segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Guiné 63/74 - P16742: Notas de leitura (904): "Textos de Amílcar Cabral - Declarações Sobre o Assassinato" (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Setembro de 2015:

Queridos amigos,
Tenho procurado fazer o inventário da documentação publicada logo em 1974 sobre a obra de Cabral. Creio que este era a antologia em falta. Quem a fez, conhecia aprofundadamente o pensamento do líder do PAIGC, escolheu com conhecimento de causa um conjunto de texto apropriados para entender o pensamento e ação de Cabral, estão aqui extratos de artigos, intervenções, discursos, entrevistas, conferências e mensagens.
Tirando Cabo Verde, onde a Fundação Amílcar Cabral é operante através da publicação da sua obra, fazendo seminário e conferências, é raríssimo estudar-se Cabral, aquele pensamento revolucionário entrou em desuso ou ficou desgastado pelas desilusões que deixaram os seus seguidores na Guiné-Bissau.

Um abraço do
Mário


Textos políticos de Amílcar Cabral

Beja Santos

Penso que com esta recensão se conclui a enumeração dos livros dedicados ao pensamento de Amílcar Cabral e editados a seguir ao 25 de Abril. Neste caso trata-se de uma seleção que inclui declarações sobre o assassinato, como se verá adiante, era toda a conveniência atribuir o assassinato ao colonialismo português.

Trata-se de uma seleção com um critério sólido, quem a ela procedeu conhecia aprofundadamente a documentação de Cabral. Encontramos aqui excertos de artigos publicados a partir de 1962, intervenções, como a que fez no Centro Frantz Fanon, de Milão, o excerto do seu discurso, a “Arma da teoria” proferido na primeira conferência de solidariedade dos povos de África, Ásia e América Latina, Janeiro de 1966, Havana. É indispensável ler este documento para perceber como esta reflexão política projetou definitivamente o nome de Amílcar Cabral para o primeiro plano do movimento revolucionário. Foi um discurso que provocou celeuma, alterava a ortodoxia do pensamento marxista quanto a luta de classes e ao papel de vanguarda do partido revolucionário. Vejamos como o líder do PAIGC observava a nova realidade das revoluções do Terceiro Mundo:
“Os que afirmam – e com razão – que a forma motora da história é a luta de classes, estariam certamente de acordo para rever esta afirmação, a fim de a precisar e de lhe dar um campo de aplicação mais vasto, se conhecessem mais profundamente as caraterísticas essenciais de certos povos colonizados. Com efeito, na evolução geral da humanidade e de cada um dos povos que a compõem, as classes não aparecem nem como fenómeno generalizado e simultâneo na totalidade destes grupos, nem como um todo acabado, perfeito, uniforme e espontâneo. A definição de classes, no seio de um ou vários grupos humanos, é uma consequência fundamental do desenvolvimento progressivo das forças produtivas e das caraterísticas da distribuição das riquezas produzidas por este grupo ou confiscadas a outros grupos. Fatores externos a um dado conjunto socioeconómico em movimento podem influenciar de maneira mais ou menos significativa o processo de desenvolvimento das classes, acelerando, travando-o, ou mesmo provocando regressões”. 

