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sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26125: Agenda cultural (865): Convite para o lançamento do livro "Lavar dos Cestos - Liturgia de Vinhas e de Guerra", da autoria de José Brás, a levar a efeito no próximo dia 1 de Dezembro, pelas 15h00, na Casa do Alentejo, Rua das Portas de S. Antão, 58 - Lisboa. Com a participação do Coronel Carlos Matos Gomes, representante da Câmara Municipal de Montemor-o-Novo e do Grupo Coral Fora D'Oras (Cante)

C O N V I T E


JOSÉ BRÁS

Nasceu no concelho de Alenquer em 1943, estudou e trabalhou em Vila Franca de Xira, onde participou ativamente na animação da secção cultural da União Desportiva Vilafranquense, praticou remo de competição e pegou toiros integrado no Grupo de Forcados local.

Mobilizado para a Guiné, aí fez a guerra colonial entre 1966 e 1968. Regressado, entrou para os quadros da TAP como Comissário de Bordo. Fez teatro em grupos de amadores, foi ativista associativo e animador cultural. Eleito Presidente do Conselho Municipal de Loures, foi responsável pela organização do pelouro da cultura e desporto na Câmara Municipal entre 1974 e 1981, tendo sido posteriormente, eleito como Presidente da Junta de Freguesia de Loures até 1985.

Em 1986 foi galardoado com o Prémio Revelação da Associação Portuguesa de Escritores e do Instituto Português do Livro e da Leitura, na modalidade de ficção narrativa com o livro “Vindimas no Capim”, editado pela Europa-América.

Em 1989 foi eleito Presidente da Direção do Sindicato do Pessoal de Voo da Aviação Civil, cargo que exerceu até 1997, tendo, na sequência, exercido a coordenação da Frente Sindical da TAP constituída por 16 sindicatos, até 1995.

A viver desde 1997 em Montemor-o-Novo, fundou uma escola de pilotagem e exerceu as funções de instrutor de voo, tendo encerrado a escola em 2008.

Livre de outras atividades, dedicou-se de novo à escrita, colaborando com blogs na área da poesia e da “blogoterapia” da guerra, e, dessa colaboração, tem, sem intenção de edição, “No Bin Fala Mantenha”, textos de debate sobre as particularidades do colonialismo português e sobre a Guerra Colonial.

Com chancela Chiado Editora, apresentou em janeiro de 2011 novo trabalho de ficção narrativa com o título “Lugares de Passagem”. Na área da composição lírica, tem reunido a sua produção em edições pessoais que oferece a amigos via NET, desinteressado da edição no mercado.

“Itinerân(s)ias”, “Na Volta do Correio”, POESIA quase… quase ERÓTICA”, “Poesia da Guerra Colonial” “Litania de um Tempo de Dúvidas”, são títulos não editados para o mercado, reunindo conjuntos de textos seus.

Tem ainda poemas seus incluídos em várias Antologias.

É, desde 2017, membro do Coral Fora D’oras, grupo de CANTE alentejano de Montemor-o-Novo.



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"LAVAR DOS CESTOS – Liturgia de Vinhas e de Guerra"

SINOPSE


Protagonista e espectador de si próprio e da forte realidade no centro da mata sub-tropical do sul da Guiné, ainda, então, colónia portuguesa à força do regime de Salazar, neste caso, contra um Exército de Libertação aguerrido, bem treinado e habilmente liderado por Amílcar Cabral que tinha já como zonas libertadas extensas partes da colónia e populações, ocupando com guerrilheiros muitas e importantes localidades do pequeno território, Filipe Bento, mais tarde confundido com Arnaldo Matos e mesmo por vezes com José Brás, inicia uma viagem de vai e vem, contra a linearidade da acção e mesmo do espaço e do tempo, que o irá retirar do agressivo lugar de guerra da zona de Medjo-Guiledje-Gandembel-Gadamael Porto, navegando à sorte pelo Rio Cacine, por Catió, por outras zonas de guerra, até Bolama, até Bissau, tendo em mira a volta a Lisboa e ao Quartel de Caçadores de infantaria, onde, equivocado, julga ir deixar os restos de si dos últimos dois anos.

Mas não acaba em Caçadores de infantaria esta sua viagem de ida e volta. Na aldeia descobre que pouco mudou, apesar da aparência dos bairros novos que alargam a cidade nos despojos que a guerra oferece a quem a serve de livre vontade; apesar da fuga dos ranchos das beiras para paragens mais distantes e europeias; apesar da transformação dos meninos guerreiros de retornados da guerra em serventes de pedreiro nos arrabaldes da cidade, em motoristas, em padeiros, em polícias, em porteiros de prédios novos.

Filipe Bento anseia encontrar os meninos da sua aldeia e não os encontra. Busca perceber como é que esses companheiros nascidos já escravos das vinhas, se haviam transformado em soldados prontos a marchar de G3 para uma quente terra e uma guerra de que pouco ou nada conheciam. Em que escola, em que catequese, em que relações de poder envolvendo gente sem terra, ganhões de jorna pouca, pequenos agricultores, GNR’s, negociantes, armazenistas, caciques locais e land lords de extensas vinhas e grandes adegas, com interesses económicos já noutros negócios, patrões a quem começavam a faltar a mão de obra local e os beirões para tratar de suas terras.

E, na sua busca, Filipe Bento volta a viver Bissau, volta ao mato do sul da Guiné, às emboscadas, às patrulhas, às flagelações sobre miseráveis aquartelamentos onde vivera, volta a Guiledje e a Medjo, e ao Rio Balana, e ao Corredor da Morte, aos amigos feridos e mortos. E retorna ao Cais da Rocha e a Caçadores de Infantaria, e a Tavira; às vinhas de seus avós e à ingenuidade de mosca que eram na base do sistema, presas na teia da pirâmide de um Poder e de um regime que se mantinha no mito do Império que nunca foi, descobrindo que alguns desse meninos que reencontra, começavam a aprender sobre a guerra em África, o que não sabiam quando para lá partiram.

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Nota do editor

Último post da série de 7 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26124: Agenda cultural (864): Convite para o lançamento do livro "Um Grande Militar Português - General Bethencourt Rodrigues" da autoria de António Pires Nunes, a levar a efeito no próximo dia 5 de Dezembro, pelas 17h30, no Auditório das Instalações do Instituto Universitário Militar, em Pedrouços. A obra será apresentada pelo Major-general João Vieira Borges

terça-feira, 20 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25860: Manuel de Pinho Brandão: entre o mito e a realidade - Parte I (Mário Dias / Armor Pires Mota)










Croquis da Op Tridente (1964),  


Infografia: © Mário Dias / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2005)



Lisboa > Forte do Bom Sucesso > 24 de setembro de 2005 > Quase 42 anos depois da Operação Tridente, alguns dos elementos que nela tomaram parte, pertencentes ao Grupo de Comandos,  fotografados a 24 de Setembro de 2005, durante o convívio dos Grupos de Comandos do CTIG  (1964/66). 

Da esquerda para a direita: 

(i) sold João Firmino Martins Correia; 

(ii) 1ºcabo Marcelino da Mata; 

(iii) 1º cabo Fernando Celestino Raimundo; 

(iv) fur mil António M. Vassalo Miranda; 

(v) fur Mário F. Roseira Dias; 

(vi) sold Joaquim Trindade Cavaco 

(Os postos, referentes a cada uma, são os que tinham à época dos acontecimentos).

Foto (e legenda): © Mário Dias (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Havia, na região de Tombali, pelo menos dois Pinho Brandão, o Afonso (em Catió) e o Manuel (no Como,  e depois Catió e mais tarde em  Ganjolá). Julgamos que fossem irmãos. Seriam oriundos de Arouca, onde este apelido, Pinho Brandão, é comum.

O Afonso foi morto logo no princípio da guerra,  em 1962/1963, por balantas de Catió, que lhe queriam assaltar (e apropriar-se de) a sua casa. 


Era pai da nossa amiga, tabanqueira, Gilda Pinho Brandão (ou Gilda Brás) (foto à direita, cortesia da própria), filha de mãe fula; foi trazida para Portugal, aos 7 anos, em 1969, passando a viver   numa família de acolhimento.

