quinta-feira, 5 de abril de 2012

Guiné 63/74 - P9705: Blogpoesia (185): Pelas estradas de Mampatá (José Santos)

1. Em mensagem de 28 de Fevereiro de 2012, o nosso camarada José Santos* (ex-1.º Cabo Aux. Enf.º da CCAÇ 3326, Mampatá e Quinhamel, 1971/73) enviou-nos este seu poema:


Guiné

Pelas estradas de Mampatá
Caminhando
Ao sol, à chuva, ao vento
Olhos esbugalhados
Respira-se
A essência das árvores
Procurando o inimigo
Sobressaltados
Corações a palpitarem
Olhando acolá
Pernas tremendo
É o sofrer descomunal
Das horas que não passam
Horas infinitas
Sem dormir
Com fome, com sede
O tempo não passa
Atravessa-se as bolanhas
Malditas bolanhas
Precauções ao vivo
Cabeças girando
Mosquitos depravados
Umas quantas ferroadas
Em corpos suados
Assim é longo o tempo
Este não passa
Do inimigo nada
Ansiedade,
Palpitações
O sangue quente
Corre nas veias escaldantes
Suor, lágrimas
Mas nada de prantos
O militar é
Valente, destemido, desconfiado
Sofre as agonias
Do combate
Sem pestanejar
Ouvidos atentos à muda 
Da progressão
E o tempo não passa
Escurece
A noite aproxima-se
É mais uma noitada
De pé debaixo das árvores
Umas vezes sentados
Outras deitadas
Cansados
E o tempo não passa
Chega a madrugada
Será mais um dia
Calmo, perturbado
Nunca se sabe
Ouve-se ao longe
Tiros de rajada
Granadas rebentando
Os hélios aproximam-se
O canhão dispara
Vive-se ansiedade
O inferno não acaba
Maldita a guerra
Guerra que aflige o
Mundo
Erros perfeitos da filosofia
Guerra que inflige morte
Provas que a guerra é falsa
Tudo é mexer, fazer coisas,
Deixando rastos
Guerra é lugar confuso de pensamento
A Humanidade revolta-se
É a destruição do povo
É orgulho e crueldade
É química da natureza
A guerra é um sem número de almas
Estas não têm calma
Não é a mesma gente
Nada é igual
Ser real é isto
Pouco me importa
Não importa o quê
Não sei
Mas nada me importa
Que dizer dos que não
Passaram por tudo isto
Sorte, azar
Nunca se sabe
Mas o militar de cabeça levantada
Procura escapar
Não procura sarilhos
Mas não chega o tempo
Sair dali para fora
Na imensidão do capim
Nunca mais acaba
Esta guerra sem fim 
Fazem-se patrulhas
Em botes de borracha
Vêem-se crocodilos
Mandíbulas enormes
É grande o susto
Mas o militar é
Destemido, valente, guerreiro
Audaz, persistente, bravo
E passa mais um dia
E a guerra não tem fim
É grande o sofrimento
O desgaste, a tensão
Nervos à flor da pele
Mas o tempo custa a passar
Os ponteiros do relógio
Não andam
E o tempo não passa
Nervos de aço
Tem um militar

José Santos
____________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 16 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9052: Tabanca Grande (306): José Santos, ex-1º Cabo Enf, CCAÇ 3326 (Mampatá e Quinhamel, Jan 71/Jan 73)

Vd. último poste da série de 21 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9632: Blogpoesia (184): O tuteio ou o tratamento por tu, entre os camaradas da Guiné... (No Dia Mundial da Poesia... e da Água) (Luís Graça)

2 comentários:

Manuel Joaquim disse...

Caro camarada José Sousa:

Gostei. Aqui temos um poema com garra, com balanço, com uma bela descrição do ambiente de combate onde ressalta a mensagem pacifista de um combatente determinado e destemido.

Gostei muito. Um abraço

Anónimo disse...

Parabens pelo poema -- bem escrito, com muito ritmo, boas imagens -- "o tempo não passa" (e era, o tempo tinha ficado imóvel), um bom testemunho da guerra que vivemos durante 24 meses.
Este poema merece ser conhecido.
Abraço do Rui Esteves, furriel enfermeiro da CCAC 3327.