Data: 23 de Março de 2013 à40 19:00
Assunto: Estudos sobre a Etnologia do Ultramar Português (Volume III), editação da Junta de Investigações do Ultramar, Lisboa, 1963
Meu caros amigos,
Aqui há umas semanas veio-me parar às mãos uma obra do maior interesse que descobri, por mero acaso, na biblioteca particular de um amigo meu e para a qual solicito a vossa atenção.Trata-se do livro "Estudos sobre a Etnologia do Ultramar Português (Volume III)", editado pela Junta de Investigações do Ultramar, Lisboa, 1963. Um livro de vários autores, essencialmente focado em temas de antropologia (entre os quais sobressai o nome de António Carreira), editado e totalmente dedicado à Guiné então Portuguesa.
Esta obra vem precisamente na linha da correspondência travada com o Luís Graça, em que ambos reconhecemos que partíamos para as missões de soberania no chamado Ultramar, qualquer que fosse o local, sem fazermos a menor ideia do que iríamos encontrar. Que povos? Que línguas? Que religiões? Que usos e costumes? E a lista podia continuar, sendo a Guiné, atenta a exiguidade do território, de uma diversidade extraordinária, multifacetada e vibrante.
Explicavam-nos o funcionamento da "Dreyser", como montar uma emboscada ou como comunicar no rádio, mas nada nos diziam sobre as realidades geográficas, etnológicas, históricas, religiosas, etc. com que nos íamos confrontar. Tratava-.se de um ponto essencial, mas os altos mandos militares da época nunca pensaram nisso ou consideraram-no desnecessário, como só muito tardiamente pensaram na chamada "acção psicológica", como é do conhecimento público. Oficiais, sargentos e praças partiam na quase total ignorância do que era a Guiné e os seus Povos e, no fundo, bastaria um pequeno esforço para dar a conhecer, por exemplo, mesmo de uma forma resumida, a realidade sociológica da Guiné. Isso, que eu saiba, jamais foi feito. Partíamos rumo ao
desconhecido, na escuridão total. Recordo que os norte-americanos na Coreia e no Vietname - e suponho que noutros teatros de operações - eram instruídos e dispunham de pequenos manuais de divulgação relativos aos países e povos que iriam encontrar.
O livro em apreço é de um grande interesse e lança-nos muitas pistas sobre a Guiné. Muitos reconhecerão práticas locais que aprenderam por experiência própria. Enfim, aqui vos deixo as minhas impressões.
Explicavam-nos o funcionamento da "Dreyser", como montar uma emboscada ou como comunicar no rádio, mas nada nos diziam sobre as realidades geográficas, etnológicas, históricas, religiosas, etc. com que nos íamos confrontar. Tratava-.se de um ponto essencial, mas os altos mandos militares da época nunca pensaram nisso ou consideraram-no desnecessário, como só muito tardiamente pensaram na chamada "acção psicológica", como é do conhecimento público. Oficiais, sargentos e praças partiam na quase total ignorância do que era a Guiné e os seus Povos e, no fundo, bastaria um pequeno esforço para dar a conhecer, por exemplo, mesmo de uma forma resumida, a realidade sociológica da Guiné. Isso, que eu saiba, jamais foi feito. Partíamos rumo ao
desconhecido, na escuridão total. Recordo que os norte-americanos na Coreia e no Vietname - e suponho que noutros teatros de operações - eram instruídos e dispunham de pequenos manuais de divulgação relativos aos países e povos que iriam encontrar.
O livro em apreço é de um grande interesse e lança-nos muitas pistas sobre a Guiné. Muitos reconhecerão práticas locais que aprenderam por experiência própria. Enfim, aqui vos deixo as minhas impressões.
Com um abraço cordial e amigo e as habituais "mantenhas"
Francisco Henriques da Silva
(ex-Alf Mil Inf da CCaç 2402, e ex-embaixador de Portugal em Bissau)
Capa do livro > Junta de Investigações do Ultramar - Estudos sobre a etnologia do Ultramar português. Lisboa : Junta de Investigações do Ultramar, 1963. Vol. III, 240 p. : il. ; 25 cm. (Estudos, Ensaios e Documentos. 102).