O Afonso era também do engº agr. Carlos Pinho Brandão, colega, no Instituto Superior de Agronomia / Universidade Técnica de Lisboa,  do nosso grande e saudoso amigo Carlos Schwarz da Silva, 'Pepito' (1949-2014).

O Manuel de Pinho Brandão (o da ilha do Como) foi, a par do Álvaro Boaventura Camacho (Cufar) (cabo-verdiano de origem madeirense), um dos grandes proprietários agrícolas da região de Tombali, e conhecidos produtores (e comerciantes) de arroz... Enfim, seria um dos poucos colonos brancos existentes no território. Resta-nos saber a história do seu passado.

É pena, de facto,  não haver histórias de vida destes homens. Com a ocupação da ilha do Como em 1963, pelo PAIGC, o Manuel terá ido para Catió (vivia lá no tempo do J. L. Mendes Gomes, em 1964) e depois para Ganjolá (segundo o Victor Condeço, 1967). 

Aqui havia um pelotão destacado (e foi lá que morreu o meu primo José António Canoa Nogueira, o primeiro lourinhanense a morrer no CTIG, em 23 janeiro de 1965).

O Manuel terá sido desterrado para a Guiné possivelmente no final dos anos 20 ou princípíos dos anos 30 (ainda não encontrámos fonte segura que comprove este facto). De qualquer modo, naquela época a Guiné e Timor eram os piores lugares de desterro, usados tanto pela República como pela Ditadura Militar.

Há várias referências a esta figura,  o Manuel Pinho Brandão, cuja casa na ilha do Como  ficou popularizada pela Op Tridente, com a reocupação pelas NT  (em janeiro-março de 1964).  O Mário Dias (que foi para a Guiné com 14 anos, na década de 50), ainda o conheceu, pelo menos de vista,  em Bissau.

Vejamos algumas referências a este arouquense, desterrado no sul da Guiné, que era também o celeiro do território, antes do início da guerra.
 
 (i) Mário Dias [ex-fur mil 'cmd',  
Cmds do CTIG, 1963/64] (*)


(...) A designada Ilha do Como é, na realidade, constituída por 3 ilhas: Caiar, Como e Catunco mas que formam na prática um todo, já que a separação entre elas é feita por canais relativamente estreitos e apenas na maré-cheia essa separação é notória.

Na ilha não existia qualquer autoridade administrativa nem força militar pelo que o PAIGC a ocupou (não conquistou) sem qualquer dificuldade em 1963.

 As tabancas existentes são relativamente pequenas e muito dispersas. Possui numerosos arrozais, o que convinha aos guerrilheiros pois aí tinham uma bela fonte de abastecimento, acrescido do factor estratégico da proximidade com a fronteira marítima Sul e o estabelecimento de uma base num local que facilitava a penetração na península de Tombali e daí poderia ir progredindo para Norte.

Não tinha estradas. Apenas existia uma picada que ligava as instalações do comerciante de arroz, Manuel Pinho Brandão (na prática, o dono da ilha) a Cachil

A partir desta localidade o acesso ao continente (Catió) era feito de canoa ou por outra qualquer embarcação. A casa deste comerciante era, se não estou em erro, a única construída de cimento e coberta a telha.

Portugal não exercia, de facto, qualquer espécie de soberania sobre a ilha. Tornava-se imperioso a recuperação do Como. (...)

(...) A tabanca de Cauane, bem como as restantes, estava praticamente destruída assim como a casa do comerciante Brandão, ali bem próxima. 

Meses antes, já a aviação havia actuado na ilha bombardeando e destruindo todas as instalações que pudessem ser proveitosas ao IN. Recordo-me ainda de assistir no QG em Santa Luzia, onde ocasionalmente me encontrava, aos protestos do referido Brandão por lhe terem escavacado tudo quanto possuía no Como. (...)

(...) Um dos pontos que pretendíamos dominar era a picada que, partindo das imediações da casa Brandão, seguia para Norte em direcção a Cassaca e Cachil. 

Tarefa difícil pois o inimigo tinha instaladas à entrada da mata metralhadoras no enfiamento da picada. No dia 23 o grupo de comandos reforçado com uma secção da CCAV 488 e uma secção de fuzileiros dirigiu-se ao local para tentar alcançar e destruir as metralhadoras. 

Escondidos na casa Brandão, fomos progredindo de um e outro lado do ourique. Porém, ao chegarmos junto ao rio que atravessa a bolanha tínhamos que subir para o ourique e passar por umas tábuas que faziam de ponte. Como era de esperar, as metralhadoras entraram em funcionamento. Zás. Tudo a saltar de novo para o desnível do ourique. (...)
   
(...) Com a operação a chegar ao fim previsto, o Comandante das Forças Terrestres, ten cor Cavaleiro, saiu com o grupo de comandos e o pelotão de paraquedistas às 23h30 do dia 20 de março, atravessando a mata de Cauane, Cassaca e Cachil com a finalidade de verificar pessoalmente a capacidade de combate do IN.

Passagem e pequena paragem na tabanca de Cauane, troca de informações com o comandante da CCAV 488, dono da casa, e iniciámos a penetração na mata à 1 hora do dia 21, partindo da casa Brandão. 

Reacção do IN?...nenhuma. Progredimos até Cassaca que foi alcançada às 02h30. Feita uma batida cuidadosa à região, encontraram-se a Norte algumas casas de mato quase destruídas e há muito abandonadas. (...)

(...) Atingimos Cachil, na outra extremidade da ilha, que foi atravessada pacificamente de Sul para Norte sem qualquer beliscadura nem qualquer oposição à nossa presença por parte dos guerrilheiros.

Embarcados na LDM, lá fomos nós de regresso à praia. Foi a última operação da batalha do Como. (...)



Guiné > Regiáo de Tombali >  Janeiro de 1964 > Op Tridente >  Desembarque das forças do BCAV 490 na Ilha do Como... Percebse-se, por esta foto, que as praias do Como podiam mter centenas de metro de areal e tarrafo na maré-baixa.

Foto (e legenda): © Armor Pires Mota  (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


(ii) Armor Pires Mota [ex-alf mil at inf, 
CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66] (**)

Como, 16 de janeiro de 1964

(...) Ali,  em Cauane, não havia um poço sequer. Só mais longe, a uns trezentos metros, junto à casa do tal Brandão, o único branco que ali vivera, há tempos, onde montara os seus negócios e fizera fortuna. 

Ele casara com a filha da rainha  dos Bijagós e vivia agora  em Catió. O filho,  que diziam ter morrido, andara com os terroristas, o Chiquinho. (...).

(...) Como, 17 de fevereiro de 1964

A missão,  naquela manhãm  era destruir o poço que fovava na tabanca junto ao caminho que já tinha uma história de lutas encarniçadas.

Saímos cedo para criar surpresa. Passámos calmamente por detrás da casa do Brandão, onde já estavam instalados os morteiros para possível apoio (...).

(Continua)

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos: LG)
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Notas do editor:

 (*)  Vd. postes de:


16 de dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - P356: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): II Parte (Mário Dias)

sexta-feira, 16 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25846: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (30): Inspeção militar: "Ir às sortes", em Marvão (nota de leitura de artigo de Jorge de Oliveira, CHAIA / Universidade de Évora)


Fita de apurado (1980).
Fonte: Jorge de Oliveira
(2021)
(com a devida vénia...)

Jorge de Oliveira (CHAIA / Universidade de Évora) "Ir às Sortes" nas freguesias de Santo António das Areias e Beirã.Revista "Ibn Maruan", nº especial de 2021, pp. 447-Câmara Municipal de Marvão / Edições Colibri



1, Jorge de Oliveira, professor  e investigador (Centro de História da Arte e Investigação Artística /Universidade de Évora) publicou na revista "Ibn Maruan", um interessante artigo sobre a ida  às sortes nas freguesias de Santo António das Areias e Beirão, do concelho de Marvão, distrito de Portalegre (tinha 7,5 mil habitantes em 1960, 5, 4 mil em 1970... e hoje, pouco mais de 3 mil).

