domingo, 9 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26477: S(C)em Comentários (58): A "Primavera Marcelista" ?...é um mito: eu estava em Coimbra e e apanhei em pleno a crise académica de 1969 (Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alf mil at inf, CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880, Zemba e Ponte do Zádi, Angola, 1972/74)




Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alf mil at inf, CCAÇ 3535 /
BCAÇ 3880 ( Zemba e Ponte do Zádi, Angola, 1972/74);
membro da Tabanca Grande desde 11 de novembro de 2018,
com o nº 780, tem 34 referências no nosso blogue.
Engenheiro, natural do Porto, é o administror
que mantém ativo desde janeiro de 2006 até hoje.
Um caso notável de longevidade.


1. Comentário ao poste P26467 (*):

Lembro-me muito bem desta edição do Diário de Lisboa. Eu estava em Coimbra, a frequentar a Universidade, e o Diário de Lisboa tinha-se tornado o meu jornal diário. 

A notícia impressionou-me muito. Eu ainda não tinha idade para ser chamado para o cumprimento do serviço militar obrigatório, mas estava quase. Naquele tempo, o Diário de Lisboa era sem dúvida o melhor jornal diário português, apesar da censura e da péssima qualidade da sua edição, feita com caracteres de chumbo, alinhados penosamente letra a letra pelos tipógrafos, e impressa com uma tinta que nos borrava as mãos todas. 

Dizes tu, Luis, que o Diário de Lisboa era "do reviralho". Se havia algum jornal que fosse do reviralho, esse jornal era o República, muito mais do que o Diário de Lisboa. Em 1969, o Diário de Lisboa era um jornal aberto e plural, que tinha colaboradores de grande nível, como Eduardo Lourenço (que enviava crónicas a partir de França), e que publicava traduções de reportagens saídas nos jornais Le Monde e Washington Post. 

Além do República e do Diário de Lisboa, havia mais jornais diários que se assumiam como republicanos e defensores de um regime democrático. Exemplos: O Primeiro de Janeiro, O Comércio do Porto, O Século, A Capital, Diário de Coimbra e até A Província de Angola, de Luanda.

A chamada "Primavera Marcelista" é um mito. O Marcelo Caetano apenas abria uma fresta , para fechá-la logo a seguir. Não houve "primavera" nenhuma. 

Eu mesmo, que estava em Coimbra, vivi por dentro (mais "por dentro" do que imaginas) a chamada Crise Académica de 1969, que deve ter sido uma das maiores ondas de repressão de toda a história do Estado Novo. A cidade de Coimbra ficou em estado de sítio, ocupada e controlada por centenas de militares da GNR, com as suas armas, os seus cavalos, os seus jipes, o seu arame farpado, as suas botifarras e os seus capacetes iguais aos do Exército. Até a Polícia Judiciária foi mobilizada para Coimbra, para ajudar a PIDE a fazer o seu "trabalhinho". 

Mas que raio de "primavera"!!! (**)

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025 às 21:38:00 WET 

________________

Notas do editor:

(*) Vd,. poste de 6 de fevereiro de 2025  > Guiné 61/74 - P26467: Efemérides (450): 6 de fevereiro de 1969, o desastre do Cheche: quando os relatos de futebol eram dados em direto, e efusivamente, e a guerra em diferido, resumida a telegráficas notas oficiosas

(**) Último poste da série > 25 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26422: S(C)em Comentários (57): os fulas e o gado bovino como extensão da própria família e da comunidade (Cherno Baldé, Bissau)

5 comentários:

Alberto Branquinho disse...

