Quando regressei da Guiné, pensei que a maneira mais fácil de encerrar o capítulo de 25 meses de calor, sede, humidade, pó, abelhas, minas etc., seria rasgar todas as cartas, aerogramas, outros objectos e apontamentos que tinha trazido, ficando apenas com algumas fotos.
Foi o que fiz. A integração na vida civil tomou o seu rumo normal, sem qualquer mazela ou trauma de guerra.
O Luís que me perdoe, a ideia maravilhosa que teve, em criar e editar o Blogue, que comecei a acompanhar em 2009, mas que só em finais de 2011 passei a integrar, avivou-me memórias que estavam bem enterradas.
Deste modo, não resisto em partilhar com todos os ex combatentes da Guiné e em especial com os da CART 3521, a tão marcante “Operação Topázio Maior".
Como já disse, tudo o que me fazia lembrar a Guiné, foi destruído, assim peço a vossa melhor compreensão para alguma falha no meu testemunho.
Terminado o IAO tirado em Bolama, a CART 3521 chegou a Piche a 29/01/72, onde foi recebida de braços abertos pelo pessoal da CART 3332, Companhia que fomos substituir e do BCAV 2922.
Até 18/02/72 foi feita a sobreposição, sempre com o acompanhamento de grupos de combate da CART 3332, que se despediu de Piche a 19/02/72. Os primeiros vinte dias de acção foram tempo suficiente para percebermos que estávamos em zona de grande perigo, onde a qualquer passo o IN espreitava. Bastava recordar o malogrado dia 26/10/71, na estrada Piche-Nova Lamego a CART 3332 sofreu uma emboscada, onde morreram 4 dos seus homens e vários ficaram feridos.
Continuámos a nossa actividade, com grandes acções de patrulhamento, diurno e nocturno, bem como colunas a Buruntuma, Canquelifá, Nova Lamego, Bafatá etc.
“Zona de Guerra” (foi a mensagem deixada pelos companheiros da CART 3332, corroborada pelo pessoal do BCAV 2922: Buruntuma CCAV 2747, Canquelifá CCAV 2748 e Piche CCAV 2749).
Estávamos em finais de Março de 72, dois meses de acções continuadas, alguns quilómetros de patrulhamento e muitos mais de Unimog ou Berliet. Ainda hoje tenho consciência, que não seria ofensa para ninguém, se à data nos chamassem “periquitos”.
Com ou sem experiência, é sob ordem de alta patente, que muitas vezes era surda, cega e muda, que tínhamos que obedecer. Será que, com apenas dois meses de teatro operacional, seria razoável mandar tropas para a zona de Madina do Boé? Eles eram quem sabia… e sem escrúpulo, mandaram-nos para terras que ninguém gostou de pisar. Assim, com obediência, a CART 3521 teve o seu primeiro baptismo numa grande operação, de código “Topázio Maior” .
CRONOLOGIA “OPERAÇÃO TOPÁZIO MAIOR"
Dia 31/03/72 (Sexta-Feira Santa)
É sob as ordens do Comandante de Sector que toda a Companhia ainda “periquitos”, partiu de armas e bagagens, para Nova Lamego, com o objectivo de participar na "Operação Topázio Maior", que se desenrolou nos chãos de Madina do Boé e tendo como missão o patrulhamento de Canjadude até Bilonco, eixo Ché Ché-Madina do Boé. Não sei se esta zona, depois do fatídico acidente de 06/02/69, que envolveu as CCAÇ 1970 e 2405 (Desastre de Ché Ché/Retirada de Madina do Boé), mais alguma vez tinha sido patrulhada pelas NT.
À data a (tragédia de Ché Ché) estava bem presente na memória de todos os combatentes CTIG. O pessoal da CART 3521 não foi excepção. Retomando o dia 31/03/72, nesse mesmo dia, o 4.º Grupo de Combate, escoltando o 28.º Pelotão de Artilharia, que nos foi apoiar, deslocou-se para Canjadude e restante pessoal pernoitou em Nova Lamego.
Dia 01/04/72 (Sábado de Aleluia)
O 1.º, 2.º e 3.º Grupos de Combate juntaram-se ao 4.º. Foi em Canjadude, terras da CCAÇ 5 e base de apoio para esta Operação, que os comandos da CART 3521 detalharam ao pormenor o que foram os dias seguintes.