Segundo ele, "ir às sortes" seria uma expressão relativamente recente, remontando ao período do pós-I Guerra Mundial.  

 "Ir às sortes",  no tempo do Serviço Militar Obrigatório (SMO),  era ser submetido à Inspecção Militar  no ano em que um "mancebo" (ou seja, um "aprendiz de homem"...) completava os 20 anos.

 (...) "Poderemos com alguma certeza afirmar que a expressão 'ir às sortes' teve origem no período de paz, pós primeira Guerra Mundial. A obrigatoriedade de ir à inspecção militar passou por diferentes formatos ao longo do tempo" (...)

É óbvio que, em tempo de paz, o exército não precisava de muitos "magalas", podia dispensar a "carne para canhão"... apenas os mais 'listos' (espertos, vivaços) eram recrutados, depois de "dados como aptos para prestarem serviço militar".

O que é que fazia a "junta" que presidia à inspeção militar ?

(...) "Do grupo dos restantes, o sargento, o médico e o soldado (sic) que faziam a inspecção 'sorteavam', mais dois ou três mancebos, para substituição de algum dos que anteriormente tinham sido dados como aptos,  não comparecesse",  por qualquer razão (...)

Esta seria a explicação para a  expressão "ir às sortes", sinónimo de inspeção militar em tempo de paz... E tinha implicações simbólicas e práticas na vida dos mais jovens, sobretudo entre a população rural:

(...) "Em época de paz, nos contextos mais rurais e economicamente menos favorecidos, onde o analfabetismo atingia grandes proporções, o ser dado como apto e ser chamado para a tropa era uma forma de provável fuga, pelo menos durante algum tempo, ao pesado trabalho do campo e ter garantida uma mesa guarnecida, ainda que muito repetitiva". 

E mais: "Sair do campo e ir parar a um qualquer quartel, que se situava sempre em contexto urbano era, logo à partida, uma nova experiência que lhe ficaria gravada para toda a vida. Fosse a recruta mais ou menos pesada nunca se igualava ao peso da enxada, desde o nascer ao por do sol, dia atrás de dia. Alguns aproveitavam para aprender algumas letras e até a carta de condução conseguiam tirar." (...)


2. E quanto ao significado das cores das fitas que os "mancebos" usavam nesse dia, uma vez finda a inspeção ?

 (..,) "Três diferentes cores podiam ter as fitas que, após 'as sortes',  podiam vir atadas ao braço, ou na lapela do casaco e que assinalavam a situação em que o mancebo tinha sido colocado, ou sorteado, como também se dizia."(...)

 A verde significa  "apto para todo o serviço", a vermelha, "inapto" e "a amarela (muito rara)" era para os que, por qualquer motivo ( saúde, peso,.  etc. ),  "ficavam a aguardar nova chamada." (...)

Ao que parece as cores das fitas e o seu significado não eram uniformes, dependendo da época e da região do país.

(...) "Por exemplo, houve alturas em que as cores se inverteram, fita vermelha que ostentavam na lapela em sinal de terem sido 'apurados para todo o serviço militar' , branca se ficavam livres do cumprimento do serviço militar, e verde, se ficavam em espera,
tendo de repetir a inspeção no ano seguinte" (...)


As cores podiam variar de DRM para DRM 
 (Distrito de Recrutamento Militar), sendo vendidas pelos "prontos" que acompanhavam as juntas...

O processo de "ir às sortes" seguia vários trâmites, que o autor descreve com alguma pormenor:

(i) a lista de mancebos desse ano era exposta no edifício da câmara e nas respectivas juntas de freguesia;

(ii) nela se indicava a data, a horaq e o local da inspeção;

(iii) por norma, a data coincidia com o fim da primavera ou princípios do verão, ppor razóes de conveniência da tropa e dos mancebos.

Uma vez fixada e conhecida a lista de convocatória, com o nome dos mancebos,  começavam, em cada terra, os preparativos para a celebração desse dia que representava um verdadeiro "rito ou ritual de passagem (à vida adulta)"

Elegia-se uma comissão, a nível de concelho ou freguesia, para organizar os festejos. 

 No caso de Marvão (que era um concelho pequeno e raiano) aparecia sempre na lista rapaziada que já ninguém conhecia, por, embora  lá tendo nascidol, haverem saído cedo, em geral com os pais, para outras paragens.


3. Na década de sessenta, com o início da guerra colonial, o "ir às sortes" deixou de ter o significado que tinha em tempo de paz. Quase toda a gente era apurada...

(...) "Os que tinham 'conhecimentos' tentavam, por todos os meios, com a antecedência necessária, meter uma 'cunha' para se conseguir safar" (...). 

E foi nessa época que alguns mitos se difundiram, de resto conhecidos de todos nós... O autor cita alguns;

(i) "uns diziam que, oferecendo-se anteriormente como voluntários, tinham menos probabilidades de ir para à frente de combate", o que não era verdade;

(ii)  "alguns mancebos tentavam esconder as suas qualificações académicas para virem a ser incorporados como soldados", baseados na crença de que entre os graduados (alferes e furriéis) era maior a mortalidade em combate;

(iii)  também se dizia que o exército era homofóbico, pelo que "os homossexuais eram, imediatamente, dispensados".  

E havia outras artimanhas, como acontecia noutros períodos da nossa história, em que o país esteve em guerra;
 
(iv) "Alguns, contava-se, que se deitavam junto à linha de caminho-de-ferro, lá para os lados da Herdade dos Pombais e quando o comboio ia passar metiam o indicador direito sobre a linha para amputar o dedo do gatilho" ( o indicador da mão direita, em geral); 

(v)  "Outros, intencionalmente, com qualquer instrumento cortante amputavam esse dedo"...

 (vi)  Outros, ainda,  que tinham médicos amigos ou conhecidos ou dinheiro para os pagar, arranjavam atestados de doenças falsas ou imaginárias, "que algumas vezes convenciam de imediato o médico de serviço à inspecção  e outras vezes convocava-os para uma Junta Médica Militar, à qual, por norma, não escapavam";

(vii) "Havia também aqueles que invocavam um artigo qualquer da legislação que dispensava da tropa os que, por motivo de serem o único sustento para a família, ficavam livres de prestar serviço militar";

(viii) "Relatos havia de mancebos selecionados que pagavam a outros, já regressados da tropa, para os substituírem no Serviço Militar";

(ix)  "Por fim, para aqueles que tinham condições e apoios para isso, havia sempre a possibilidade de se escaparem para outro País e não comparecerem 'às sortes' ou à 'incorporação' "...

Acrescenta o Jorge de Oliveira:

(...) "Sabemos que um dos trajectos de fuga passava exatamente por caminhos fronteiriços do concelho de Marvão, sendo a passagem pelo Batão, ou pela Fontanheira os locais mais assinalados."

4. Houve, entretanto,  uma altura em que a inspeção dos mancebos de Marvão passou a ser efectuada fora do concelho. Neste caso, "um dos mancebos, por norma aquele que tinha mais habilitações literárias,  era chamado à câmara a quem o secretário entregava os salvo-condutos de todos os mancebos e outra papelada para, de comboio, chegarem ao DRM assinalado" (em geral Abrantes ou Coimbra). 

(...) "Por norma viagem era realizada na véspera e à chegada ao destino cada um desenrascava-se para encontrar local de pernoita e no dia e hora marcada estarem todos à porta do quartel. 

"Mas a partida para a inspecção era antecedida, obrigatoriamente, de um clássico ritual de passagem e purificação. Um banho purificador nas águas do Rio Sever, com todos os mancebos, tal como vieram ao mundo, aquecidos por dentro com o conteúdo do
palhinhas a que se seguia uma forte almoçarada com aquilo que cada um trazia na
mochila. Um tocador de concertina, a quem se pagava, e uma camioneta mais ou
menos alugada e lá ia a rapaziada toda, alegremente, a caminho do Batão, ou da Ti
Maria Jacinta, locais mais apreciados para estas festanças. " (...)