E, mais adiante a sua reflexão parecia explodir como uma bomba:
“Tudo isto permite levantar a seguinte questão: será que a história só começa a partir do momento em que se desenvolve o fenómeno “classe” e por consequência a luta de classes? Responder afirmativamente seria situar fora da história todo o período de vida dos grupos humanos que vai da descoberta da caça, e posteriormente da agricultura nómada e sedentária, até à criação dos rebanhos e à apropriação privada da terra. Seria então também – o que nos recusamos a aceitar – considerar que muitos grupos humanos da África, da Ásia e da América Latina, viviam sem história no momento em que foram submetidos ao jugo do imperialismo. Seria de considerar que a população dos nossos países, tais como os Balantas da Guiné, os Koaniamas de Angola e os Macondes de Moçambique vivem ainda hoje, se abstrairmos das ligeiras influências do colonialismo às quais foram submetidos – fora da história ou sem história.
Esta recusa, baseada aliás no conhecimento concreto da realidade socioeconómica dos nossos países e na análise do processo de desenvolvimento do fenómeno “classe”, levamos a admitir que, se a luta de classes é a força motora da história, só o é num certo período dado. Isto quer dizer que antes da luta de classes – e necessariamente após – um fator, ou fatores, foi e será o motor da história. Admitimos sem custo que este fator da história de cada grupo humano é o modo de produção – o nível das forças produtivas e o regime de propriedade – que carateriza este agrupamento. Mas ainda a definição de classe e a luta de classes são elas próprias o efeito do desenvolvimento das forças produtivas conjugadas com o regime de propriedade dos meios de produção. Parece-nos pois correto concluir que o nível das forças produtivas, elemento determinante do conteúdo e da fórmula da luta de classes, é a verdadeira e permanente força motora da história”.

Consta que a sala em que ele discursou estava completamente siderada, o pensamento ortodoxo e dogmático sofria fissuras, o conceito de luta de classes e o nível das forças produtivas eram severamente questionados.

Amílcar Cabral possuía não só um pensamento político sólido como sabia encontrar fórmulas frescas para renovar o conceito das lutas de libertação: é o caso da sua apreciação sobre o papel da cultura da luta pela independência como no conceito de que a luta contra a guerra colonial transformaria a realidade portuguesa, como termo à ditadura.

Na sua mensagem de Ano Novo de 1973, Cabral profere o seu último discurso, refere-se às eleições para a primeira Assembleia Nacional que iria aprovar a constituição da República, e a reunião dessa Assembleia levaria à proclamação do Estado da Guiné-Bissau. Dentro do balanço, recorda os apoios recebidos ao longo de 1972, a guerrilha era inicialmente apoiada pela URSS e seus aliados, e com a credibilidade internacional que o PAIGC granjeara, os países escandinavos, o Concelho Mundial das Igrejas, a Cruz Vermelha Internacional e várias agências das Nações Unidas tinham passado a dar uma cooperação a favor das populações. E acrescentou:  
“… nenhum crime, nenhuma força, nenhuma manobra ou demagogia dos criminosos opressores colonialistas portugueses poderá deter a marcha da História”.

Assassinado dias depois, a 20 de Janeiro, sucedem-se as declarações de pesar e de encorajamento. Logo o PAIGC, reafirmando a sua determinação de vingar “esta traição ignóbil pela exterminação dos colonialistas e dos seus agentes corruptos”, era com esta fórmula que se procurava enredar as autoridades de Bissau ao complô de centenas de guineenses que nessa noite prenderam os quadros e funcionários cabo-verdianos. As mensagens do MPLA e da FRELIMO, por dever de ofício, atribuíam o crime ao regime colonial-fascista e exaltavam o pensamento e obra de Cabral.

Funeral de Amílcar Cabral em Conacri
Fundação Mário Soares, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 18 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16732: Notas de leitura (903): “Bijagós, Património Arquitetónico", por Duarte Pape e Rodrigo Rebelo de Andrade, fotografias de Francisco Nogueira, 2016 (Mário Beja Santos)

1 comentário:

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

Surpreende-me que o PAIGC não tivesse conseguido homenagear, na morte, o seu leader com uma frase em português, que veio a ser e era intuitivo que seria, a língua oficial da Guiné independente.
A expressão de condenação ao "fascismo português" escrita em francês, entre ou pelo o público que estava sentado nas tribunas(?) do estádio dá-me que pensar. A(s) entidade(s)/pessoa(s) que escreveu uma frase escreveria outra...
Era uma moda de passar mensagens políticas que creio que vinha de Cuba, onde estas coreografias eram muito usadas.
Ou será que dependência do PAIGC era tão grande que as autoridades da Rep. Guiné impuseram a sua vontade?
Creio que esta é a razão, a par do facto de o Seku Turé querer ele próprio demonstrar (a quem?) o seu antifascismo?

Um Ab.
António J. P. Costa