Um Dia da Minha Infância
“Mundo para todos, com searas e pão.
É esse o Natal que trago no coração”.
Mário Vitorino Gaspar
(Baseia-se em factos reais, é da minha autoria)
A História passa-se na primeira rua
Rua Direita – Rua Salvador Marques
Natal Estamos em 1954 tinha 11 anos.
Na minha chaminé, numa casa muito velha, mas limpa, estava o meu presente do dito Pai Natal. Até assistira à ida do “Pai Natal, até era a Mãe-Natal” à chaminé. Um lindo cavalo de plástico. Dá-se o caso de ser um grande amigo do animal cavalo. É, na minha opinião, um símbolo da Liberdade.
A velha Fábrica Cimento Tejo
As pernas articuladas, movimentavam-se. Para a época era mais uma inovação para a “era do plástico”. O brinquedo – de péssimo fabrico - colocado sobre uma tábua, andava. Fui à rua apresentar o meu brinquedo.
Um deserto.
Vi o meu amigo Atilano, neto de um homem e velhote, com semelhanças ao Pai Natal, sem barbas, conhecido pelo nome de “Sete Bigodes”. Bigode branco enorme, talvez a razão do seu nome. Este homem – a pessoa mais conhecida da terra, até mais que o prior – era só o encarregado da recolha diária do lixo da vila de Alhandra. Fazia o seu dia-a-dia com uma carroça. Não recordo se puxado por um burro ou mais.
O Atilano trazia na mão esquerda um quarto de pão de dezassete tostões. Na direita um pedacito de “queijo da ilha”. Mostrei-lhe o meu cavalo. Amarelo e vermelho. O meu amigo disse:
– O teu Pai Natal deu-te esse cavalo? Pois a mim não. Pus lá o sapato… Olha não sei…
Levava o queijo ao nariz… Cheirava-o. Comia um naco de pão. Perguntou-me antes de levar o minúsculo queijo à boca:
– Queres queijo? – Esticou a mão com o queijo. Acenei com a cabeça.
– O teu cavalo é lindo!
Rapidamente coloquei a minha prenda na sua mão. Recusou…
– Tens Pai Natal… Rancho melhorado! … Vou pelo beco acima. Meu avô e minha mãe devem estar a espreitar para o beco, é mais torto que eu. A minha família é esta. Dizem que hoje é Natal! Estive no Largo da Praça, quase de braço dado com a estátua do Doutor Sousa Martins. O povo é pobre. Via-se um aqui… Outro ali com um embrulho. Eram tipos com “guita”. E as montras?
Nem sequer lhe respondia. Em casa esperava-me cabrito assado no forno, com batatinhas. A minha mãe escolhera-as uma a uma.
Atilano mirou-me silenciosamente. A buza tocava. O relógio da Igreja dava uma badalada. Sorriu:
– Amanhã jogamos à bola. Meu avô escolheu meias velhas no lixo. São muitas. Também os trapos são velhos. Temos brinquedos? Tens tu e outros rapazes. Raparigas com bonecas? Só as filhas de empregados de escritório da fábrica do cimento. Tu Marinho brincas connosco. Muitos pobres… Aquilo que temos é uma mão cheia de nada de nada… Espera lá… Nada?
Nadamos nus no nosso Tejo. Mesmo assim o cabo da GNR rouba-nos a roupa. O Atilano ria:
– O que as mulheres disseram. Envergonhados todos. Os dedos eram poucos. Tapar o quê?
Ó pá, descansa que há montes de brinquedos para os pobres. Para além daquilo que o meu avô me traz, encontro bugigangas para inventar um brinquedo. Um pau é uma espada. Um saco uma túnica de cavaleiro. Com canas e paus de vassouras se fazem cavalos. Caixas de graxa são automóveis. Os vimes que crescem perto da Igreja são arcos para as setas. E as tábuas besuntadas com sabão amarelo que roubas à tua mãe? Montamos nelas. Lá vamos pelas escadas da Igreja para baixo. Caímos os dois. E o sangue. Ricos e pobres, sangue igual. Olha gosto muito de fazer aviões de papel de jornal. Melhor! E pôr uma cana numa lata com sabão e água. Soprar. Os balões que saem da cana são livres. Desaparecem. Estrelas. Sonho que voo. Livre. Operários, avieiros. Que esperas desta terra? A minha casa é um ferro-velho. O Sete Bigodes leva tudo para casa, aliás é mesmo um caixote de lixo. Vou fazer a mais bonita das bolas! Maior que a lua que nos espreita por detrás do Mouchão. Dizem que na lezíria os cavalos correm mais que a bola de trapos. Pudera, estão em liberdade. Cheirou o naco de queijo. Comeu o restante pão e, pela primeira, única e última vez, comeu queijo. Saboreou finalmente:
– É dos melhores petiscos. Tão bem que cheira!
É raro o dia que não me lembre Sempre me do meu amigo Atilano. Juntos frequentámos a Escola do Castelo. Após cumprir a Recruta, como trabalhava nas Oficinas Gerais de Material Aeronáutico (OGMA), logo que teve oportunidade emigrou. Passaram anos. Nunca mais o vi.
Todos os Natais para mim são iguais. Generoso seria o mundo para todos se os dias fossem iguais.
Os últimos Natais passei-os no Hospital. O de 2015 fui para a Clínica João de Deus e logo transferido de ambulância para o Hospital de Santa Maria. Daqui para o Hospital Pulido Valente. Diagnóstico: Pneumonia… Cuidados Intensivos.
Passei o Ano-Novo, tive alta a 6 ou 7 de Janeiro.
“Um mundo para todos, carregado de searas e pão. É esse o Natal que trago no coração”.
Com um forte abraço e votos de muita saúde.
Mário Vitorino Gaspar
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