Para alguns mancebos de Marvão era o primeiro banho integral que tomavam na vida!

Mas vamos agora à inspeçáo militar p. d., que se realizava no dia seguinte, num quartel (Coimbra ou Abrantes):

(...) "Primeiro, conferir as identidades, depois a avaliação física. Depois de totalmente desnudados e postos em fila ia-se aguardando a vez de serem inspeccionados pelo médico. De vez em quando, algum da fila empurrava com força o da frente fazendo com que todos batessem com o pénis nas nádegas doque lhe seguia à frente. De imediato se ouvia, o que seria natural ouvir por parte dos soldados que por ali estavam, cada um de uma tropa especial, tentando captar voluntários para alguma das suas especialidades: "cambada de paneleiros!".

"O médico lá perguntava se tinha alguma doença, mandava o mancebo rodar 180º, via-lhe as unhas dos pés e,  se não fosse cocho, e não lhe faltasse nenhum membro, da parte dele estava apto para todo o serviço. 

"Venha o seguinte, e assim por diante.

"Depois seguiam-se os chamados 'testes psicotécnicos', diferentes para cada um dos grupos, separados logo ao início. A primeira pergunta para o grupo maior era, invariavelmente, se sabia ler e escrever e depois seguiam-se umas perguntas retóricas, orais, para avaliar as capacidades cognitivas dos mancebos. Aí é que alguns eram logo mandados afastar da fila. 

"Seguiam-se os testes de destreza manual e capacidade visual. Não convinha esforçar-se muito nestas provas, porque poderia ir parar a atirador especial e em tempo de guerra, não era nada conveniente. 

"Também não resultava de nada a estratégia, que alguns praticavam, de errar tudo e não dizer coisa com coisa, para ver se eram colocados de lado. Os sargentos que acompanhavam os mancebos já conheciam todo o tipo de música e de nada valia fazerem-se de malucos. 

"O resultado das inspecções ainda era noticiado antes do almoço, maioritariamente, no tempo da Guerra Colonial, até os que tinham amputado o indicador direito ficavam apurados para todo o serviço, o outro dedo também servia para puxar o gatilho das G3, ou o das velhinhas Mauser." (...)

A tropa dava o almoço...e no fim o oficial de dia entregava a cada mancebo um papel onde constava o resultad9o da inspeçáo (apto ou não apto)  e ," ao que tinha trazido os documentos entregues pela Câmara, um envelope fechado para devolver ao secretário do município".

Toda a papelada em ordem, um novo salvo-conduto era entregue para  o regresso a Marvão, de comboio... 

 Os pormenores do regresso a casa  têm, inegalvelmente interesse etnográfico ou documental;

(...) "Como combinado, o tocador de concertina, já aguardava a chegada do grupo. Agora era altura de começar a correr todas as tascas por onde se ia passando e, em tempo, quase porta sim, porta não, havia uma taberna no concelho de Marvão. As pandeiretas, nas mãos da rapaziada, tentavam acertar o compasso com o som que da concertina saía e lá se ia provando o tinto ou o branco de cada taberna da Beirã.

"Como o baile estava combinado para a Sociedade de Santo António das Areias, havia que transportar o grupo até à outra aldeia. A camioneta de caixa de carga que os havia levado ao banho purificador no Rio Sever, volta a ser contratada para o trajecto de retorno à aldeia. 

"Contudo, havia que parar em todas as tabernas que pelo caminho existissem. Nos Barretos e na Ranginha a paragem era obrigatória, por aí havia onde molhar a garganta. À entrada de Santo António a rapaziada saltava da camioneta e aí juntavam-se ao grupo os convidados dos mancebos. Com a concertina à frente o grupo fazia o esforço de peregrinar por todas as tascas para provar a especialidade de cada uma. 

"Estranhamente, do grupo, desapareciam os que tinham recebido fita de inapto. Essa fita representava o sinal de incapacidade física ou mental e nenhum dos contemplados com esse 'estigma' queria expor-se à comunidade, embora, no tempo da Guerra do Ultramar, fosse invejada pela maioria" (...)

Conforme o número de mancebos apurados, em cada ano, assim era o local da janta.

(...)  Anos havia em que uma cozinheira era contratada para fazer o jantar e rapidamente se montava na  Sociedade uma sala para aí se apreciar o petisco e continuar a matar a sede. Se o grupo era mais pequeno, então o frango assado previamente acertado com o Ti Saul servia perfeitamente e o vinho que ele produzia combinava porque até não era nada mau!" (...)

5. Seguia-se depois o tão ansiado "Baile das Sortes"...

(...)  A organização desse baile era da total responsabilidade do grupo das Sortes que pagaria ao tocador de concertina, ou nalgumas ocasiões, a um 'conjunto musical', geralmente o que nessa altura estava constituído com gente da aldeia (famílias Lança, Mota e Gavancha e eventualmente mais algum membro).

"Por volta das 10h30m, praticamente toda a aldeia, sobretudo as moças casamenteiras, sempre acompanhadas pelas mães, começavam a encaminhar-se para a Sociedade e a ocupar preventivamente, os lugares mais visíveis. 

"Por norma, à volta do salão de baile, pelo menos duas filas de cadeiras ou bancos eram organizados. Na primeira fila, as moçoilas casamenteiras, respaldadas na retaguarda pelas vigilantes mães, disfarçadamente, tentavam descuidar-se um pouco com a saia que deixava adivinhar qualquer coisa dois dedos acima do joelho. 

"Com os vestidos de cores quentes a condizer com a ocasião, o salão começava a compor-se de cabeleiras acabadas de sair do secador e com os diversos aromas emanados dos perfumes que cada jovem tinha comprado numa das lojas de Valência de Alcântara." (...)

Num ambiente em que o álcool tinha um efeito desinibidor, à rapaziada que exibia a fita de apurado nas sortes tinha, naturalmente, o privilégio de abrir o baile. Os primeriso passos de dança eram dessa rapaziada, embora o baile fosse aberto a toda gente da terra.
 
O "protoloco do baile" não era muito diferente do de outras terras por esse país fora, naquele tempo:

(...) "Alguns, que já tinham namoradas, iam directamente buscá-las, com a devida licença de suas mães. Outros, que par fixo ainda não tinham, lá se iam afoitando às moças mais vistosas da sala, com o já gasto 'a menina dança?', certos de que nessa noite aos rapazes das sortes 'tampa' não se dava. "

Vale a pena continua a citar a descrição bastante colorida e vida do "baile das sortes":

(...) "E o bailarico lá começava. O cheiro a perfume espanhol que as raparigas transportavam, começava a misturar-se com os odores a álcool que cada mancebo consigo trazia, mas que o som da música e a alegria geral tudo abafava. 

"De quando em vez ouviase, o já costumeiro, 'bota cá licença', e trocava-se de par. A sala enchia-se de cores que rodopiavam ao som da música. Menos vezes do que os espectáveis, lá tocavam os tão desejados 'slows'. O rodopio dava lugar a curtos e apertados passos de dança e o salão parecia crescer. O centro do espaço apertava-se e cada um chegava-se ao
máximo ao seu par. 

"Quando algum par aquecia um pouco mais via-se entrar em cena o Ti Garlito, funcionário da Sociedade, com a caninha na mão que com ela tocava no ombro do rapaz e com voz, de quem autoridade para isso tinha, dizia, 'vamos lá a afastar um pouco'. 

"O par, algo atabalhoadamente, afastava-se um pouco. A rapariga espreitava para a cara da mãe que lhe fazia sinal de quem, depois lá em casa, alguma coisa teria para dizer". (...)

Era também uma excelente ocasião para se arranjar madrinhas de guerra e namoradas:

(...)  "Muitas 'Madrinhas de Guerra' se arranjavam nessa noite inesquecível, muitos namoros começavam e promessas de casamento após o regresso da tropa ficavam aprazados.
 

6, Mas tudo tem um fim...  Em 1999, é decretado  o fim do Serviço Militar Obrigatório (com efeito a partir de 2004)... Cria-se, em alternativa às "sortes" o Dia da Defesa Nacional. Desta vez, portugueses e portugueses que em cada ano perfazem 18 anos,  passam um dia num quartel, para terem um "cheirinho" do que é a tropa... 

