segunda-feira, 18 de abril de 2016

Guiné 63/74 - P15987: Nota de leitura (831): “As guerras coloniais portuguesas e a invenção da História”, por Luís Quintais, Imprensa de Ciências Sociais, 2000 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Junho de 2015:

Queridos amigos,

Temos aqui uma narrativa de antropólogo que pediu ajuda à psiquiatria para conhecer as vítimas da desordem de stresse pós-traumático. Passadas estas décadas, como alguns livros recentemente ilustram, há famílias que continuam a sofrer com o sofrimento do ex-combatente que se recusa a desvelar as topografias da memória e a procurar alívio e a socorrer-se de terapêuticas.

Trata-se de um ensaio que põe frente a frente as ciências psiquiátricas e esta desordem a que continuamos indiferentes, viajamos com o autor num serviço do então Hospital Júlio de Matos, questionamos silêncios da muita gente que teme ingerências inoportunas do passado no presente. Talvez o último grande tabu das nossas guerras coloniais.

Um abraço do
Mário


Desordem de stresse pós-traumático: 
Quando a guerra é uma ferida da memória e um enigma para a medicina

Beja Santos

A desordem do stresse pós-traumático passou a ser alvo de estudos intensos a propósito da guerra do Vietname, gerando novos rumos para a psicoterapia e abalando o muito que se pensava saber acerca das ciências da memória. A memória de aqui se fala é traumática e a medicina, ao tempo da guerra colonial, praticamente que lhe passava ao lado. Mas acontece que muitos dos que vieram dos teatros de operações continuaram a sentir a guerra dentro de si, a viver em alerta, submetidos a uma ansiedade inexplicável, a comoverem-se imprevistamente numa sala de cinema ou num hospital.

“As guerras colonias portuguesas e a invenção da História”, por Luís Quintais, Imprensa de Ciências Sociais, 2000, é um trabalho etnográfico que tem por centro sessões de psicoterapia. Luís Quintais, então assistente de Antropologia da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra integrava-se nos grupos de terapia e estabeleceu contactos com vários ex-combatentes que frequentavam o Serviço de Psicoterapia e que se reuniam na APOIAR – Associação de Apoio aos Ex-Combatentes Vítimas de Stresse de Guerra. Trata-se de um pertinente ensaio em que o investigador demanda o que pode a ciência psiquiátrica face a esta desordem, quais as terapias possíveis, como apreciar o contexto português, como lidar com a memória, o trauma, por onde param as melhores terapias para tratar estas vítimas que se infelicitam e condenam os seus meios familiares à derrisão e à angústia.

Escreve o autor que qualquer indivíduo para ser diagnosticado com a desordem de stresse pós-traumático tem de: ter sido exposto a um acontecimento que vivenciou ou testemunhou envolvendo morte ou ferimento grave e em que a resposta pode ter implicado impotência, horror ou medo; essa pessoa irá revivenciar o acontecimento traumático através de penosas recordações, pesadelos e até sentir que o acontecimento traumático está a acontecer de novo; tudo conjugado, a vítima padece de intenso sofrimento psicológico e a sua fisiologia pode ser severamente afetada por essas recordações, sonhos e até mesmo alucinações.

Há duas formas de intervenção terapêutica para atacar esta desordem: a farmacoterapia e a psicoterapia. Diz o autor que os fármacos prescritos são usados, fundamentalmente, para controlar situações descritas como patológicas e que concorrem com a desordem do stresse pós-traumático: por pressão, ansiedade generalizada e abuso de substâncias químicas ou álcool. As psicoterapias socorrem-se de técnicas que se apoiam na comunicação verbal e emocional. Há três abordagens psicoterapêuticas: a terapia comportamental, a terapia cognitiva e a terapia psicodinâmica. Pretende-se acima de tudo reduzir a ansiedade e as reações que a acompanham expondo os pacientes a estímulos que sejam claramente inofensivos.

O médico que mais preocupações tem revelado quanto à obtenção de diagnóstico desta desordem em Portugal tem sido Afonso de Albuquerque. Em 1986, a ADFA – Associações dos Deficientes das Força Armadas organizou uma reunião sobre stresse de guerra e Afonso de Albuquerque propôs-se a estudar e a fazer um diagnóstico desta desordem. Assim apareceu, a partir de 1990, o Serviço de Psicoterapia Comportamental do Hospital Júlio de Matos, em Lisboa, serviço esse que não lidava só com o stresse pós-traumático mas também com o tratamento de fobias. É um serviço hospitalar de consulta externa. Nesse ano 2000, tinha cerca de 4000 mil consultas por ano. Ainda no século XX Afonso de Albuquerque e colegas que com ele trabalhavam sugeriam que havia em Portugal cerca de 140 mil ex-combatentes sujeitos a esta desordem.

Entramos agora nas topografias da memória, o autor assiste às sessões, regista os casos, houve as vítimas, acompanha o trabalho que assenta na necessidade em “deitar cá para fora”. O autor tece um juízo: “Pensar estes homens como vítimas de processo de adaptação fisiológica e psicológica afigura-se como a única maneira cultural e socialmente sancionável de tornar o insuportável suportável. Trata-se, se quisermos, de humanizar o inumano, um exercício que tem como agente simbolicamente mediador uma retórica sobre o sofrimento”.

