diferentes etnias podiam a qualquer momento sair da calma aparente e guerrearem-se entre si, as relações entre etnias islamizadas e o principal grupo animista eram claramente conflituais; Cabo Verde não tinha indígenas, só assimilados, era uma outra realidade, fora um entreposto de escravos, aqui se fixava um certo número de escravos de origem continental nos trabalhos da lavoura, a sociedade cabo-verdiana não era uma sociedade colonizada mas sim um sociedade de formação colonial, com 70 % de mestiços, uma população esmagadoramente cristã, com uma grande abertura cultural e dispondo de uma comunidade na diáspora na Europa, no Brasil e em diferentes localidades africanas – estas distinções irão pesar não na luta armada mas para a definição dos Estados independentes.

Seguidamente, o autor explana toda a estratégia montada para congregar na cena internacional os movimentos de libertação de língua portuguesa e como Cabral foi indiscutivelmente a figura de proa. Ao pô-lo em confronto com Fanon, Chaliand recorda que Cabral pensava que a organização revolucionária e a sua coerência ideológica eram fundamentais e que os camponeses não eram espontaneamente revolucionários, impunha-se implicar a pequena burguesia urbana na liderança desse processo revolucionário. A síntese que ele nos oferece da vida do líder e das atividades do PAIGC entre 1963 e 1973 é admirável, retém o essencial. Destaca a sobriedade verbal e a falta de narcisismo paranoide que carateriza tanto o líder africano, observando que o sonho de Cabral não era o de caricaturar o Ocidente, tinha amplamente discutido a constituição de uma economia orientada para satisfazer as necessidades elementares dos guineenses em bens de primeira necessidade, repudiara a constituição de uma elite política privilegiada e atreita à corrupção, também aqui se distinguiu o sonho de Cabral que não propôs uma política que acenasse com o conforto no curto prazo.

Na continuação deste ensaio, Chaliand, muitos anos depois da morte de Cabral, procedeu ao exame do seu pensamento e ação. Voltou a evidenciar, quanto ao escopo ideológico do líder, a advertência que repetidamente lançava sobre a pequena burguesia correr o risco de se suicidar como classe, exaltando a capacidade de Cabral para rever a sua estratégia a qualquer momento. Assim aconteceu em 1959, quando constatou que a ação do PAIGC requeria uma preparação criteriosa de quadros e uma luta de libertação no interior rural, nunca nos grandes núcleos populacionais. Daí a formação dos quadros, o trabalho clandestino de subversão, a permanente adaptação à guerrilha à crescente sofisticação do armamento. Chaliand recorda como Cabral discursava e escrevia sobre o papel da mulher, contrariando teses retrógradas que a posicionavam na inteira subalternidade. A condução da guerrilha na Guiné, escreve Chaliand, foi um sucesso total, basta pensar nos líderes militares que se foram sucedendo uns aos outros, sem apresentar resultados, o PAIGC só tremeu com a contraofensiva de Spínola. E aí Cabral teve o talento estratégico e a imaginação de deslocar a guerra para o plano diplomático. Referindo-se ao maior desastre desta estratégia, a unidade Guiné-Cabo Verde, Chaliand observa que foi uma ligação generosa editada pelas circunstâncias, terá havido um otimismo excessivo quanto à fusão eventual dos dois países, se bem que seja possível olhar para esta separação na base de problemas raciais e do nacionalismo estreito. Mas nada impede, a despeito desse insucesso, que se diga que Cabral pela exemplaridade da luta de libertação conduzida pelo PAIGC trouxe um contributo inestimável de África à história contemporânea.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 2 de Abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9691: Notas de leitura (347): Arte Nalú, por Artur Augusto da Siva (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Antº Rosinha disse...

Nunca mais vemos uma biografia de Amilcar feita por um Balanta, Pepel, ou Fula etc. e tantos que sabem escrever e bem.

Acontece que há uns anos para cá já há "benificiados" a reconhecer o esforço de Amílcar e os Guineenses.

O MPLA por exemplo, que está colaborando um pouco com a Guiné, e outros podiam fazer outro tanto.

Mas estas biografias internacionalmente e ingenuamente enviesadas tambem são interessantes.

Antº Rosinha disse...

"ambivalência da pequena burguesia à frente dos movimentos de libertação nacional", diz este Gérard, a tal que corria o risco de se suicidar.

Mais que ambivalência, era mais uma "polivalência", a posição desta tal pequena burguesia.

Peço desculpa de dar uma definição pessoal, só minha, dessa burguesia, sei que muitos "adivinham" muito mais que eu.

Eles eram portugueses como qualquer tuga, eles eram africanos como qualquer africano, eles eram comunistas quando convinha e eram salazaristas na hora própria e da Mocidade Portuguesa com aquela linda farda, que a maioria que embarcava em Alcântara nunca tinha usado.

Eles eram significativa percentagem de universitários portugueses, seriam 0% analfabetos, culturalmente eram africanos e europeus, mais conscientes que todos aqueles que embarcavamos em Alcântara para o Brasil Angola ou Bissau, desde o tempo de Bartolomeu Dias.

Essa pequena burguesia, que pode ser representada pelo Amílcar neste caso, quem eram eles?

Conheci mais de mil, só na tropa seriam mais de 100 entre cabos furrieis e alferes e aspirantes, isto em Angola, onde melhor conheci as coisas, e que não eram alheias a Amílcar.

Como se distinguiam os pequenos burgueses da maioria africana?

Era fácil, em geral era todo africano que não me chamava de "patrão", a mim e a eles os tais pequenos burgueses.

Vamos ver então quem se podia englobar nessa burguesia: Brancos nados ou criados (com ou sem coração preto), mestiços(com qualquer percentagem de sangue)nascidos cá ou lá, e assimilados, invariavelmente pretos.

Eles estavam no comércio, na indústria, nas fazendas agrícolas, e na administração pública e quantos seriam familiares de Governadores Gerais.

A esposa de Amílcar era irmã de um capitão Vilhena do meu Regimento de Infantaria, tais as proximidades.

Todos esses pequenos burgueses tinham um modo de vida e uma qualidade de vida (em Angola, onde a guerra começou) difícil de igualar por qualquer sociedade desde Cascais a Olivença, ou de Caminha ao Pico.

E eles que vinham com frequência ao "puto" e uns a estudar e outros a jogar à bola, sabiam isso muito bem.

Até sabiam da fome que cá graçava, coisa alheia em toda a áfrica subsariana antes das independências e respectivas tribalites.

E quem é que lhe proporcionou essa qualidade de vida "burguesa"? Com certeza em parte foi o colonialismo e o trabalho dos pais e avós deles.

E qual o motivo porque uns mais que outros, e alguns nem por isso, assumiram a responsabilidade de chefiar o "auto suicídio"?

Aqui queria deixar para outra altura a minha explicação deste "auto-suicídio", de gente que conheci e com quem convivi e que achavam que não havia necessidade de nenhum suicídio.

Porque no fim, ia sobrar para os "indígenas" de todos os países, não só subsarianos.

Escapou a África do Sul com Mandela que esperou até datas mais próprias.

Cumprimentos