É também a ocasião para o Exército recrutar voluntários, nomeadamente para as tropas especiais.

E arremata o autor: 

" Diga-se, em abono da verdade, que este aliciamento, até agora, não tem surtido o efeito desejado, porque dizem os que por lá andam que qualquer dia são mais os generais que os soldados."

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Nota do editor:

Último poste da série > 10 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25829: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (29): Inspeção militar: "Ir às sortes", em Brunhoso, Mogadouro, 1967 (Francisco Baptista, ex-alf mil inf, CCAÇ 2616 / BCAÇ 2892, Buba, 1970/71, e CART 2732, Mansabá, 1971/72)

domingo, 9 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25622: Humor de caserna (64): O anedotário da Spinolândia (XII): o "caco" que foi parar ao caldeirão da cozinha de Guileje...



1. Esta história deliciosa, a do "caco", o monóculo  (que não era graduado, mas sim um simples "ronco")  do "homem grande" de Bissau, caído no caldeirão da cozinha de Guileje, já a conhecia do meu tempo, circulava na 5ª Rep, o Café Bento, quando passei por Bissau,  "periquito"  desembarcado do "Niassa" em 29 de maio de 1969 e logo metido em LDG até ao Xime em 2 de junho...

Anedota ou não, é contada no livro de memórias "O Silvo da Granada", do José Maria Martins da Costa, ex-1º cabo trms, do Pel Caç Nat 51 (Guileje e Cufar, maio de 1968/ julho de 1970). A edição da edição da Chiado Books, 2021, meio milhar de páginas (!).

Sobre o livro o nosso crítico literário, Mário Beja Santos, chamou-lhe "uma invulgaridade da literatura da Guerra da Guiné" , nas quatro notas de leitura que entusiástica e generosamente lhe dedicou (Postes P23121, p23131, p23139 e p23156).

Sabemos pouco sobre o autor, a não ser o que ele nos diz, na sua apresentação:

(i) natural de Roriz, concelho de Santo Tirso, frequentou a escola primária, finda a qual entrou num seminário beneditino;

(ii) saiu no sétimo ano, provavelmente incompleto; 

(iii) foi chamado para a tropa, passou por Tavira e Lisboa,  e  foi mobilizado para a Guiné;

 (iv) no regresso à vida civil,  deve ter tirado "o curso de Filosofia na Universidade do Porto, e ainda o de Latim, Grego e Português, e respetivas literaturas, na Universidade de Coimbra" (Beja Santos interpretou mal; se ele tuvesse o 7º ano ou equivalente, ou fosse licenciado, teria ido frequentar o COM - Curso de Oficiais Milicianos);


Capa do livro, "O Silva
da Granada", de José Maria
Martins Costa, Lisboa,
Chiado Books, 2021. Gostaríamos
de ver o autor, nosso antigo
camarada de armas, a integrar 
 a Tabanca Grande.



(v) entretanto, fixara-se no Porto, onde casou, foi professor e jornalista...
 
Muito poucas são as referèncias existentes na Net a este homem e nosso camarada de arnas. De acordo com as notas do Beja Santos, nunca se chega  
a esclarecer, no livro, as razões por que o autor, tendo frequentado o CSM (Curso de Sargentos Milicianos), em Tavira, acabou por ir para a Guiné como 1º cabo  de transmissões, especialidade que tirou em Lisboa (certamente no quartel da Graça).   

Terá havido aqui, pelo meio, no CISMI, problemas disciplinares,  que explicam a  sua passagem compulsiva ao contingente geral.

Sabemos, isso, sim, é que chegou à Guiné em maio de 1968 ( tendo regressou à metrópole em julho de 1970), ou seja,  na mesma altura em que o brigadeiro António Spínola toma posse como governador e comandante-chefe. 

Foi colocado, em rendição individual, no Pel Caç Nat 51 (Guileje e Cufar, 1968/70).

No livro há apontamentos que são relevantes para a história do Pel Caç Nat 51, do tempo do alf mil Armindo Batata (ligeiramente mais novo, 1969/70),  e que iremos
  resumir, mais tarde. 

Para já, retivemos duas referências a Spínola, a partir dos excertos selecionados pelo Beja Santos (e que vão em negrito e itálico):

(...) Primeiro-cabo Martins já viajou para Guileje, está na fase adaptação, somos levados a supor que este homem que está profundamente impregnado pela cultura clássica, que domina o Latim e alguns dos mais cultores da língua portuguesa,  trabalha nas Transmissões. 

De supetão, arribaram três helicópteros, de um deles saiu Spínola, já percorreu o quartel, conversou com os oficiais e decidiu visitar a cozinha:

“Spínola em corpo e alma e rompeu pela cozinha sem aviso, deixando atónitos, presos aos seus lugares, cozinheiros e forneiro; e, depois das saudações e palavra de circunstância e de circunvagar um olhar indagador como a inspecionar as condições de trabalho e de higiene, avança para os fogões, mete o nariz em tachos e panelas. Eis senão quando – caso nunca visto – cai-lhe o monóculo ao panelão, onde, vaporando fortemente, fervia a cachão o feijão frade. Valeu que à ilharga, atento e venerador, estava o cabo-cozinheiro, que, ato contínuo, introduzindo por entre densos vapores a desembaraçada manápula acostumada a queimaduras e escaldões, retira incólume a luneta”.

Esta cena deve-se ter passado em meados de 1968 (talvez mesmo  logo em 26 de maio de 1968, data da primeira visita a Gandembel), porque, após a rápida passagem por  Guileje,  Spínola partiu  para aquela  aquartelamento que estava em construção há mês e meio.

Uma segunda "cena", que merece registo na nossa série "Humor de caserna", é a de uma outra visita de Spínola a Guileje, um ano depois, em meados de 1969, ao tempo da CART 2410, "Os Dráculas":

(...) E assim se chegou a abril e depois a maio 
[de 1969] , sucedem-se as flagelações, a população continua tranquilamente a sua vida monótona, não deixando de ir cultivas o seu arroz de subsistência, ao amanhecer as viaturas carregadas de bidões vão direito ao poço aberto na brenha, a uns 2 km, operação que requer severa vigilância. Spínola volta a Guileje, assim se descreve o seu regresso:

“Negros como abutres, descrevendo círculos por largo, bem à vista o cano
 saliente do canhão de bordo, os três passarões assenhoreiam-se destes ares; metem respeito e não admira que os guerrilheiros mais que tudo os temam. E, enquanto dois deles vão dando voltas, agora mais fechadas, sobre Guileje, o outro ensaia a operação delicada de vir a terra; um instante imobilizado, roda agora a ganhar posição, inclina um tudo-nada o focinho, cautamente sondando o espaço em baixo onde pousar. E já vai descendo, em volto grossos rolos de pó que revoluteiam furiosamente no ar agitado do voltear estonteante da hélice. O monstro impõe a sua presença aparatosa. Ei-lo em repouso no chão espanado pela ventaneira”.

 

O comandante de Companhia não gostou da discriminação, Spínola passou por meio da pequena multidão e deu de caras com um furriel do  [Pel Caç Nat] 67, cumprimentos efusivos.

“O nome, de todo incomum, ou talvez sobrenome, é o mesmo de uma família da alta roda lisboeta ligada à banca. Coincidência ou não, o certo é que ainda não passaram quinze dias e já o furriel foi de abalada, transferido para zona menos descoberta aos golpes da implacável guerrilha.” (...)

2. Há quem, acrítico e sisudo, não goste de ver as figuras da nossa História (e o marechal Spínola já lá está, na História com H Grande, independentemente dos nossos juízos pessoais, efémeros e transitóriso) serem objeto de anedotas ou caricaturas...  

Achamos, pelo contrário, que é quase sempre um sinal de apreço e até de homenagem: no caso de Spínola, por exemplo, enquanto governador e comandante -chefe do CTIG (1968-1973) não conhecemos anedotas sobre o seu antecessor (gen Armaldo Schulz) ou o seu sucessor (gen Bettencourt Rodrigues). E para mais andeotas que persistem na memória dos antigos combatntes,  mesmo meio século depois.