E depois ouvimos as vítimas que combateram em Angola e Moçambique. Entramos nos meandros profundos das sessões de psicoterapia onde se jogam a memória individual e memória social, o corpo individual e o corpo social, para constituir um processo de criação de memórias em vários pontos do espaço-tempo. Passa-se em revista o trabalho da APOIAR, as relações desta com a ADFA e ouvem-se vítimas como o nosso confrade Mário Vitorino Gaspar que descobriu que era dado por falecido na sua caderneta. Numa entrevista a João Paulo Guerra, Mário Gaspar não esconde a sua constante conflitualidade: “Na rua meto o bedelho em tudo. Onde eu vejo uma situação que eu acho que não é justa… E então não há recuo possível, uma pessoa avança e não recua”. Só com a terapia de grupo é que começou a falar das suas experiências de guerra. Foi o motor do jornal da APOIAR, era assim que constantemente voltava à guerra.

Mas há outro ângulo, por sinal bastante instável, das topografias da memória: os silêncios das vítimas. E autor volta a tecer outro juízo: “Todas as formas mais ou menos voluntárias de silenciamento de que têm sido objeto as guerras coloniais só podem, em meu entender, explicar-se dada a impossibilidade de nos confrontarmos com a atrocidade e a violência extremas que se inscrevem no tecido da sua história. Atrocidade e violência que espelham indisfarçadamente a ininteligibilidade e a contingência das ações humanas e os desesperados esforços de constituição de sentido dos que as praticaram ou a elas se sujeitaram”.

Sobre esta desordem, também o autor diz que não conseguiu encontrar soluções tranquilizadoras: estamos perante algo para o qual as ciências sociais contemporâneas não encontram respostas claras.
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Nota do editor

Último poste da série de 15 de Abril de 2016 Guiné 63/74 - P15978: Nota de leitura (830): Jorge Sales Golias, um capitão eng trms, no TO da Guiné (1972/74), que teve um papel prepoderante no MFA, no 25 de abril e no processo de descolonização: escreve um livro de memórias 40 anos depois

3 comentários:

antonio graça de abreu disse...

"A impossibilidade de nos confrontarmos com a atrocidade e a violência extremas que se inscrevem no tecido da sua história. Atrocidade e violência que espelham indisfarçadamente a ininteligibilidade e a contingência das acções humanas e os desesperados esforços de constituição de sentido dos que as praticaram ou a elas se sujeitaram”.

A minha alma, limpa de stress, já não fica parva face a tanto e extremado sofrimento. Somos o que somos, e como gostamos de exaltar e mostrar ainda mais dor e sofrimento (mesmo quando falso!)em nome do "desgraçado" fado de se ser português!
Vamos viver os anos que nos restam, meus caros camaradas, com alegria, sem remorso nenhum, com uma guerra cruel como todas as guerras de permeio na nossa juventude, agora nesta singular existência final. Nascemos e morreremos portugueses, para o bem e para o mal, nesta esplendorosa terra, na ditosa pátria como dizia o nosso camarada de armas Luís de Camões. Não foi por causa disso que duzentos camaradas da Guiné rumaram a Monte Real, sábado passado? Pena eu não estar podido estar presente, por razões que me ultrapassaram. No próximo ano espero estar com todos. Para
o testemunho de estar vivos, no abraço fraterno e uma ou outra lágrima correndo pelo rosto, nós,camaradas e irmãos de passadas guerras, determinados e puros.
Abraço,

António Graça de Abreu

Antº Rosinha disse...

António Graça de Abreu tem muitos pontos de vista com que eu concordo.
De facto também como AGA, não vejo motivos para grandes "choraminguices" na nossa guerra de 13 anos.
Quando na realidade andámos em guerras de além-mar durante 500 anos e continua, muitas vezes em situações bem mais traumatizantes que aquilo que nós passámos.
Mas ao contrário de AGA, penso que deve ser trazido tudo para este blog, porque se todas as batalhas da nossa guerra ultramarina tivessem relatos tão pormenorizados como aqui, nos 13 anos da Guiné, não seriamos tão surpreendidos com tantas coisas que não imaginávamos que nos aconteceriam.
AGA reage como só pode reagir, quem passa a sua vida por "mares nunca dantes navegados".
Tive um colega que também pensava como AGA, tinha sido furriel Milº em Macau, segundo sargento em Goa e foi topógrafo em Angola.
Quando rebentou o terrorismo (UPA-1961) em Angola, suspendeu a profissão por dois anos, e alistou-se no corpo de Voluntários, para dar protecção na apanha do café no Norte de Angola.
No fim dos dois anos de guerra, apresentou-se ao serviço sem louvores nem honrarias, mas muito vaidoso e tranquilamente apenas disse, "aqui estou, já fiz a minha guerra".
Recentemente esse meu amigo foi embora já a caminho dos 100 anos.
Foi mais uma do BS, útil como todas.

Manuel Bernardo - Oficial reformado disse...

Beja Santos utiliza a técnica da omissão, pois os nºs de Afonso de Albuquerque já não são 140.000, mas 40.000 (Visão de 2-12-1999 e SIC 10-1-2002). No meu livro "Combater em Moçambique(...) dedico um capítulo a esse assunto. Lá digo que no seu livro (este agora referido) Quintais/2000 fala em 12% dos combatentes e Albuquerque em 15%, quando antes dizia ser 58%, como no Vietname.
Assim dos militares envolvidos mesmo em acções de combate - cerca de 276. 976 (240.000 segundo Albuquerque)poderá presumir-se que os afectados por "stress de guerra" sejam - 15% - 41. 546
- 12% - 33.237