Queridos amigos,
Mário Vitorino Gaspar cinge-se a vários blocos que são momentos-chave da sua existência: Alhandra, que descreve primorosamente, e de onde parte para se juntar à CART 1659, vão para Gadamael-Porto e arredores; é furriel de minas e armadilhas, patrulha e embosca mas acima de tudo monta e desmonta os engenhos da morte, é um profissional cheio de sangue frio a desativar minas antipessoal e bailarinas; a operação ao coração onde constrói um impressionante sonho (ou delírio, seja o que for) entre a luminosidade e um turbilhão de recordações; e depois a militância de um stressado que se pôs ao serviço e muito ofereceu à APOIAR – Associação de Apoio aos Ex-Combatentes Vítimas do Stresse de Guerra.
Vale a pena meditar no que ele tem para nos comunicar.
Um abraço do
Mário
Andanças pelo corredor da morte e outras militâncias e errâncias
Beja Santos
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“Vejo algo como o paraíso encerrado em vidro. Entrei. Os soldados carecas de cabeça cúbica. Era tropa de elite e conheciam-me.
Ao fundo da sala uma porta estranha. Pequena. Quando chega a minha vez, e depois de uns me analisarem, eu, que era dos primeiros, entro naquela porta carregada de uma luz bonita que não encadeava nem feria a vista. Uma luz mais pura e forte bate-me na vista. Atravessei um túnel, antes um corredor. Não estava a sonhar e vi um cenário que nunca imaginara existir: uma floresta multicolor; arco-íris; jardins que percorriam todo o espaço; plantas exóticas; relva e musgo; florestas; flores de uma beleza nunca vista; um rio de água límpida; cascatas; mares calmos bem azuis; um mar de areia cor de ouro”.
E depois a infância, tudo começou na região de Sintra, havia férias na Covilhã; em gaiato vai viver para Alhandra, lembra a fábrica de cimento, o mouchão, as bateiras no Rio Tejo e também as fragatas, os avieiros, o Alhandra Sporting Clube, a terra de Baptista Pereira, a pequenada com quem brincou. São páginas enternecedoras, muito próximas de “Esteiros”, de Soeiro Pereira Gomes. Segue-se, em termos telegramáticos, a recruta e a especialidade. E depois a despedida para a Guiné, comoções controladas e descontroladas, uma longa viagem solitária para olhar todas aquelas referências de lugares e pessoas. Parte para Oeiras e daqui para o Uíge, estamos em janeiro de 1967. Mal chegados a Bissau foram prontamente colocados em Gadamael-Porto, nem deu tempo para pôr os pés em Bissau, o batelão desceu imediatamente para a zona de alto risco. A sede do batalhão está em Buba. Ali à volta, nomes sonantes da guerra: depois do cruzamento de Ganturé, encontrava-se Sangonhá, Cacoca e Cameconde, seguindo Cacine; no chamado cruzamento de Guileje havia uma bifurcação para Mejo e Guileje.
Havia 400 pessoas da população em Gadamael e cerca de 200 Beafadas em Ganturé, sede de regulado. É especialista de minas e armadilhas, começa a rebentar com petardos de trotil os morros de bagabaga, havia que fazer clareiras e não dar ensejo a que os guerrilheiros tivessem pontos de apoio. De Ganturé saíam patrulhas de apoio às companhias de Mejo, Guileje e Sangonhá. Começaram a construir o cais de Gadamael e a armadilhar itinerários por onde os guerrilheiros iam tomar posição para as flagelações. Recorda a primeira emboscada no corredor de Guileje, um sucesso. Num batuque, em 4 de julho de 1967, rebenta uma granada e morrem vários civis, nunca se apurou se se tratou de imprevidência, vingança ou terror deliberado. Sucedem-se operações, patrulhamentos, colunas de reabastecimento. Aqui e acolá, Mário Vitorino Gaspar vai poetando. Vem de licença e nesse ínterim morrem dois camaradas, o furriel Pestana e o soldado Costa, pisaram minas, a narrativa é despretensiosa, autêntica, reproduz o jargão do tempo, sente-se mesmo a atmosfera dos destacamentos, a vivência da messe, os comentários quando se vai e vem das operações. Observa como a guerrilha se fortalece, com armamento bem equipado.