Fica aqui a nossa declaração de interesses.

(Seleção, revisão / fixação o de texto, negritos e itálicos: LG) (Com a devida vénia ao autor e ao seu crítico literário)

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Nota do editor:

Último poste da sérier > 7 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25613: Humor de caserna (63): Em 1971, por uns bons 250 contos (equivalente, a preços de hoje, a mais 75 mil euros), um 1º cabo miliciano arranjava um subsituto para ir para o ultramar

Vd. também poste de 20 de maio de 2024 > Guiné 61/74 - P25584: Humor de caserna (60): O anedotário da Spinolândia (XI): "Continua, meu rapaz, salvas-te tu para que este batalhão não seja a merda mais completa" (Um anedota contada pelo saudoso Rui A. Ferreira,1943-2022)

terça-feira, 21 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25546: Viagem a Timor-Leste: maio/julho de 2016 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte II - A caminho das montanhas



Timor Leste > Com c. 15 mil km2, e mais de 1,3 milhões de habitantes, ocupa a parte oriental da ilha de Timor, mais o enclave de Oecusse e a ilha de  Ataúro. Antiga colónia portuguesa, tornou-se independente desde 2002, depois de ter sido  invadida e ocupada pela Indonésia durante 24 nos, desde finais de 1975.   Liquiçá (em tétum,  Likisá) é um município, visível neste mapa, com a capital na  cidade do mesmo nome, a 32 km a oeste de Díli, a capital do país. A cidade de Liquiçá tem 19 mil habitantes. Nas montanhas fica Manati / Boebau, onde a ASTIL construiu uma escola para crianças do pré-escolar e 1º ciclo.

Infografia : Wikipédia > Timor-Leste |  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné 





Lourinhã > Praia da Areia Branca > 2 de dezembro de 2017 > Por ocasião de um almoço de um grupo de amigos de Timor-Leste, no restaurante Foz: em primeiro plano, Rui Chamusco e Gaspar Sobral, cofundadores e líderes da ASTIL.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2017). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da publicação das crónicas do Rui Chamusco, relativamente à sua primeira viagem e estadia de dois meses em Timor-Leste (partiu  de Lisboa a 5 de maio de 2016 e deixou Dili em 7 de julho, de volta a casa) (*). 

O Rui Chamusco, nosso tabanqueiro nº 886, é professor de música, do ensino secundário, reformado, natural do Sabugal, a viver na Lourinhã. Tem-se dedicado de alma e coração a um projeto de solidariedade no longínquo território de Timor-Leste (a 3 dias de viagem, por avião). É cofundador e líder da ASTIL - Associação dos Amigos Solidários com Timor-Leste.

 A ASTIL irá construir e inaugurar, em março de 2018,  a Escola de São Francisco de Assis (ESFA), nas montanhas de Liquiçá (pré-escolar e 1º ciclo). 

A primeira viagem do Rui a Timor Leste, em maio de 2016, é exploratória mas é nessa altura que ficará decidido construir-se uma escola nas montanhas de Liquiçá, em Manati / Boebau. Nesta viagem (e estadia de dois meses) , fez-se acompanhar do luso-timorense Gaspar Sobral, outro histórico da ASTIL, que há 38 anos não visitava a sua terra natal.  Em Dili eles vão ficar na casa do Eustáquio, irmão (mais novo) do Gaspar Sobral.

Dessas crónicas de 2016,  sob a forma de diário, decidimos publicar a maior parte dos apontamentos,  dado o interesse documental que nos parece ter  para os nossos leitores que, como nós,  ainda sabem pouco da história e da cultura dos nossos amigos e irmãos timorenses.



Viagem a Timor: maio/julho de 2016 - Parte II:  a caminho das montanhas

por Rui Chamusco


(Continuação)

 Dia 14 de maio de 2016, sábado  – Dia de muitas emoções

Já estava previamente combinado. O Gaspar, aproveitando a sua estadia em Timor, quis reunir todo a família. É que ele atualmente é o irmão mais velho dos 5 ainda vivos. E como a irmã mais nova, a Benedeta, fez 52 anos há dias,  aproveitaram a ocasião para celebrar os dois acontecimentos. 

Agora imaginem a agitação e o reboliço quando todos estavam presentes: bebés, crianças, jovens, adultos, netos, tios, primos, cunhados, sogros – uma panóplia de parentescos capaz de embaralhar qualquer um. 

E no meio de tudo isto o malae (que sou eu) tentando adaptar-se a esta grande família dos Sobral que, segundo se crê, é a única existente em todo o território timorense. Tarde e noite muito animada pelos cumprimentos efusivos que a toda a hora aconteciam, e também, por que não, pelo som e as canções das crianças acompanhadas por mim no acordeão. 

À noite cantaram-se os parabéns à Bene que nos deliciou com o saboroso bolo de anos. Depois foi a ceia para mais de 50 pessoas. 

Para terminar o Gaspar fez o grande (fala que se farta) discurso da praxe – um momento emocionante que algumas vezes o levaram às lágrimas. Segundo entendi, tratava-se de um apelo à unidade da família, tentado justificar alguns desentendimentos havidos, apelando ao perdão e à união da família Sobral.

“Se Maomé não vai à montanha, vai a montanha a Maomé”

De manhã, mais uma viagem em mota para mandar fazer as fardas para a Adobe. Saltando poças e charcos porque tinha chovido muito no dia anterior, lá fomos rumo a Dili a caminho do alfaiate. Mesmo junto à berma da estrada, numa barraca das habituais, ali estava o artista rodeado de trapalhadas (farrapos, cadernos de apontamentos, fita métrica, máquinas de costura e outras coisas mais). Feito o negócio, vai de tirar as medidas certas à garota para que daqui a oito dias se possam vir levantar.

Mais uma pequena viagem e outra paragem para comprar sapatos e meias e algum material escolar. Loja chinesa. com certeza.

Depois foi a grande surpresa: visita ao David, um timorense que eu apoiei nos seus tempos de estudante em Coimbra e que eu só conhecia de voz por telefone. 

Também ele ficou surpreendido pois nunca pensou ser visitado na sua casa por alguém que ele sempre desejou conhecer. Várias vezes marcamos encontro em Portugal mas nunca se concretizou. Momentos agradáveis com a presença de bastantes familiares que iam chegando. 

Hoje o David trabalha com a primeira dama, mulher do primeiro ministro. E, claro, disponibilizou-se logo para o que for preciso, com vontade de que a gente se encontre em Dili.

Chegando a casa e já arrumadas as compras decidimos telefonar a D. Basílio, bispo de Baucau. Outra grande surpresa, sobretudo para ele, pois nunca teria pensado que o Rui estivesse em Timor. Basílio e eu fomos colegas de trabalho durante dois anos, na equipa de pastoral da comunidade emigrante de Gentilly nos arredores de Paris. Há 34 anos que não nos vemos. Está combinado um encontro nos próximos dias, em Dili. Espero dar- lhe aquele abraço que em tempos nos unia e fortificava. “Bien sûr”!...

Dia 15  de maio de 2016, domingo – A visita do Felisberto Oliveira da Silva

Hoje, domingo, tivemos a visita do vizinho Felisberto. Já falei deste senhor como figura e personalidade invulgar, a fazer lembrar o sábio filósofo que, de livros nos côvados dos braços, passeia a sua interpretação da vida, falando com convicção das suas experiências de vida e das sua ideias e pensamentos sobre os mais diversos temas.

Homem inteligente, com sentido crítico acentuado que Deus lhe concedeu e com acontecimentos ricos de significado. Eu e o Gaspar parecíamos dois alunos ávidos do seu saber. Durante uns bons minutos deu-nos a conhecer pontos essenciais da vida atual, sempre documentado por capítulos e versículos da Bíblia que sabia de cor. 