Estávamos em plena época seca, o sol tórrido que fazia subir os termómetros até aos 35º, a zona despovoada para onde íamos seguir, obriga-nos a redobradas atenções, com explicação detalhada a todos os intervenientes, como com coragem e determinação devíamos enfrentar os piores cenários que nos pudessem aparecer.
Dia 02/04/72 (Domingo de Páscoa)
Pelas 7h30, com o apoio de um pelotão da CCAC 5, que foi incumbido de fazer a picagem, a CART 3521, deixou Canjadude e deslocou-se pela estrada de Ché Ché, em direcção à margem direita do rio Corubal. No percurso foram detectadas pelos homens da CCAÇ 5, várias minas anti-pessoais PMD6, no total de 16, sendo o pessoal especializado da nossa Companhia, que com grande sucesso, as desarmou e levantou. Cerca das 11H30, debaixo de um calor escaldante, chegámos ao rio Corubal. Tanto calor e um rio onde a água corria com abundância, convidavam a um banho, alguns soldados ainda o sugeriram, mas não, os perigos eram enormes e foi muito fácil controlar toda a gente.
É com o cenário das águas do rio, deslizando suavemente, que a Companhia se instalou no seu esquema de segurança, garantindo toda a tranquilidade aos homens, que iniciaram a montagem dos barcos, que minutos depois nos transportaram para a margem esquerda (Sul).
Sabíamos que estávamos em zona de domínio total do IN, o pessoal estava apreensivo, à memória de todos, veio o desastre de Ché Ché, pois estávamos no mesmo local e tínhamos que cambar as mesmas águas do Corubal, onde no dia 06/02/69 tinham perdido a vida 47 camaradas.
O ambiente estava pesado, diria mesmo fúnebre e tudo começava a ficar pronto, para que se desse início aos trabalhos, com passagem de toda a Companhia para a outra margem.
Inesperadamente, vindos do céu, ouvem-se ruídos estranhos. Para a maioria do pessoal, o roncar do motor dos T-6, era mesmo uma novidade. Para nossa segurança estes pássaros roncantes patrulharam na zona, toda a margem esquerda (sul) do Corubal, local para onde nos iríamos deslocar. Um T-6 fez mesmo um ou dois voos rasantes ao leito do rio.
Do mesmo modo que os T-6 apareceram, desapareceram! Silêncio absoluto. No rosto dos camaradas foram visíveis sinais de segurança e confiança. Foi dada ordem para avançar, não me lembro qual o primeiro Grupo de Combate que se fez aos barcos, mas foram estes homens na margem oposta e em terras de Ché, Ché que emboscados fizeram segurança, permitindo a continuidade da travessia. Pelas 13h30 foi concluído e ultrapassado este obstáculo. A CCAÇ 5, que fazia segurança aos últimos homens da Companhia que navegavam as águas do Rio, regressou a Canjadude, a CART 3521, já em chão de Ché Ché, seguiu a missão.
Em formação bem ordenada, cumprindo meticulosamente os ensinamentos transmitidos, progredimos em direcção a sul, até à margem direita do Rio Cauchã. Aqui, ainda com sol, sem qualquer incidente, nem sinais do IN, montou-se, conforme mandavam as normas a emboscada nocturna.
Dia 03/04/72 (Segunda-Feira de Páscoa e dia de Páscoa nas terras de muitos dos que compunham a CART 3521).
Com o despontar do sol, deu-se início ao levantamento da emboscada. Um sol escaldante, água a conta gotas, zona totalmente deserta, inimigo que era dono e senhor daquelas terras, era o que constava no detalhe da Operação. Com este puzzle bem definido, iniciámos o patrulhamento em direcção ainda mais a sul, rumo ao monte de Bugafal. Aqui, quando contornávamos em fila de pirilau, o monte pelo lado esquerdo e utilizado o velho meio de comunicação, “palavra passa palavra” foi dada uma ordem de paragem, com indicação que seria necessário informar o Comando Superior, da nossa posição no terreno. A Companhia ficou parada conforme seguia, se não me falha a memória, a posição no terreno dos Grupos de Combate foi a seguinte: à cabeça o 3.º do qual eu fazia parte, seguido do 1.º, 2.º e 4.º.
