sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24712: Notas de leitura (1620): "Tertúlias da Guerra Colonial"; edição da Associação dos Pupilos do Exército, 2021 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Janeiro de 2022:

Queridos amigos,
Do conjunto de intervenções que deram origem à publicação da responsabilidade da Associação dos Pupilos do Exército, optei por aquelas que são assinadas por Carlos de Matos Gomes e Alcindo Ferreira da Silva, a primeira sem a ver com as observações sobre a quadrícula, a presença da Companhia do mato, os seus méritos e deméritos, a lógica do Regime em fazer suprir as ausências da administração por um contingente militar a quem se multiplicavam as missões e as obrigações, acabando por implicar essa unidade, em zonas de média e alta intensidade bélica, a um recuo nos patrulhamentos e operações, delegando-se nas Forças Especiais, a realização de grandes atos ofensivos. E veremos seguidamente o testemunho de quem foi fuzileiro especial e combateu em pleno mato, em Ganturé e Gampará.

Um abraço do
Mário



O modo dos portugueses fazerem a guerra no mato (1)

Mário Beja Santos

Tertúlias da Guerra Colonial é uma edição da Associação dos Pupilos do Exército, 2021, o presidente da associação convidou um conjunto de oficiais das Forças Armadas que ao longo de quatro sessões, sempre através da plataforma Zoom, analisaram as quatro dimensões tidas como mais interessantes para as tertúlias: Antecedentes políticos e fundamentos; Combater no mato; Efeitos colaterais e entimentos coloniais; Do 25 de Abril à descolonização. Estas quatro sessões realizaram-se em outubro e novembro de 2020. É da temática combater no mato que vamos aqui resumir as comunicações de Carlos de Matos Gomes sobre a quadrícula do Exército e a Marinha na guerra no mato da Guiné por Alcindo Ferreira da Silva.

Carlos de Matos Gomes observa que a quadrícula constituía a base do dispositivo militar português nesta guerra: malha de unidades, organicamente e hierarquizadas, cobrindo o território de acordo com a intensidade da atividade dos guerrilheiros, da densidade populacional, da importância económica ou tática.

 Lembra também que desde 1959 existiam estudos no Ministério do Exército para a criação de um novo tipo de unidades e de novas táticas para fazer face à evolução da situação em África. Esta quadrícula foi o dispositivo territorial exclusivo do Exército, gozou de várias designações: Regiões Militares, Comando Territorial, Zonas de Intervenção Operacionais (estas comandadas por oficiais generais e coronéis, delas dependiam os setores que por sua vez integravam batalhões e na base da quadrícula situava-se a Companhia).

A opção por este dispositivo respondia a uma dupla necessidade: a de reconquistar e manter os locais onde haviam ocorrido ações violentas de sublevação; e a de instalar órgãos de soberania e de administração até aí inexistentes.

 Era a dupla necessidade de ocupar militar e administrativamente parcelas do território onde, até ao início das ações violentas não havia presença de órgãos do Estado, nem de administração, nem serviços públicos. O autor recorda que em 1961, no norte de Angola, não existia um só quilómetro de estrada alcatroada, não existia uma rede de telecomunicações com o mínimo de eficácia e não existia uma só unidade militar. Pode mesmo tomar-se os acontecimentos da Baixa do Cassanje, janeiro de 1961, prelúdio da violentíssima sublevação dos Dembos, como prova de ausência do Estado, não assegurando as funções elementares de garantia da justiça e segurança das populações. “Não foi por acaso que as ações violentas da guerra ocorreram em zonas onde a administração do Estado estava pouco presente, ou era quase inexistente, como acontecia no norte de Angola e no norte de Moçambique”.

A Companhia de quadrícula tinha demasiado tarefas, sobre ela recaía: administrar pessoal e equipamento, incluindo a defesa e o abastecimento da tropa; órgão de soberania e de administração do território, por ausência de outro, providenciando serviços mínimos de saúde, de educação e até de justiça, agindo segundo as normas da ação psicológica; e, acima de tudo, realizar operações militares, nomadizar, fazer patrulhamentos ofensivos. “Desde cedo foi percebido pelos comandantes dos teatros de operações que só era possível cobrir todas estas tarefas em zonas de baixa intensidade operacional, onde não fosse provável a ocorrência de situações de envergadura por parte do inimigo. Onde o pelotão/grupo de combate não era suficiente, e em boa parte dos teatros de operações deixou de ser nos primeiros anos da guerra, a atividade operacional ficava circunscrita às imediações do aquartelamento e quase se reduzia às colunas logísticas de reabastecimento, era uma atividade que se limitava à presença e à ação psicológica”.

