1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 23 de Fevereiro de 2012:
Queridos amigos,
O pretexto foi uma brochura sobre a arte Nalú, a autoria é de Artur Augusto da Silva. A escultura dos Nalús e dos Bijagós é disputada pelos grande colecionadores de arte africana, consideram-na como uma das mais criativas e originais formulações da encarnação dos deuses nos homens, animais e coisas. É uma escultura que pode ombrear com o sonho dos artistas plásticos inspirados pelo cubismo e abstracionismo, a partir dos anos 10 do século XX, simultaneamente austera e rude, luxuriante e barroca, talhada para se ver a madeira sem enfeites ou fácil de policromar, ao gosto do artesão.
Falando por mim, tenho lá à entrada de casa um Ninte-camalchole, peço-lhe sempre que me afaste dos maus espíritos.
Um abraço do
Mário
Arte Nalú, uma lembrança de Artur Augusto da Silva
Beja Santos
Artur
Augusto da Silva dispensa apresentações, é um luso-guineense dos quatro costados e com uma larguíssima intervenção cultural. Aquando da 6.ª Conferência Internacional dos Africanistas Ocidentais, que se realizou em Bissau, o estudioso Artur Augusto da Silva apresentou um trabalho sobre a arte Nalú cujo preâmbulo é de irresistível transcrição:
“Costumam aqueles que se dedicam ao estudo e interpretação dos fenómenos artísticos e mais designadamente aqueles que estudam as chamadas artes plásticas prender-se unicamente ao aspeto estático da Arte, isto é: aos conteúdos estético e técnico das obras, negligenciando ou esquecendo totalmente que qualquer obra de arte é, sempre, fruto daquilo que preenche a vida espiritual do seu criador e que essa vida espiritual é condicionada, em primeiro lugar, pelas condições económicas do artista e da sua época.
Assim, à análise estática da Arte, preferimos sempre o estudo dinâmico dela, isto é: a apreciação do seu conteúdo ou, como modernamente se diz, da sua mensagem.
No estudo da arte Nalú procuramos surpreender as suas determinantes, as relações da sua arte com a necessidade de exprimir as preocupações dominantes do agregado social e ainda demonstrar que o meio ambiente condicionou o modo de vida, a sua organização económica e, como resultado desta organização, todas as superestruturas daí derivadas”.
Como é por todos sabido, a escultura é a manifestação artística em que se distinguem os Bijagós e os Nalús, são indiscutivelmente os artistas mais originais, pegam na figura humana ou animal ou em diferentes objetos e reproduzem-nos com uma criatividade sem rival. São igualmente dotados para o fabrico de instrumentos musicais e panos bordados, por exemplo, mas aqui já são domínios que encontram forte concorrência, pois os Mandingas e os Fulas intervêm com muito esmero no fabrico dos instrumentos musicais e a panaria Manjaca, na simplicidade geométrica do bordado, continua a fascinar pelo talento imaginativo.
Ao tempo desta comunicação, os Nalús mantinham-se praticamente insensíveis à catequese islâmica, viviam tranquilamente o animismo, eram as florestas do Sul que enquadravam a sua visão do mundo e o seu fascínio religioso, o seu panteão espelhava o que ele via na floresta, daí a imagem sagrada de certas árvores, o seu gosto apurado em reproduzi-las e o prazer estético que encontram no papel das máscaras e das aves, por exemplo.
Voltemos aos argumentos de Artur Augusto da Silva na referida comunicação. Apresenta os Nalús referindo que eram pouco mais de 3 mil de acordo com o senso populacional de 1950. São tipicamente continentais, terão sido empurrados para a orla conjuntamente com os Bagas, pelos Sossos vindos do Futa Djalon, sob a pressão dos Fulas. Habitam regiões da circunscrição de Catió, em Cacine, Bedanda e Cubisseco, na região de Fulacunda. Os Nalús não possuíam escrita mas dominavam a literatura oral (contos, poesias éticas, provérbios, canções que se transmitiam de geração em geração). O verosímil e o inverosímil andam de mãos dadas nessa literatura, que é também dado assente para a sua escultura, são prolongamentos da mesma realidade. Posicionados como um dos povos mais atrasados de África, dentro da sua conceção animista, é possível ver as suas esculturas com um significado misto de religioso e de entretenimento, o melhor exemplo poderá ser o da máscara que representa um chefe que será recordado e homenageado pelo artista, é a máscara que conserva essa energia, essas máscaras representam seres humanos que também podem ter sido mortos por cobras e é importante saber que a serpente é em toda a zoolatria Nalú o animal de maior prestígio, detém todos os poderes sobrenaturais.