Expectantes aguardávamos a ordem para avançar, mas esta tardava a chegar. Ouviram-se dois rebentamentos seguidos de dois tiros, logo verificámos que era fogo de armas da nossa tropa. Exactamente. Os tiros foram de G3, os rebentamentos de granadas defensivas. Não tivemos qualquer dúvida, algo de anormal se estava a passar. Segundos depois chegou a informação; situação gravíssima! Estávamos a ser flagelados por um violento ataque de abelhas que atingiu fortemente metade da Companhia, 1.º e 2.º Pelotões, com especial incidência, no nosso querido Agostinho Mendes, homem das transmissões que com a antena do Rádio deve ter tocado nos bichinhos, estes sem hesitar abateram-se sobre ele e não mais o deixaram fugir. Viu-se desesperado e terá pensado que com o rebentamento das granadas resolvia o problema, sem êxito, sem forças e carregado de dores, terá posto a G3 em posição automática e disparou dois tiros no peito, ao nível do coração.
Com o ataque deste exército natural, que eram aos milhões, metade da Companhia fugindo dos insectos, abandonou completamente a zona. Afastaram-se tanto, que cerca de 20 homens perderam totalmente o contacto com o restante pessoal. Com esta flagelação, executada pelos principais aliados do IN, a Companhia ficou operacionalmente reduzida a dois grupos, um à frente e outro atrás do foco do ataque. Tínhamos muita gente dispersa na mata e completamente perdidos. Havia necessidade de os encontrar para que fossem reagrupados. Em poucos minutos formou-se um grupo de homens e iniciou-se uma batida de zona num raio de 2 quilómetros.
As horas passavam, estávamos no pico mais alto do sol que em brasa se abatia sobre nós. Cansados, extenuados, sem água e forças, lá se conseguiu reagrupar quase todo o pessoal, sim quase todo, faltava-nos ainda o Comandante do primeiro Grupo de Combate que continuava a monte. Este companheiro, já antes do ataque, manifestava sinais de grande fragilidade física, arrastando-se com dificuldade. Por esta razão, aquando da paragem, foi logo pedida a sua evacuação.
Com a chegada dos meios aéreos, foi-lhes solicitado que nos dessem apoio, para a localização do oficial que continuava fora do nosso alcance. Foi o piloto do bombardeiro T-6 que fazia protecção ao helicóptero que vinha fazer a evacuação quem detectou, a cerca de 2 quilómetros do local onde nos encontrávamos, o nosso camarada Alferes Jorge O. Martins. Seguindo as orientações dadas pelos pilotos do T-6 e helicóptero e graças à força, coragem e determinação do Alferes José António Novais, conseguimos recolher o camarada completamente desfalecido e brutalmente picado.
Informado do que se passou, o General António de Spínola, deslocou-se ao local, inteirou-se da ocorrência e autorizou a evacuação da vítima mortal, bem como dos feridos.
O cenário foi dramático, muitos companheiros; soldados, cabos, furriéis e alferes, estavam exaustos, sem forças e sem água para molhar os lábios, que de secos teimavam em se colar. Mas era preciso tratar dos feridos e dar início às evacuações por ordem de urgência, pois tínhamos combatentes, que com tantas mordeduras, estavam completamente irreconhecíveis, correndo risco de vida. Depois de prestada toda a assistência, chega finalmente a água que vinha em bidões, talvez por lavar, pois foram visíveis sinais de muita gordura. Mais limpa ou menos limpa, não era importante, precisávamos era do tão precioso líquido e esse brilhou aos nossos olhos.
Controlar tanta gente que quase morria de sede e manter toda a segurança, não foi tarefa fácil, valeu a ordem de comando dos que por força das circunstâncias, tinham sido mais poupados e ainda conseguiam manter a cabeça fria, para ir transmitindo a todo aquele pessoal, que estávamos à beira do abismo, logo a ordem foi; “manter rigor e segurança, cuidar de nós seria o mais importante”. Com muita ordem e moderação, o pessoal bebeu e encheu os cantis do tão desejado líquido.
Admitíamos que o número de evacuados fosse grande, mas só no fim das evacuações, pudemos apurar com rigor o seu total (25): Feridos graves (picadas de abelha) 4, insolação 15, astenia 2, paludismo 1, ataque cardíaco 1, epilepsia 1, mortos 1.