Esta implantação territorial na quadrícula de companhia, observa o autor, teve o mérito de aproximar os seus militares das populações africanas, a quem proporcionaram significativas melhorias das condições de vida, mas desviavam o Exército da função principal de combater, o que fez com que as ações militares de alguma envergadura tivessem de ser assumidas pelas forças de intervenção, maioritariamente constituídas pelas tropas especiais. E há os efeitos perversos: “A reduzida capacidade operacional das companhias da quadrícula provocou o aumento de efetivos de unidades de intervenção, quase sempre especiais, mais caras e mais difíceis de obter. A quadrícula de companhia tornou ainda o Exército, no seu todo, como uma força defensiva, fixa ao território, sem mobilidade, com as suas unidades vulneráveis, e exigiu um esforço excessivo e pouco remunerador para manter este dispositivo. No final da guerra, em especial na Guiné e em Moçambique, a quadrícula de companhias consumia-se em boa parte para manter uma ocupação ineficaz do território, os seus quartéis constituam alvos fixos e remuneradores para os guerrilheiros”.

O regime de Salazar viu nesta solução de administração militar uma série de vantagens: era barata, pois os recursos das Forças Armadas substituíam o que competia com uma administração civil; solução que também agradava os militares, pois era moralmente mais recompensador dedicarem-se a tarefas de apoio social do que à guerra. “Em Angola, onde os efetivos em 1960 eram de cerca de 70 mil homens, o general Fraser, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas sul-africanas, numa reunião com as autoridades portuguesas, calculava que um máximo de 30 mil homens seria suficiente, desde que empregues naquilo que as Forças Armadas poderiam fazer, combater o inimigo, e desde que existisse um bom governo civil”.

E há o chamado sentimento de dever, a razão por que se luta, que o autor assim resume: “Na guerra colonial, curiosamente de forma muito semelhante ao que aconteceu com a participação de Portugal na Grande Guerra, as tropas nunca souberam com clareza por que combatiam. As respostas que davam nos inquéritos referem o cumprimento de um dever (resignação); defender o que é nosso (a adoção de um discurso vazio, que era contrariado por parte dos militares quando reconheciam que a guerra aproveitava a uns poucos que com ela enriqueciam à custa do sacrifício dos soldados). Mas as tropas, também como na Grande Guerra, foram, no geral, mal instruídas, e o seu nível quer de motivação quer de instrução sofreu uma contínua degradação ao longo dos anos de guerra”. O autor explana ainda a opinião dos Aliados, a situação em Moçambique e conclui assim: “A guerra colonial era, por motivos históricos e de conjuntura nacional, uma guerra perdida à partida, no sentido em que a vitória seria manter no último quarto do século XX uma entidade política com uma pequena cabeça na Europa, espalhado por três continentes e pelos três oceanos do planeta. Mas a guerra travada no mato, nas florestas, nas chanas, nas bolanhas de Angola, de Moçambique e da Guiné sofreu dos condicionamentos gerais da participação de Portugal na Grande Guerra. O mato de África não foi um lugar de glória nem de boa memória”.

Vamos de seguida ver uma exposição sobre a Marinha na guerra no mato da Guiné.

(continua)
Alferes Marques Vieira, 1971. Imagem carregada por Kai Archer, com a devida vénia
Viagem num rio da Guiné. Imagem retirada de GUINÉ BISSAU - Memórias, com a devida vénia
Fuzileiros a caminho de uma operação na Guiné. Imagem retirada de fuzileiros especiais 12 - 1970 / 1971 - guiné, com a devida vénia
Parte do armamento apreendido na Operação - Cocha, na base do PAIGC zona de Cumbamory, pelo destacamento de Fuzileiros Especiais. Imagem retirada de fuzileiros especiais 12 - 1970 / 1971 - guiné, com a devida vénia


Fixação do texto e edição de imagens: Carlos Vinhal
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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24697: Notas de leitura (1619): "PAIGC A Face do Monopartidarismo na Guiné-Bissau", por Rui Jorge Semedo; Nimba edições, 2021 (Mário Beja Santos)

6 comentários:

João Carlos Abreu dos Santos disse...

HONRA E GLÓRIA!

Perseguido pelo PAIGC, aprisionado e torturado, vindo a ser fuzilado no dia 18Dez1978, em Porto Gole.

