sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Guiné 63/74 - P16760: Notas de leitura (905): "Adeus África - A Hiistória do Soldado Esquecido", romance de João Céu e Silva, Guerra e Paz, 2015 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Outubro de 2015:

Queridos amigos,
O jornalista e escritor João Céu e Silva acometeu-se a uma enorme tarefa: uma história de amor e guerra que atravessa os vários cenários do conflito colonial. Um atirador de elite que se refugia numa mina abandonada em Angola, no desencadear do conflito civil, em 1975 e regressa a Portugal depois de repatriado em 1986.
Não falta informação, o grande problema é que o excesso vai provocar confusão ao leitor, temos para ali cenários mal iluminados, figuras que se vão baralhar na leitura, o que é lastimável quando a proposta de carpintaria tem muitos aliciantes e a trama podia ter a sua vida facilitada com os testemunhos de cinco amigos do atirador Afonso, cujas tiradas, tantas vezes monocórdicas, retiram o elã à leitura, e nada pior que uma certa indiferença entre o leitor e o narrador.
Continua por preencher o espaço de um romance de primeiríssima água que atravesse a guerra colonial. E não é por pôr o atirador Afonso a conversar com Che Guevara, a ir para a cama com a jornalista Christine Garnier e a ouvir as histórias de Ryszard Kapuscinski, um dos maiores repórteres de todos os tempos, que se solucionam as falhas do romance histórico que, ao que parece, nenhum dos antigos combatentes da guerra colonial parece capaz de escrever.

Um abraço do
Mário


Adeus África, por João Céu e Silva

Beja Santos

Tome-se o ponto de partida e reconheça-se a originalidade que se propõe para a trama do romance: onze anos já passaram desde a partida das tropas portuguesas de Angola (10 de Novembro de 1975) quando é descoberto numa mina de ouro o atirador especial Afonso que ali se escondeu. É capturado, repatriado e passa a ter acompanhamento psiquiátrico. Este atirador especial combateu nos três teatros de operações e irá relatar ao psiquiatra as diferentes vicissitudes que passou durante a guerra colonial, como a percebeu. Quando o romance “Adeus África” caminha para o final, Afonso confessa-se:
“Para que acredite em mim, tenho que lhe falar da minha adolescência, que foi em parte passada em Portugal. Eu era filho de uma família com boas posses e eles acharam que eu devia tornar-me o mais português possível. Então, mandaram-me estudar em Lisboa e fui parar ao lugar menos indicado que existia nessa altura na capital para formar a consciência de um angolano favorável á ocupação portuguesa. Tratava-se da Casa dos Estudantes do Império. A Casa era exatamente o contrário daquilo que os meus pais desejavam para mim”.

Temos aqui o soldado esquecido a quem cabe a descrição horizontal da vida colonial, da guerra, da descolonização. Ideia que está a fazer caminho, no momento em que escrevo já vi nas livrarias o título de “O último retornado” e Barata Feyo acaba de escrever um romance sobre o último combatente português. A trama do romance de Céu e Silva propõe os ingredientes clássicos de que o narrador é o portador das confissões e se irão juntar outros convocados que conheceram o soldado esquecido. Trama mais aliciante não se podia esperar.

O desapontamento vai para a carpintaria que se apresenta pantagruélica em dados essenciais e não essenciais: há excesso de Foz Côa onde presumivelmente Afonso se enforcou, temos aqui um pretexto para a exibição de conhecimentos sobre pintura rupestre; intermitentemente, ouvimos a Rádio Futuro, são textos metafóricos sobre a complexidade das coisas da guerra, nem sempre é conseguido, provoca distração e quebra narrativa; o atirador Afonso parece falar como um autómato, ao longo dos meses, quer no consultório psiquiátrico quer nos passeios que dão na Praia da Caparica, o atirador tem a mesma toada discursiva, a mesmíssima carga emocional; a criação da figura dos gémeos, Martim e Afonso, que podia ter o condão de introduzir a dúvida de quem é que o psiquiatra verdadeiramente era fiel depositário de um testemunho ímpar sobre a guerra colonial, gera uma certa perplexidade, até porque os gémeos tinham estabelecido entre si uma relação truculenta… Céu e Silva não conseguiu controlar o caudal informativo que dispõe sobre a guerra colonial, que é impressionante, e afoga o leitor com figuras importantes e outras meramente residuais. O que podia ter sido um romance fabuloso, o primeiro, a pôr em grande ecrã um testemunho sobre as três frentes da guerra colonial, gera deceção. Tanto mais que o escritor deixa claro que “Sendo ficção, foi muito influenciado pela recolha feita de Norte a Sul de vários depoimentos de ex-combatentes que estiveram nos três cenários de guerra em várias funções. Testemunhos cotejados numa ampla consulta de investigações, teses, artigos, verbetes e textos digitais de vários autores nacionais, africanos e académicos estrangeiros; comprados com a leitura de textos da época para confirmar situações e recriar o ambiente vivido no Ultramar de forma mais fiel possível”. Não chega, um romance tem que ter sopro anímico. O uso de hipérboles como o incêndio do Chiado é curioso mas um romance é mais que uma tirada operática.

A despeito desta enorme reserva, é reconfortante ver que subjaz a este romance uma preparação invulgar, onde o autor presta homenagem a colegas seus do jornalismo como Ryszard Kapuscinski, considerado um dos dez maiores repórteres do século XX:
“Naqueles dias antes da independência de Angola eu convivi muito com um jornalista polaco que vivia no Hotel Tivoli. Chamava-se Kapu. Ele escrevia sobre o conflito entre os três movimentos pelo domínio da colónia portuguesa mas nos intervalos dava-lhe para filosofar sobre a realidade do que ocorria no território. Numa dessas vezes perguntou-me se eu tinha reparado que, desde que o Exército português partira, a grande maioria dos cães estavam mais magros e a desaparecer. Mas a história do Kapu que nunca esqueci era uma mais poética. Ele dizia que nascia uma outra cidade dentro de Luanda, e que era feita de caixotes com os pertences que os portugueses que abandonavam Angola queriam levar consigo. Até que houve um dia, como se navios de piratas tivessem saqueado Luanda, em que essas caixas foram embarcadas, levando dentro delas a cidade que os portugueses construíram durante séculos, como se deslizassem sobre o oceano à procura dos seus donos”.

Um romance que não se pode ignorar e que deixa a esperança para um grande romance sobre aquela guerra colonial que, parece, não sairá o punho de quem nela combateu.
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Nota do editor

Último poste da série de 21 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16742: Notas de leitura (904): "Textos de Amílcar Cabral - Declarações Sobre o Assassinato" (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

Angola era tão rica que até abandonou uma "mina de ouro" para lá se refugiar um soldado português.

Abandonar uma mina de ouro, que desperdício...mesmo de prata já era um estroinice!

De facto os retornados de Angola contaram sempre grandes farturas, deve ter sido algum gabarola retornado que contou que tinham minas de ouro em Angola e o autor acreditou.

Devia ser um lugar bem seguro para um refúgio, até era...invisível.

BS já me poupou mais um tempinho precioso, obrigado.