Os grandes aliados do IN, sem utilizarem armas de fogo provocaram uma tragédia. No momento contabilizávamos um morto, mas dado o estado crítico em que alguns companheiros foram evacuados, temíamos que mais pudessem vir a falecer. Felizmente que não e todos recuperaram. Com a Companhia reduzida a 2/3 do seu pessoal e o moral da tropa muito em baixo, o Comando-Chefe depois de informado de toda a situação, deu instruções para que a missão fosse alterada.
Por toda a movimentação dos T-6, bem como do vai e vem dos helicópteros, sabíamos que o IN nos teria bem identificados, tínhamos que sair dali rapidamente. Recebidas todas as instruções, o pessoal abandonou a zona, com uma alteração radical, do que anteriormente estava definido para a missão.
De novo em progressão, a Companhia com menos 25 homens, seguiu em direcção ao Rio Cauchã, palmilhou toda a sua margem direita, até à confluência com o Rio Corubal. Neste percurso avistámos pessoas na margem esquerda, supostamente seriam elementos afectos ao PAIGC, não deram pela nossa presença e nós evitamos o contacto. Continuámos o patrulhamento até ao ponto de altitude 72, aqui, já sem sol, montámos nova emboscada e passámos a noite.
Penso que ninguém passou pelas brasas, primeiro porque sabíamos que o IN andava por perto, segundo porque as duas bocas de fogo do 28.º Pelotão de Artilharia, que nos dava apoio na missão, toda a noite fez fogo com o objectivo de dissuadir o IN.
Dia 04/04/72 - Com o romper do sol e aproveitando o fresco da manhã, dirigimo-nos para o Ché Ché e dali para a margem esquerda do Corubal. De novo tivemos que repetir o que dias antes tínhamos feito. Na margem direita, aguardava por nós um grupo de combate da CCAÇ 5, que nos escoltou até Canjadude e daí até Nova Lamego. Aqui, aparentemente em segurança, pernoitámos em casa emprestada, de 4 para 5/4/72.
Dia 05/04/72 - Em coluna militar, regressámos ao Quartel General (Piche), sem qualquer incidente.
FIM DA OPERAÇÃO
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Nota de CV:
(*) Vd. poste de 30 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9290: Efemérides (62): A CART 3521 chegou à Guiné no dia 29 de Dezembro de 1971 (Adriano Neto)
2 comentários:
Caro Adriano Neto,
Também palmilhei na intervenção o território de Piche, uma fortaleza que, parecia, estava destinada a acolher comandos meio-ché-chés. No meu tempo reinava o Drácula. Antes tinha lá estado um major que armadilhou dentro do arame e, claro, deu mau resultado. Concluíram, depois, que já não "batia" bem. Talvez para encher relatórios, inventavam-se inimigos a qualquer hora, lançava-se o pessoal em perseguição de sombras e correlativos. A sede era frequente, e cheguei a cavar na bolanha ressequida, para encher o cantil da lama funda, e chupar a água por um lenço filtrante.
Esta operação que relatas sem enunciares objectivos, suspeito, que comprova a incompetência do ComChefe, exactamente por aquela razão, de enviar uma companhia com três meses para aquele lugar, sem meios de apoio suficientes, sem conhecimento do terreno, numa nomadização que nem poderia garantir-vos segurança para regressar à margem direita do rio.
O resto, claro, já se sabe: perante o fracasso, a morte, as evacuações, deve ter-se feito um relatório sobre as condições adversas do terreno, e que ao passeio foram garantidas todas as condições para prevenir do IN e abastecer a´gua e alimentos.
Foi azar! O nosso azar, muitas vezes, era a incompetência de quem ficava no bem-bom.
Um abraço
JD
Não me custa nada compartilhar a opinião, acima, do JD. Quero dizer mais o seguinte:
Neste "post" do Adriano Neto,e em muitos outros aqui publicados, para além da tragédia e do drama vividos, ressalta a espantosa resiliência dos nossos soldados no teatro de guerra, isto é, a sua capacidade para resistir à adversidade ao recobrarem "facilmente" ou ao se adaptarem à má sorte ou às mudanças, por vezes insólitas, da sua vida de combatentes.
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