sexta-feira, 30 de maio de 2014

Guiné 63/74 - P13214: Notas de leitura (595): "O Corredor da Morte", pelo nosso camarada e tertuliano Mário Vitorino Gaspar, ex-Fur Mil Art MA da CART 1659 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Maio de 2014:

Queridos amigos,
Mário Vitorino Gaspar cinge-se a vários blocos que são momentos-chave da sua existência: Alhandra, que descreve primorosamente, e de onde parte para se juntar à CART 1659, vão para Gadamael-Porto e arredores; é furriel de minas e armadilhas, patrulha e embosca mas acima de tudo monta e desmonta os engenhos da morte, é um profissional cheio de sangue frio a desativar minas antipessoal e bailarinas; a operação ao coração onde constrói um impressionante sonho (ou delírio, seja o que for) entre a luminosidade e um turbilhão de recordações; e depois a militância de um stressado que se pôs ao serviço e muito ofereceu à APOIAR – Associação de Apoio aos Ex-Combatentes Vítimas do Stresse de Guerra.
Vale a pena meditar no que ele tem para nos comunicar.

Um abraço do
Mário


Andanças pelo corredor da morte e outras militâncias e errâncias

Beja Santos

Mário Vitorino Gaspar fez uma comissão entre 1967 e 1968 na região de Gadamael, era furriel de minas e armadilhas e pertenceu a uma companhia independente, a CART 1659. Destas e outras memórias plasmou em livro intitulado “O Corredor da Morte”, edição de autor, 2014, lembranças de infância, da mobilização, das suas deambulações por Ganturé, Guileje, Gadamael-Porto, Sangonhá e arredores, de uma operação ao coração em que chegou a vislumbrar a senhora morte e da sua participação na APOIAR – Associação de Apoio aos Ex-Combatentes Vítimas de Stress de Guerra. Arrecadou recordações poderosas, oferece-nos páginas tocantes, tem orgulho nas suas origens, enfim, com surpresa ou sem ela visitou os corredores da morte, não o das penitenciárias que encaminham para execuções mas aqueles corredores onde em tempos de guerra e paz temos a vida em processo de licitação. Começa com todo o processo que leva à sua hospitalização e à operação ao coração, em março de 2002. Temos aqui uma estrondosa viagem pelo sonho, aquele vácuo de onde vamos buscar farrapos de reminiscências pelas errâncias da vida, há para ali descrições que nos lembram outras de pessoas que estiveram à beira de passar para a outra margem, luminosidade e turbilhão:
“Vejo algo como o paraíso encerrado em vidro. Entrei. Os soldados carecas de cabeça cúbica. Era tropa de elite e conheciam-me.
Ao fundo da sala uma porta estranha. Pequena. Quando chega a minha vez, e depois de uns me analisarem, eu, que era dos primeiros, entro naquela porta carregada de uma luz bonita que não encadeava nem feria a vista. Uma luz mais pura e forte bate-me na vista. Atravessei um túnel, antes um corredor. Não estava a sonhar e vi um cenário que nunca imaginara existir: uma floresta multicolor; arco-íris; jardins que percorriam todo o espaço; plantas exóticas; relva e musgo; florestas; flores de uma beleza nunca vista; um rio de água límpida; cascatas; mares calmos bem azuis; um mar de areia cor de ouro”.

E depois a infância, tudo começou na região de Sintra, havia férias na Covilhã; em gaiato vai viver para Alhandra, lembra a fábrica de cimento, o mouchão, as bateiras no Rio Tejo e também as fragatas, os avieiros, o Alhandra Sporting Clube, a terra de Baptista Pereira, a pequenada com quem brincou. São páginas enternecedoras, muito próximas de “Esteiros”, de Soeiro Pereira Gomes. Segue-se, em termos telegramáticos, a recruta e a especialidade. E depois a despedida para a Guiné, comoções controladas e descontroladas, uma longa viagem solitária para olhar todas aquelas referências de lugares e pessoas. Parte para Oeiras e daqui para o Uíge, estamos em janeiro de 1967. Mal chegados a Bissau foram prontamente colocados em Gadamael-Porto, nem deu tempo para pôr os pés em Bissau, o batelão desceu imediatamente para a zona de alto risco. A sede do batalhão está em Buba. Ali à volta, nomes sonantes da guerra: depois do cruzamento de Ganturé, encontrava-se Sangonhá, Cacoca e Cameconde, seguindo Cacine; no chamado cruzamento de Guileje havia uma bifurcação para Mejo e Guileje.

Havia 400 pessoas da população em Gadamael e cerca de 200 Beafadas em Ganturé, sede de regulado. É especialista de minas e armadilhas, começa a rebentar com petardos de trotil os morros de bagabaga, havia que fazer clareiras e não dar ensejo a que os guerrilheiros tivessem pontos de apoio. De Ganturé saíam patrulhas de apoio às companhias de Mejo, Guileje e Sangonhá. Começaram a construir o cais de Gadamael e a armadilhar itinerários por onde os guerrilheiros iam tomar posição para as flagelações. Recorda a primeira emboscada no corredor de Guileje, um sucesso. Num batuque, em 4 de julho de 1967, rebenta uma granada e morrem vários civis, nunca se apurou se se tratou de imprevidência, vingança ou terror deliberado. Sucedem-se operações, patrulhamentos, colunas de reabastecimento. Aqui e acolá, Mário Vitorino Gaspar vai poetando. Vem de licença e nesse ínterim morrem dois camaradas, o furriel Pestana e o soldado Costa, pisaram minas, a narrativa é despretensiosa, autêntica, reproduz o jargão do tempo, sente-se mesmo a atmosfera dos destacamentos, a vivência da messe, os comentários quando se vai e vem das operações. Observa como a guerrilha se fortalece, com armamento bem equipado.