A seguir Artur Augusto da Silva discreteia sobre a importância da figura totémica e o cruzamento que se pode encontrar com as diversas espécies zoológicas tão caras ao Nalú: o homem, a ave, a serpente, o crocodilo e o peixe. Estas são as máscaras que também servem para danças e folguedos.
Um elevado número de objetos da escultura Nalú aparece associado ao rito da circuncisão, caso dos tambores que podem ser tocados nas festas do fanado e nos choros, o Ninte-camalchole, um pássaro apaziguador e que afasta os nossos espíritos e que é também um protetor daqueles que foram circuncisados. Todas estas esculturas são moradas para as forças que animam o mundo sobrenatural do Nalú.
Artur Augusto Silva conclui dizendo que esta escultura nasceu da necessidade de representar as forças a que nós chamamos religiosas e que esta arte muito provavelmente entrará em extinção caso os Nalús entrem na órbita do islamismo.
Como é também sabido, os Nalús, mais de 50 anos depois da comunicação de Artur Augusto Silva, continuam a ter pouca expressão populacional mas mantêm um domínio artístico que merece a reprodução dos artesãos das outras etnias. É admirável como 50 anos depois estes artesãos, sem quaisquer complexos, mesmo aqueles que praticam convictamente o islamismo, reproduzem as esculturas funerárias, as máscaras polícromas, as deusas da fecundidade e o Ninte-camalchote continua a ser a figura escultórica mais procurada e mais disputada pelos colecionadores. Eu próprio não resisti, quando estive na Guiné em Novembro de 2010 a encomendar uma ave que pudesse ser transportada num saco de mão. Gostei tanto dela que a propus ao Círculo de Leitores como o elemento gráfico da capa do meu livro Mulher Grande, sugestão que foi aceite, para minha satisfação.
Este trabalho de Artur Augusto da Silva é acompanhado de ilustrações dentro as quais reproduzimos um espantoso Ninte-camalchote de que conheci uma réplica de grande beleza no então Museu da Guiné Portuguesa e que desapareceu nos saques do conflito político-militar 1998-1999.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 30 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9679: Notas de leitura (346): A CCAÇ 2317 na Guerra da Guiné, Gandembel/Ponte Balana, de Idálio Reis (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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2 comentários:
Olá Camaradas
Tenho diversos objectos desta arte.
Creio que se está a perder. Por isso, já propus que se fizesse a divulgação dos objectos de arte popular guineense que cada um de nós tiver.
À consideração superior...
Um Ab. do
António Costa
Obrigado, Mário, pela recensão deste livro esquecido, da autoria de um homem que amou de mais a sua terra (só por acaso nasceu em Cabo Verde, na Ilha da Brava, se não me engano, donde era originária a mãe)... Já aqui publicámos poemas e outros textos deste grande português que foi o dr. Artur Augusto Silva, pai do nosso Pepito e esposo da decana da nossa Tabanca Grande, a dra. Clara Schwarz, 97 aninhos feitos este ano...
Agora diz-me lá qual como é que a gente deve grafar o nome dessa figura totémica, "irã das aldeias nalu", protetor da floresta do Cantanhez... Eu escrevo como os guineenses de Imberém:
Nhinte Camatchol (*)...
Vou perguntar ao Cioberdúvidas da Língua Portugesa...
(*) vd.
http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2008/03/guin-6374-p2703-uma-semana-involvidvel.html
2. O Pepito e a sua ONG, a AD, estão a fazer belíssimo trabalho de recuperação da arte nalu, em risco de desaparacer com a islamização e o interdito da arte figuarativa... Em Iemberém ele reunium uma notação coleção de esculturas, que julgo terem vindo ainda do tempo do seu pai, que era um homem de grande sensibilidade sociocultural, além de talentoso escritor e, ao que parece, uma grande investigador na aérea da etnologia e do direito consuetudinário(Tens de fazer a recensão de 3 livros notáveis: os costumes jurídicos dos fulas, dos mandingas e dos felupes).
Boa(s) santa(s) páscoa(s). Luis
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