1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Outubro de 2015:
Queridos amigos,
O historiador e nosso confrade Leopoldo Amado deu à
estampa em 2005 uma importante reflexão sobre os 30 anos da independência
da Guiné-Bissau. Preambula cuidadosamente sobre a singularidade ideológica
do PAIGC, enquanto entidade subordinada ao pensamento e ação de Cabral e
aprecia a ingenuidade e cegueira dos dirigentes do novo Estado que
pretendiam a todo o vapor projetos financiados pela ajuda internacional de
grande envergadura sem disporem de gestores à altura.
De 1974 a 1980
passou-se do sonho e do reconhecimento de muitos pela índole do movimento
revolucionário para a queda aparatosa de todos os sonhos, incluindo a cisão
irreversível na unidade Guiné-Cabo Verde.
A época de Nino Vieira é também
cuidadosamente estudada, incluindo a deriva de Kumba Yalá. Nino Vieira
regressou e o depauperamento não conheceu melhores dias, chegou a praga do
narcotráfico e o aviltamento das instituições.
Para ler e tirar lições.
Um
abraço do
Mário
Guiné-Bissau, 30 anos de independência, por Leopoldo Amado
Beja Santos
A revista Africana Studia, n.º 8, 2005, publicação do Centro de Estudos Africanos da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, é essencialmente dedicada aos 30 anos de independência das antigas colónias portuguesas. Coube ao historiador Leopoldo Amado, nosso confrade, a reflexão sobre a Guiné-Bissau. Começa por nos dizer que o PAIGC que chegou a Bissau em Outubro de 1974 exibia com todo o garbo a sua matriz revolucionária anticapitalista e autocrática. O novo Estado viria a ser formalmente influenciado por dois fatores: os princípios fundamentais do PAIGC e pelo sistema de países que durante essa luta o auxiliaram. O processo de reconstrução nacional contava nesta fase com a cooperação dos países na órbita de Moscovo, e de Moscovo, claramente. O PAIGC teimava em apresentar-se como partido marxista mas não como partido marxista-leninista e publicitava os seus princípios numa direção coletiva, no centralismo democrático (tal como ela era praticado pelos países comunistas) e na democracia revolucionária.
Esta fase medeia entre 1974 e 1980: o sonho de grandes projetos, uma tensão permanente entre a visão de um país profundamente atrasado e agrário e a expetativa de alguns dirigentes para que o país avançasse a galope para a industrialização. O saldo deste período foi profundamente negativo, exauriu o país, cavou tensões entre a cidade e o campo, exacerbou ódios indevidos na ausência de um plano seguro e fiável de reconciliação nacional.
Por estas razões e pela crescente crispação entre o grupo militar guineense e a elite dirigente cabo-verdiana, Nino Vieira encabeça a 14 de Novembro um golpe de Estado que era apresentado como “Movimento Reajustador”. Para Amado, o golpe oculta inúmeras contradições mal resolvidas durante o período de libertação nacional, a par de uma questão militar, política e moral que continuava sem solução, a definição de estatuto para os Combatentes da Liberdade da Pátria, que aguardavam um pouco de justiça e o prémio devido para os deficientes, incapacitados e severamente doentes. Luís Cabral, atulhado em projetos verdadeiramente faraónicos para a dimensão do país, para os quais não havia gestores à altura, teve de recorrer a ajudas financeiras. Nino Vieira seguiu, é no seu tempo que vão ser aplicados programas de estabilização e ajustamento estrutural.
A atmosfera política guineense assumia duas faces: a direção política dura e pura e as garantias que Nino dava à comunidade internacional de que ia encaminhar o país para a democratização. Nino Vieira, ao adotar o PAE (Programa de Ajustamento Estrutural) negociado com o FMI e o Banco Mundial, tentou implementar um plano de desenvolvimento que acabou por originar, na prática, a rutura com o anterior modelo de planificação marxista. E de rutura se tratou, na pior aceção da palavra, pois todos os projetos da época de Cabral foram escandalosamente deixados ao abandono.