Deixamos algumas páginas de sufoco, a montar e a desmontar, a pôr arames de tropeçar, com uma “bailarina” que esteve pacientemente a remover de uma picada. Chega Spínola e toma medidas de retirada de quartéis em posições insustentáveis, é o caso de Sangonhá. Não deixa de comentar a monotonia da comida, adora petiscos e sempre que chega exige seis ou sete cervejolas frescas. Conta as atividades da CART 1659. Chegou a hora do regresso a Portugal. Descobre na caderneta militar que fora dado como morto. É admitido como lapidador de diamantes na DIALAP. Tem manifestações de stresse, passa a ter acompanhamento psiquiátrico. A sua narrativa faz um hiato, já está a trabalhar em prol da APOIAR com a ajuda do Dr. Afonso Albuquerque. É uma descrição sugestiva da vida de uma organização aonde acorre gente em grande sofrimento. Ele escreve no jornal acerca destes stressados:
“Ele teve que matar para sobreviver (…) O assistir mortes e ter que matar para sobreviver; estar presente em ações de violência; passar fome e sede; assistir e/ou participar na morte de crianças e mulheres; estar presente em ações de bombardeamentos, tiroteios intensivos; rebentamentos de minas, armadilhas, fornilhos; as dificuldades de ambientação ao clima e o estar longe da família – transformaram aqueles jovens sorridentes, ávidos de vida, em homens precocemente envelhecidos. O regresso. Farrapos humanos, remendados. Uns já haviam constituído família, outros fizeram-no logo de imediato, os restantes ficaram solteiros. Marcham para vidas diferentes. As mulheres e os filhos paridos muitas vezes de atos sexuais de violência, mulheres violadas pelo guerreiro e não pelo amor do marido.
De imediato, ou posteriormente, o ex-combatente, isola-se como se a aldeia, a vila ou a cidade fossem um aquartelamento. Não fala da guerra nem aos pais, à mulher, aos filhos, a familiares e a amigos, como não o fizeram quando combatia. Ao fazê-lo com alguém só narrava as bebedeiras e sorria.
Na generalidade, e num período curto ou mais lasso, volta a vestir a farda, embora civil, agride, esbofeteando a mulher, os filhos, ou ambos. Não tem paciência para o diálogo e, por vezes, a família embrião é destruída como por ação de um rebentamento. Os filhos ficam a cargo da mãe violada pela guerra colonial. Ele teve que matar para sobreviver na guerra. É o funeral da família. Foi uma mina, uma armadilha ou um fornilho”.

O leitor vai encontrar aqui páginas de uma renhida militância, Mário Vitorino Gaspar é um dos cometas da APOIAR até 2005, altura em que se mudou para a ACSSL – Associação Cultural e Social de Seniores em Lisboa – Academia de Seniores de Lisboa.

Muito penou e muito militou. E percebe-se bem quando cita num artigo um poema de Fernando Pessoa:

Começo a conhecer-me. Não existo.
Sou o intervalo entre o que desejo ser
e os outros me fizeram,
Ou metade desse intervalo,
por que também há vida…
Sou isso, enfim…
Apague a luz, feche a porta
e deixe de ter barulho de
chinelos no corredor

Para adquirir o livro, contactar por email: mariovitorinogaspar@gmail.com
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Nota do editor

Último poste da série de 26 DE MAIO DE 2014 > Guiné 63/74 - P13196: Notas de leitura (594): "Planta da Praça de Bissau e suas Adjacentes", por Bernardino António Álvares de Andrade (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Luís Graça disse...

1. Obrigado ao Mário (Beja Santos) pela rápida e oportuna recensão do livro do outro Mário (Vitorino Gaspar).

2. Parabéns ao novel autor, pela coragem de ter publicado, a expensas suas, o seu libro de memórias, a que pôs o título "Corredor da Morte!"... No seu caso particular, até pode ser o "Triplo corredor da morte"...

3. Mário (Gaspar):

Nos nossos encontros, os autores novos costumam levar o seu livro para promover e vender...

Em Monte Real, arranjamos-te uma banca.. Traz uns tantos livros para vender... Arranja um preço jeitoso, que a crise bateu forte também para o lado dos veteranos... Eu sei que fizeste uam edição de autor e tens que recuperar a massa...

Mais uma vez, parabéns pelo teu livro. Podias, entretanto, mandar-me um excerto (duas ou três páginas, um texto pequeno, um episódio de Gadamael...) para se publicar por estes dias no blogue e fazer um pouco mais de promoção e publicidade...

Por outro lado, não temos uma notícia, uma foto sequer, da tua sessão de lançamento, no passado dia 22, no Forte do Bom Sucesso... Infelizmente eu não pude ir, e o Zé Martins, nosso colaborador permanente, também não pôde comparecer...

Manda uma notinha e um ou duas fotos, eu faço-te uma notícia...

Um grande abraço. Luis

Joaquim Luís Fernandes disse...

Ao ler esta recensão, soltou-se uma lágrima, fez-se silêncio dentro de mim. E não tenho mais palavras.

Um forte e solidário abraço para o camarada Mário Vitorino Gaspar.
JLFernandes