Fala razoavelmente o português porque fez parte durante três anos da unidade policial portuguesa que serviu em Timor; fez um curso intensivo de formação para ser professor, profissão que também exerceu; foi comandante das tropas da resistência; foi prisioneiro dos indonésios e agora, segundo testemunhas, passa o tempo lendo muito, escrevendo e partilhando as suas ideias. Já tenho o seu aval para quando quiser lhe telefonar ou o visitar. Parece que frequentemente é visitado para ser entrevistado. A sua coerência é muito apreciada. Das suas ideias não abdica seja perante quem for, mesmo em face dos indonésios.

Uma grande lição de vida!...

Dia 16 de maio de 2016, segunda feira – Ida à embaixada e outros sítios

Mais uma vez de táxi, a caminho da embaixada de Portugal porque o Gaspar não descansa enquanto os nossos nomes não forem lá registados. Não vá o diabo tecê-las, vale mais prevenir que remediar. À chegada ao edifício deparamo-nos com um grande grupo de timorenses que procuram obter o cartão de cidadão português, a fim de puderem entrar na Europa, Portugal e Inglaterra sobretudo, para estudar ou trabalhar.

Pois é! Aqui em Timor Portugal ainda tem algum significado. Falar português confere estatuto de gente importante que dá acesso a portas e caminhos por que muitos anseiam.

Um grande desejo é de ir estudar para Portugal. Gente que vem das universidades portuguesas tem quase garantido um bom emprego.

Na embaixada, lugar esquisito pois pouco conforto apresenta, pouca atenção nos deram: simplesmente o número de telefone da embaixada e o e-mail, aconselhando-nos a fazer o registo por correio eletrónico.

Depois fomos ao Páteo, beber um café dos nossos e fazer algumas compras, algumas bem portuguesas como o garrafão de vinho Castelões e latas de sardinhas Ramirez.

Longe da pátria, tudo sabe bem, nem que seja uma côdea de pão para matar saudades.

Telefonema para Austrália

Mais outra surpresa. Quando saí de Malcata,  prometi à família que, aproveitando a vinda a Timor, iria visitar o primo Quim, a residir na Austrália. Hoje foi o dia escolhido para lhe telefonar. Com sucesso, pois fui atendido de imediato. Conversámos de algumas coisas e ficou combinado de que, antes de regressar a Portugal, lhe iria fazer uma visita. Ficou com o meu contato para poder-me telefonar.

Já não vejo o primo Quim há mais de 30 anos, pelo que o nosso encontro vai ser com certeza emocionante, a lembrar os nossos tempos de infância,  os lugares de Malcata, as pessoas que já partiram e as que ainda vivem. Espero ansiosamente pelo encontro…

As influências e as cunhas

Ontem esteve connosco uma jovem de Luiquiçá, parente da família Sobral, que há três anos terminou o ensino secundário com a média de 19 valores. Não conseguiu entrar na universidade porque não tinha lá dentro ninguém da família. Segundo as más línguas, é assim que aqui funciona o acesso ao ensino superior. É muito difícil entrar lá dentro, sem alguém de referência.

É pena que assim seja pois há por aqui muito talento perdido. Normalmente quem vai estudar para Portugal, Indonésia ou outros países são filhos de ministros, de presidentes; muitos sem preparação intelectual para poderem progredir nos seus estudos. 

Daí que muitos voltam para Timor sem nada feito ao fim de alguns anos, para ocupar cargos públicos para os quais não estão bem preparados. Dizem os críticos que isto mais tarde ou mais cedo vai dar buraco pois a incompetência de muitos funcionários públicos é bem evidente

Aqui como noutros lados do mundo desaproveitam-se os dotados, os capazes, os inteligentes para dar lugar à banalidade, às cunhas, às influências. Ai Timor, Timor! Muito caminho te espera… Desejo-te todo o bem do mundo.

Noite 17 de maio de 2016, terça feira – Uma noite no hospital

Outra experiência diferente. Ontem a Adobe quando regressou a casa vinda da escola manifestava alguma tristeza provocada com certeza pelas dores. Estava com febre e pedia aconchego da mãe e do pai. Metade do comprimido para a febre deixou-a arrebitada mas, por volta das 1.30 da manhã, começo a ouvir o seu choro e as vozes do pai e da mãe que tentavam desesperadamente consolá-la. Levantei-me à pressa e quando apareci em cena já estavam com ela ao colo para a levarem ao hospital. Claro que me dispus logo a ir também. Assistida prontamente por quem estava de serviço, com boa observação médica que lhe administrou os respetivos remédios. Esteve em observação e tratamento até às 6.00h da manhã, hora do regresso a casa.

Pois é, nem sempre a vida é cor de rosa. Quantas vezes, para sermos solidários, temos de passar noites em branco. Quantas vezes temos de carregar as dores dos outros… Já alguém fez isso por nós, portanto não há nada de heroico nesta ação. Fica-nos a satisfação de um dever cumprido, de uma obra de misericórdia aplicada. (...)


Dia 18  de maio de 2016, quarta feira - Afinal, os bispos também mentem. Que Deus lhes perdoe!....

Hoje é o dia combinado para o encontro com o D. Basílio, por proposta sua, Ficou de ligar para dizer a hora mais conveniente. Se quem espera desespera, bem desesperado fiquei pois durante o dia todo não houve qualquer contato da sua parte. O encontro foi para as urtigas. Não sei se ainda o vou encontrar, mas se for caso, vai ter que me ouvir.

É assim que se respeitam os amigos? Afinal os bispos também mentem. Que Deus lhes perdoe!...


Dia 19 de maio de 2016, quinta feira  - Mais histórias (acontecimentos reais ) que nos fazem pasmar

Logo de manhã cedo começamos a ouvir relatos que deviam constar no catálogo das obras de misericórdia. À minha frente estava Bartolomeu Pinto, um rapaz entre os trinta e quarenta anos, simpático e que canta e toca guitarra muito bem, mostrou-nos as cicatrizes do antebraço, braço e cabeça. 

Sem que ninguém o esperasse, este jovem foi atacado por um senhor à catanada, só por estar a mexer no presépio. Foi no dia 23 de Dezembro de 2007. Esteve dois dias em coma, depois foi recuperando progressivamente. As forças da ordem, que por acaso era a GNR, quiseram prender o agressor, tendo a vítima declarado que não queria que ele fosse para a prisão. Não tinha nada contra ele e que “se Deus lhe perdoa sempre por que é que ele não lhe devia perdoar.” 

Vejam esta nobreza de sentimentos, próprio do Ano da Misericórdia que este ano a Igreja celebra. Apesar de tudo, o ministério público acusou o réu que, em julgamento,  apanhou dois anos de prisão. Bartolomeu nada pode fazer para que o condenado tivesse de cumprir a pena. Mas quando saiu da prisão foi ter com ele para o abraçar. Grande Bartolomeu! Obrigado pela lição do perdão,,,

Mesmo em atalho de foice, outro exemplo de perdão. Não fixei o nome do herói, mas trata-se de um combatente da resistência a quem um invasor indonésio cortou a mão.

Quando se esperava um sentimento de vingança,  este senhor respondeu a quem o questionava: “se encontrar esse indonésio vou cumprimentá-lo e dar-lhe um aperto de mão. Que importa ter perdido a mão. Importante mesmo é a nossa independência”. 

Sem explicação humana. Este povo é mesmo assim: muito crente, capaz de lutar e de perdoar as ofensas, ( assim como nós perdoamos?...


Dia 20 de maio de 2016, sexta feira –  Dia da Restauração da Independência

Hoje é dia da restauração da independência. Mas não foi por isso com certeza que hoje o pessoal da casa foi à missa às 6.00h da manhã, menos eu e o Gaspar. Perguntei porquê a missa tão cedo e responderam-me que aqui sempre foi assim.

Fomos outra vez a Dili, para levantar as fardas de Escola da Adobe. Azar! Estava fechado, talvez por ser o dia da restauração da independência. Mas o alfaiate mandou-nos lá ir hoje. Não se lembrou ou mentiu. Em poucos dias já levei dois tampos (mentiras).