Colapsado o modelo de planificação, nasceu a tentação da Guiné avançar para uma ideologia liberal mantendo o partido monolítico na direção. A Carta dos “121” foi o primeiro sinal de exigência à abertura. Mas o PAIGC parecia apostado na inviabilidade da abertura política a conta-gotas. Afinal, a liberalização não foi uma escolha assumida do poder político, este entrou contrafeito no processo, sob a égide de uma intensa pressão económica internacional. Em sequência, surgiu o anteprojeto da Plataforma Programática de Transição, que previa um governo baseado na separação de poderes, na consagração do sufrágio universal direto, mantendo o sistema de governo presidencial mas declarando abertura para a formação de partidos políticos. É nesta atmosfera que se chegou ao II Congresso Extraordinário do PAIGC onde foram votadas novas medidas: despartidarização das forças de defesa e de segurança e privilegiando-se um sistema semipresidencialista de governo.
Entrara-se concretamente na transição democrática. Em 1994, realizaram-se as primeiras eleições democráticas e presidenciais, o PAIGC foi vencedor. Passado cinco anos da realização das primeiras eleições, o país foi de novo a votar, depois de uma guerra civil que teve o condão de abalar praticamente todas as infraestruturas do país. Nesse clima, o PAIGC foi punido, perdeu as eleições a favor do PRS e de Kumba Yalá. Por inoperância do sucessor de Nino, iniciou-se um processo de claro desequilíbrio étnico na representação social do poder, a etnia Balanta apresentava-se ao mais alto nível da hierarquia: Presidente da República, Primeiro-ministro, Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e Presidente do Tribunal de Contas. Embora o termo não seja verdadeiramente justo, assistiu-se a uma balantização do regime, o mesmo é dizer assistiu-se ao definhamento do Estado, à incapacidade técnica e política dos titulares dos cargos públicos, à mais despudorada perversão das regras democráticas que apressaram a queda de Kumba e o regresso de Nino. É indubitável que a guerra civil clivou a sociedade guineense, pôs a nu a fragilidade da democracia a despeito do comportamento heróico dos velhos militares guineenses que puseram senegaleses e guineenses de Conacri em fuga.
Nino Vieira não soube acalmar os conflitos, até com o próprio PAIGC, exonerando arbitrariamente o Primeiro-ministro Carlos Gomes Júnior, o que se seguiu era irrelevante pela falta de coesão política. Chegava-se à triste realidade de haver uma completa indefinição ou mesmo ausência da presença do Estado na maior parte do território, isto a par da extrema indefinição do papel das autoridades tradicionais.
O enfraquecimento do Estado e das instituições democráticas figuram na Guiné-Bissau como a principal causa da incapacidade do Estado em usar as suas atribuições.
E Leopoldo Amado termina o seu ensaio observando que quando se fala da Guiné-Bissau como um Estado falhado, “é imprescindível que se proceda a uma profunda normalização da vida pública e à modernização do aparelho de Estado que devem ser os antídotos à corrupção reinante e à necessidade inadiável de se conferir credibilidade interna e externa ao Estado”.
Ensaio premonitório, toda esta deriva foi desaguar no golpe militar de 2012, mais um manifesto sinal que os militares, depois de 1980, contrariavam a lógica de Amílcar Cabral que confinava os militares ao poder político.
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Nota do editor
Último poste da série de 16 de Dezembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16839: Notas de leitura (911): “Revolução na Guiné”, edição e tradução de Richard Handyside, 1969 (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
segunda-feira, 19 de dezembro de 2016
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1 comentário:
Diz o MBSantos: "os militares, depois de 1980, contrariavam a lógica de Amílcar Cabral que confinava os militares ao poder político."
A lógica do Amílcar Cabral não era lógica, partia de pressupostos ilógicos e irrealistas. Ou será que estou enganado?
Se não estou enganado, -- e porque muitos dos revolucionários de época acabam no caixote de lixo da História --, porque é que neste blogue se tem endeusado tanto a figura, marcada pelo tempo, de Amílcar Cabral?
Abraço,
António Graça de Abreu
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