2. ALGUNS USOS E COSTUMES DA GUINÉ
por Francisco Henriques da Silva
2. ALGUNS USOS E COSTUMES DA GUINÉ
por Francisco Henriques da Silva
O livro “Estudos sobre a Etnologia do Ultramar Português (Volume III)”, editado pela Junta de Investigações do Ultramar, Lisboa, 1963, é uma obra coletiva de grande interesse, para todos aqueles que se sentem atraídos pela Guiné-Bissau e pelos seus diferentes povos, respetivos usos e costumes. Inserido na coleção “Estudos, Ensaios e Documentos”, cabe referir que é um livro que beneficia do contributo de vários autores da época, investigadores e estudiosos das questões etnológicas, entre os quais avultam nomes conhecidos, como é o caso, por exemplo, de António Carreira.
Tanto quanto me apercebi teriam sido editados diversos volumes, sob aquele título genérico, cada um sobre uma das províncias ultramarinas sendo este sobre a Guiné, em que só são focados temas exclusivamente guineenses.
Os textos abordam assuntos tão diversos como o estudo da tecelagem, o arrancamento da pele dos cadáveres e as práticas de necrofagia, as mutilações genitais (ou seja, o fanado masculino e feminino – circuncisão, no primeiro caso, e excisão do clitóris, no segundo), as práticas funerárias dos Brames (ou mancanhas), os tambores “falantes” (o bombolom e outros instrumentos de comunicação por percussão à distância) e, finalmente, a etnonímia das populações autóctones da Guiné Portuguesa.
O primeiro texto – “Subsídios para o estudo da tecelagem na Guiné Portuguesa”, elaborado por Maria Emília de Castro Almeida e Miguel Vieira – começa por referenciar os povos tecelões do território: manjacos, papéis, brames, mandingas e fulas, portanto de várias origens étnicas e religiosas (animistas e islamizados). Contrariamente à tradição europeia, trata-se de uma profissão reservada ao sexo masculino.
Os textos abordam assuntos tão diversos como o estudo da tecelagem, o arrancamento da pele dos cadáveres e as práticas de necrofagia, as mutilações genitais (ou seja, o fanado masculino e feminino – circuncisão, no primeiro caso, e excisão do clitóris, no segundo), as práticas funerárias dos Brames (ou mancanhas), os tambores “falantes” (o bombolom e outros instrumentos de comunicação por percussão à distância) e, finalmente, a etnonímia das populações autóctones da Guiné Portuguesa.
O primeiro texto – “Subsídios para o estudo da tecelagem na Guiné Portuguesa”, elaborado por Maria Emília de Castro Almeida e Miguel Vieira – começa por referenciar os povos tecelões do território: manjacos, papéis, brames, mandingas e fulas, portanto de várias origens étnicas e religiosas (animistas e islamizados). Contrariamente à tradição europeia, trata-se de uma profissão reservada ao sexo masculino.
Em seguida, ao ser estudada a origem do tear em África e, baseando-se nas descrições dos primeiros cronistas e navegadores portugueses na região, concluem que o tear já existia quando da nossa chegada à Senegâmbia, uma vez que “a indústria do algodão na Guiné era já uma realidade quando os portugueses ali chegaram” (p. 46). Por conseguinte, não sendo de origem europeia seria presumivelmente de origem asiática. Teria tido inicialmente “uma possível mas fraca irradiação já nos princípios da nossa era, cremos, porém, que a verdadeira e intensa introdução do tear de pedais na Guiné seria mais tardia, no tempo da expansão muçulmana em África” (p. 51).
Independentemente da origem – presumivelmente asiática – e da sua transmissão através de povos islamizados, os autores assinalam que “os manjacos e também os papéis são os povos que mais se entregam actualmente à tecelagem e dos que sofreram menos a influência muçulmana” (p. 57). Muito provavelmente os tecelões manjacos terão exportado as suas técnicas para Cabo Verde, concluem também os autores.
Maria Emília C. Almeida e Miguel Vieira tecem alguns comentários sobre os diferentes panos guineenses e fazem a descrição tecnológica relativamente pormenorizada do seu modo de fabrico. O artigo contem mapas da distribuição dos diferentes povos da Guiné e ilustrações dos teares e das respetivas peças, bem como fotos dos tecelões em plena atividade e dos panos já confecionados.