Também estava em Coimbra, regressado da Guiné há cerca de um mês (com a ideia de ir fazendo umas "cadeiras" no chamado "regime militar"), quando rebentou a crise de 1969. E foi isso mesmo; só faltou referir os "jeeps" com arame farpado.
No que respeita à chamada "Primavera Marcelista", para além de se discutir se houve ou não, verificou-se uma postura dele muito diferente depois da visita que fez a Angola causada pela "encenação multiracial" que lhe prepararam nas ruas.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Já aqui contei, algures, da minha profunda desilusão no dia 26 de outubro de 1969, aquando das eleições legistativas: os militares foram também votar... Eu estava em Bambadinca, na CCAÇ 2590 (mais tarde, CCAÇ 12), adida ao BCAÇ 2852... Para meu espanto, só eu, mais o comandante, o cap inf Carlos Brito, e um cabo (ou soldado metropolitano) da minha companhia, num total de 60 e tal homens, estávamos recenseados nos cadernos eleitorais. (Não posso garantir se os dois sargentos do QP tambérm estavam.). Eu votei, e votei em branco.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Fernando, o Diário de Lisboa, que era propriedade da Renascença Gráfica, adoptou a fotocomposição em 1971... Quando eu regressei da Guiné, em março de 1971, passou a ser o meu jornal diário... Abraço, Luís

Fernando Ribeiro disse...

Ao contrário do que se poderia esperar, a guerra em África quase não foi motivo de contestação ao regime por ocasião da crise académica de 1969 em Coimbra. Todos nós esperávamos bater com os costados em África mais cedo ou mais tarde, a guerra era um dos nossos motivos principais de conversa à mesa do café, mas a contestação estudantil, enquanto tal, visava sobretudo questões relacionadas com o ensino, a universidade, a sociedade portuguesa em geral e a liberdade que nos era negada.

Uma das acções levadas a cabo pelos estudantes de Coimbra durante a crise académica de 1969 foi a chamada "Operação Flor". Num determinado dia, os estudantes foram ao Mercado D. Pedro V e a todas as lojas de florista espalhadas pela cidade, e compraram todas as flores que havia para venda. A seguir, percorreram as ruas do centro, oferecendo flores à população, ao mesmo tempo que pronunciavam as palavras «Paz e Liberdade». As raparigas mais bonitas de Coimbra receberam muitas flores, como se imagina... A polícia não interveio, porque não era proibido oferecer flores às pessoas, mas a censura não permitiu que os jornais se referissem ao assunto no dia seguinte.

Uma outra acção que poderia ter dado porrada, mas felizmente não deu, foi a chamada "Operação Balão". Os estudantes compraram todos os balões que encontraram à venda, encheram-nos em frente à sede da Associação Académica de Coimbra e acrescentaram-lhes os dizeres «Liberdade», «Ensino para todos», «Democracia», «Paz», etc. Depois seguiram em desfile pela Av. Sá da Bandeira, Rua Visconde da Luz e Rua Ferreira Borges até ao Largo da Portagem, junto ao rio Mondego. No Largo da Portagem largaram os balões, que o vento empurrou para a outra margem, para Santa Clara. No dia seguinte, o jornal do Porto "O Primeiro de Janeiro" publicou uma crónica, em estilo floreado como se fosse um devaneio poético (para poder passar pela censura, como de facto passou), referindo-se aos meninos tristes de Santa Clara, a quem numa tarde de sol veio do céu uma mensagem de esperança... Só há poucos meses é que eu soube que o autor da crónica foi o jornalista Rocha Pato, que era chefe da delegação de "O Primeiro de Janeiro" em Coimbra.

Alberto Branquinho disse...

Lembro-me perfeitamente da Operação Flor e dos balões na Associação (embora só tenha visto - quase ao pé - os balões no ar), mas os da Portagem não vi.
Mas, Fernando Ribeiro, embora a crise tenha sido despoletada pelo acontecido na inauguração de Matemáticas e pela prisão posterior do Alberto Martins e a guerra em África não fosse mencionada nas palavras de ordem, ela estava sempre presente. E foi repetidamente referida no ambiente (quente e de excitado) que se viveu durante a tarde desse dia no jardim da Associação.
MAS não há dúvida que tudo ultrapassou a "simples" questão da guerra.