Cicri Marques Vieira, Tenente Graduado 'Comando' n/m 82007766.
Guiné:15Ago 1968 a 07Set1974
Comandou por breve período a 1ª Companhia de Comandos Africanos
Cruz de Guerra de 3ª classe
Medalha de Promoção por Distinção

Nascido no dia 27 de Janeiro de 1945.
15 de Agosto de 1968 assentou praça como Furriel.
Em 9 de Julho de 1969 integrado na formação da 1ª Companhia de Comandos Africanos.
Em 15 de Julho de 1970 graduado no posto de Alferes 'Comando'-
De 19 a 22 de Novembro de 1970 participou na Operação «Mar Verde» integrado na 'Equipa Sierra'.
Em 21 de Dezembro de 1971 ferido em combate no decurso da Operação «Safira Solitária».
Em 12 de Abril de 1972 agraciado com a Cruz de Guerra de 3ª classe.
No início do mês de Fevereiro de 1974 promovido por distinção a Tenente Graduado, passando a comandar, por breve período, a 1ª Companhia de Comandos Africanos do Batalhão de Comandos da Guiné.
Após o mês de Setembro de 1974 perseguido pelo PAIGC, aprisionado e torturado, vindo a ser fuzilado no dia 18 de Dezembro de 1978, em Porto Gole.
A sua Alma descansa em Paz.

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

Selvajaria sim, mas não tanta.
Matar um inimigo 4 anos depois de terminada a guerra que se ganhou é uma brutalidade.
O que se terá passado com ele durante esse tempo?
Que tipo de julgamento lhe terão feito? Nunca saberemos pois a família a estas horas deve estar devidamente calada. E quem o fuzilou? Que memória terá disso?
Enfim, "independências"...

Um Ab. e bom FdS
António J. P. Costa

Eduardo Estrela disse...

"selvajaria sim mas não tanta "

SELVAJARIA PARA QUÊ??!!

Abraço
Eduardo Estrela

Antº Rosinha disse...

Em Angola, onde os efetivos em 1960 eram de cerca de 70 mil homens, diz Carlos Vaz Marques.

Talvez, contando com a incorporação dos indígenas, pois eram tudo companhias indígenas a pirão e peixe seco em companhias espalhadas uma ou duas pelos diversos distritos.

Onde havia mais unidades era Regimento Infantaria de Luanda, o equivalente em artilharia, o mesmo ou equivalente em Nova Lisboa, Regimento em Sá da Bandeira, tudo indígena, e esses regimentos é que espalhavam companhias, muito incompletas por cidades mais importantes.

Havia uma cavalaria insipiente em Luanda e Silva Porto. que não dava para espalhar para lado nenhum.

Tropas especiais nem para desfile existiam.

Em 1960 estive como cabo milº numa companhia dessas e mesmo em 1962 reincorporado para a guerra, com esta em andamento como furriel, estive noutra companhia no leste, com diferença que o pente de 5 balas mauser já não era distribuído dentro de um saquinho inviolável.

Essas companhias com capitão, alferes, sargentos e cabos, a bacalhau e batatas, somados aos indígenas a pirão e carapau seco, somariam 70 mil?

Vamos exagerar com 100 companhias a 100 fardados com balas contadas?

Mesmo contando com umas pouquinhas baterias de artilharia e os cavaleiros de Silva Porto e Luanda, 70 mil aonde?

Tenho mais uma pequena discordância com o autor, fica para outro comentário

Cumprimentos


Valdemar Silva disse...

No "GUINÉ-BISSAU - Memórias"

"....com a vida nas colónias: os piqueniques em família de domingo, as festas e os fins de semana em praias de sonho. ..."

Destes hábitos não falaram os soldados do meu Pelotão Bonco Embaló, Alseine Jaló, Ussumane Colubali e outros, ou sequer o nosso amigo Cherno Baldé.

Valdemar Queiroz

António J. P. Costa disse...

Olá Camarada

Também não me lembro de ter ouvido falar "da vida nas colónias: os piqueniques em família de domingo, as festas e os fins de semana em praias de sonho..."
Se calhar a colónia que eu conheci não era a mesma...
O assunto de que vimos falando não tem que ver com este tema nem com "a Angola, onde os efetivos em 1960 eram de cerca de 70 mil homens" fora os outros (capitão, alferes, sargentos e cabos, a bacalhau e batatas, somados aos indígenas a pirão e carapau seco), somariam 70 mil

Um Ab e bom domingo
António J. P. Costa