Aqui, à minha frente, está o Gaspar a discursar, sempre o mesmo discurso, sobre o estado das coisas em Timor. Fala com razão mas a forma de o dizer não é a mais própria. Quer caçar moscas com vinagre. Não sei se terá algum êxito. Não sei se se esquece do que já disse, mas o facto de se repetir vezes sem conta cansa que se farta o pessoal (os ouvintes). 

Os irmãos dizem-lhe que tenha cuidado com o que diz porque as paredes ouvem e a situação pede contenção. Parece que “as secretas” estão em ação e, quando assim é,  todo o cuidado é pouco. Eu cá para mim estou-me nas tintas. Vamos resolver os nossos assuntos, quanto antes melhor, por que me estou marimbando para as quezílias internas.

Amanhã vamos para a montanha, para Boibau. Muita apreensão pois para além da aventura há quem diga que é uma loucura. A distância é curta mas o caminho é terrível, cheio de buracos, subidas e descidas. A ver vamos!... Mas mais ou menos 3 horas de caminho temos de contar. 

Dia 21 de maio de 2016, sábado - A caminho da montanha

 Eram mais ou menos 14 horas quando o jipe do Anô ficou pronto para arrancar: 6 pessoas dentro, mais as trouxas que cada um decidiu levar. A emoldurar o momento estava o rancho de crianças, à volta de 15, que ajudavam a fazer a festa. Foi uma despedida repleta de alegria. 

Depois foi andar, andar, andar  por mares (caminhos) nunca antes navegados numa casca de noz a rebentar por tudo o que era sítio, sob um calor húmido e abafado, resistindo às contrariedades que a cada passo se nos deparavam. Uma verdadeira prova de resistência a qual nem todos aguentaram. 

Enquanto eu cantava de galo, sempre bem disposto e a causar surpresa aos timorenses da comitiva, o amigo Gaspar foi uma desgraça, incapaz de suportar o seu corpo e a sua mente até ao fim. Queixas, vómitos, má disposição – muito reles,  afinal. Para quem duvidava da minha forma física,  foi uma chapada na cara. Toma, Gaspar! Para as outras vezes não ponhas em causa as capacidades dos outros. Valeram-te as viagens de moto. Caso contrário nem sei como chegarias a Boebau.

A receção no casebre Sobral onde vive a família do Don José foi acolhedora, ainda que eu tenha sido mirado de alto abaixo por todos. Não sei se gerei desconfiança ou medo, particularmente às crianças. Embora muito recomendado pelos familiares do Gaspar, há sempre alguma reserva em face de um malae (estrangeiro), mesmo que chegue com boas intenções. 

Todos são informados, em grupo ou individualmente, que a nossa visita se deve a um projeto de solidariedade de construção de uma escola, e que viemos para falarmos sobre o assunto. No domingo, dia seguinte, visitamos os túmulos/jazigos dos avós paternos do Gaspar, que estão em fase final de recuperação. Momentos emotivos com todos os presentes. 

O sr. Sobral era a autoridade máxima da região, uma espécie de comandante de posto, com tudo o que necessitava para tal função (armas, símbolos de chefia…etc…) uma pessoa estimada e respeitada por todos. Eu próprio fui testemunha. Justifica-se portanto o investimento em preservar as suas memórias. Bem o merecem.

Depois, sempre a subir e eu à frente por entre o capim até outro casebre onde nos esperava outra família. Aí  foi servido a cada um um coco que um moço de pé leve foi colher lá nas alturas. O coco que melhor me soube em toda a minha vida. 

Novas conversas sobre o projeto, que nos levaram a marcar uma reunião às 3 da tarde para tomarmos uma decisão: “Uma escola ou uma igreja", como alguém pretende?...

Convidamos o chefe do suco de Leotalá (presidente da Junta) que nos facilitou os cadernos de registo de crianças. À hora marcada começamos a reunião. Com o assunto já bem estudado e perante a pergunta “O que vos faz falta em Boebau Escola ou Igreja?"  

Todos foram unânimes: “queremos a escola, porque há muitas crianças que não vão às escolas circundantes”. 

Segundo os cadernos do suco, vivem em Boebau / Manati mais de 400 crianças das quais só 110 frequentam as escolas. A razão principal da falta à escola é o tempo que se demora no caminho, mais ou menos 5 horas diárias a pé que as crianças têm de fazer. Entenderam o sacrifício desta gente? 

Então ficou decidido, com o apoio de todos e em particular do chefe de suco, que irá ser construída uma escola, mais ou menos o projeto que trouxemos de Portugal, ficando o Anô encarregado de adaptá-lo às condições reais do local de construção. 

Com o orçamento a apresentar (mais ou menos 30.000 euros), a ordem é de avançar de modo a que a escola possa ser inaugurada em Janeiro de 2017, início do ano letivo em Timor. O trabalho mais difícil da nossa visita a Timor, tomada de decisões, está feito. 

Vamos continuar a lutar e a desenvolver o nosso projeto, seja em Timor seja em Portugal. Queremos fazer alguma coisa por esta gente tão necessitada mas tão querida. E Vamos conseguir!...



Alguns episódios na montanha

(i) Francisco da Conceição e a sua mulher parece que estavam já a nossa espera: a Marcelina, o Abeca e eu. 

Os cumprimentos efusivos da praxe, a conversa puxa conversa, o ritual da mama (mascar betel, areca e cal), equiparado ao vício do tabaco e histórias de vida que nos fazem pasmar. 

O sr. Francisco, homem pequeno e franzino vive aqui com a sua segunda mulher, sem filhos. No tempo da invasão indonésia a sua primeira mulher e os seu cinco filhos foram mortos. Mesmo assim, manifesta alegria de vida que nem a sua pobreza (miséria) consegue esconder. Pergunto-me: o que é preciso para ser feliz?... 

Junto às casas aqui próximas colocaram um posto de alta tensão. No entanto ninguém tem luz elétrica nestas paragens. Socorrem-se de “pequenos painéis solares que proporcionam uma débil luminosidade, incapaz de carregar um telemóvel". Por outro lado o senhor Francisco queixa-se que a pequena plantação de betel está a diminuir desde que existem ali implantados os postes. 

Aqui como noutras partes do mundo os pobres são explorados sem qualquer tipo de compensação. O pobre cada vez mais pobre e o rico cada vez mais rico. Para onde vamos?


(ii) O Eustáquio mostrou-nos lá do alto os montes e vales por onde andou escondido e errante com a mãe e alguns irmãos durante três anos. 

Remarcou em particular o monte onde foram apanhados pelos indonésios (uma casa com telhado verde no cimo de um monte) e o local de passagem do rio onde se deu o ”milagre” da casa que os protegeu de noite e que desapareceu ao romper do dia. 

A convicção do relato é tão forte que duvidar do que conta é um risco. O Eustáquio tinha 11 anos de idade percorria todos aqueles montes até Liquiçá para comprar sal que depois ia vendendo pelo caminho. Ainda hoje é frequente o negócio das crianças que passam com frequência pelos arruamentos e veredas dos bairros locais,  apregoando e vendendo produtos diversos.

(iii) Os obstáculos do caminho são uma constante. 

Hoje no regresso da montanha deparamo-nos com uma sinalização que nos indicava perigo. Uma vara e um senhor que ao avistar o gipe pagero azul chamou à atenção do aluimento duma passagem sobre troncos.

 Depois de inspecionado o perigo saímos da viatura e o corajoso e habilidoso Anô arranca sobre a faixa disponível conseguindo chegar são e salvo à outra margem. 

Nada mais houve a registar para além dos buracos constantes destas vias. Mas soubemos depois que o caminho estava intransitável e que corria uma informação falsa a nosso respeito: “foi um pagero azul que provocou a situação.” Sabemos também que não há estrutura nem serviços estatais que resolvam estas situações. Têm de ser os habitantes locais. E viva o povo!...

(Continua)

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos: LG)

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Conta solidária da Associação dos Amigos Solidários com Timor Leste (ASTIL)

IBAN: PT50 0035 0702 000297617308 4

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Nota do editor:

(*) Vd. poste anterior da série > 20 de maio de  2024 > Guiné 61/74 - P25544: Viagem a Timor-Leste: maio/julho de 2016 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte I: As primeiras emoções e impressões