Deixamos algumas páginas de sufoco, a montar e a desmontar, a pôr arames de tropeçar, com uma “bailarina” que esteve pacientemente a remover de uma picada. Chega Spínola e toma medidas de retirada de quartéis em posições insustentáveis, é o caso de Sangonhá. Não deixa de comentar a monotonia da comida, adora petiscos e sempre que chega exige seis ou sete cervejolas frescas. Conta as atividades da CART 1659. Chegou a hora do regresso a Portugal. Descobre na caderneta militar que fora dado como morto. É admitido como lapidador de diamantes na DIALAP. Tem manifestações de stresse, passa a ter acompanhamento psiquiátrico. A sua narrativa faz um hiato, já está a trabalhar em prol da APOIAR com a ajuda do Dr. Afonso Albuquerque. É uma descrição sugestiva da vida de uma organização aonde acorre gente em grande sofrimento. Ele escreve no jornal acerca destes stressados:
“Ele teve que matar para sobreviver (…) O assistir mortes e ter que matar para sobreviver; estar presente em ações de violência; passar fome e sede; assistir e/ou participar na morte de crianças e mulheres; estar presente em ações de bombardeamentos, tiroteios intensivos; rebentamentos de minas, armadilhas, fornilhos; as dificuldades de ambientação ao clima e o estar longe da família – transformaram aqueles jovens sorridentes, ávidos de vida, em homens precocemente envelhecidos. O regresso. Farrapos humanos, remendados. Uns já haviam constituído família, outros fizeram-no logo de imediato, os restantes ficaram solteiros. Marcham para vidas diferentes. As mulheres e os filhos paridos muitas vezes de atos sexuais de violência, mulheres violadas pelo guerreiro e não pelo amor do marido.
De imediato, ou posteriormente, o ex-combatente, isola-se como se a aldeia, a vila ou a cidade fossem um aquartelamento. Não fala da guerra nem aos pais, à mulher, aos filhos, a familiares e a amigos, como não o fizeram quando combatia. Ao fazê-lo com alguém só narrava as bebedeiras e sorria.
Na generalidade, e num período curto ou mais lasso, volta a vestir a farda, embora civil, agride, esbofeteando a mulher, os filhos, ou ambos. Não tem paciência para o diálogo e, por vezes, a família embrião é destruída como por ação de um rebentamento. Os filhos ficam a cargo da mãe violada pela guerra colonial. Ele teve que matar para sobreviver na guerra. É o funeral da família. Foi uma mina, uma armadilha ou um fornilho”.
O leitor vai encontrar aqui páginas de uma renhida militância, Mário Vitorino Gaspar é um dos cometas da APOIAR até 2005, altura em que se mudou para a ACSSL – Associação Cultural e Social de Seniores em Lisboa – Academia de Seniores de Lisboa.
Muito penou e muito militou. E percebe-se bem quando cita num artigo um poema de Fernando Pessoa:
Começo a conhecer-me. Não existo.
Sou o intervalo entre o que desejo ser
e os outros me fizeram,
Ou metade desse intervalo,
por que também há vida…
Sou isso, enfim…
Apague a luz, feche a porta
e deixe de ter barulho de
chinelos no corredor
Para adquirir o livro, contactar por email: mariovitorinogaspar@gmail.com
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Nota do editor
Último poste da série de 26 DE MAIO DE 2014 > Guiné 63/74 - P13196: Notas de leitura (594): "Planta da Praça de Bissau e suas Adjacentes", por Bernardino António Álvares de Andrade (Mário Beja Santos)
2 comentários:
1. Obrigado ao Mário (Beja Santos) pela rápida e oportuna recensão do livro do outro Mário (Vitorino Gaspar).
2. Parabéns ao novel autor, pela coragem de ter publicado, a expensas suas, o seu libro de memórias, a que pôs o título "Corredor da Morte!"... No seu caso particular, até pode ser o "Triplo corredor da morte"...
3. Mário (Gaspar):
Nos nossos encontros, os autores novos costumam levar o seu livro para promover e vender...
Em Monte Real, arranjamos-te uma banca.. Traz uns tantos livros para vender... Arranja um preço jeitoso, que a crise bateu forte também para o lado dos veteranos... Eu sei que fizeste uam edição de autor e tens que recuperar a massa...
Mais uma vez, parabéns pelo teu livro. Podias, entretanto, mandar-me um excerto (duas ou três páginas, um texto pequeno, um episódio de Gadamael...) para se publicar por estes dias no blogue e fazer um pouco mais de promoção e publicidade...
Por outro lado, não temos uma notícia, uma foto sequer, da tua sessão de lançamento, no passado dia 22, no Forte do Bom Sucesso... Infelizmente eu não pude ir, e o Zé Martins, nosso colaborador permanente, também não pôde comparecer...
Manda uma notinha e um ou duas fotos, eu faço-te uma notícia...
Um grande abraço. Luis
Ao ler esta recensão, soltou-se uma lágrima, fez-se silêncio dentro de mim. E não tenho mais palavras.
Um forte e solidário abraço para o camarada Mário Vitorino Gaspar.
JLFernandes
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