[Cartoon, à esuqerda: António Barbosa Carreira, Ilha do Fogo, Cabo Verde, 1905- Lisboa, Portugalo, 1988. Fonte: Página de Barros Brito, com a devida vénia]
O artigo que se segue, da autoria de António Carreira, intitula-se “Do arrancamento da pele aos cadáveres e da necrofagia na Guiné, Portuguesa”. No primeiro caso estamos perante uma estranha prática ancestral dos manjacos, conhecido na expressão crioula por “descascar defuntos”. Era uma prática, segundo Carreira, já pouco seguida no início da década de 1930 e que, entretanto, terá desaparecido. Ninguém, nem mesmo os mais idosos, era capaz de elucidar as origens deste ritual insólito, nem o objetivo último do mesmo. Apenas se sabe que se tratava de um rito funerário daquele povo e circunscrito em exclusivo aos manjacos, não se tendo verificado tal prática em nenhum outro grupo étnico.
Independentemente da origem – presumivelmente asiática – e da sua transmissão através de povos islamizados, os autores assinalam que “os manjacos e também os papéis são os povos que mais se entregam actualmente à tecelagem e dos que sofreram menos a influência muçulmana” (p. 57). Muito provavelmente os tecelões manjacos terão exportado as suas técnicas para Cabo Verde, concluem também os autores.
Maria Emília C. Almeida e Miguel Vieira tecem alguns comentários sobre os diferentes panos guineenses e fazem a descrição tecnológica relativamente pormenorizada do seu modo de fabrico. O artigo contem mapas da distribuição dos diferentes povos da Guiné e ilustrações dos teares e das respetivas peças, bem como fotos dos tecelões em plena atividade e dos panos já confecionados.
[Cartoon, à esuqerda: António Barbosa Carreira, Ilha do Fogo, Cabo Verde, 1905- Lisboa, Portugalo, 1988. Fonte: Página de Barros Brito, com a devida vénia]
O artigo que se segue, da autoria de António Carreira, intitula-se “Do arrancamento da pele aos cadáveres e da necrofagia na Guiné, Portuguesa”. No primeiro caso estamos perante uma estranha prática ancestral dos manjacos, conhecido na expressão crioula por “descascar defuntos”. Era uma prática, segundo Carreira, já pouco seguida no início da década de 1930 e que, entretanto, terá desaparecido. Ninguém, nem mesmo os mais idosos, era capaz de elucidar as origens deste ritual insólito, nem o objetivo último do mesmo. Apenas se sabe que se tratava de um rito funerário daquele povo e circunscrito em exclusivo aos manjacos, não se tendo verificado tal prática em nenhum outro grupo étnico.
Segundo relata Carreira, “ficámos sem saber se o descasque de defuntos fora, desde sempre uma verdadeira modalidade dos ritos funerários dos manjacos ou se seria um derivante ou substituto da antropofagia.” (p. 106). O autor interroga-se: “Da antropofagia – que se admite tenha existido em toda esta área – não teria resultado, por evolução, a necrofagia e, numa fase posterior o descasque de cadáveres?” (ibidem).
Todavia, nem entre os manjacos, nem entre os brames (mancanhas) foram detectadas práticas de
canibalismo, muito embora os felupes a praticassem em tempos remotos. Carreira admite, como mera hipótese de trabalho, que os manjacos a tivessem levado a cabo, muito embora não o possa provar, tendo, ao longo do tempo, evoluído para o descasque de cadáveres.
[ Foto à direita: Um felupe, 1821... Gravura norte-americana, imagem do domínio público, cortesia de Wikipédia]
A cerimónia revestia-se de uma certa complexidade, na medida em que previamente era necessário proceder ao interrogatório do defunto, o anúncio da morte, o sacrifício de vários animais, a que se seguiam danças e outras cerimónias para afastar os maus espíritos. O corpo depois era colocado num estrado, regado com álcool e defumado.
Como relata Carreira, “logo que a decomposição estivesse avançada, o descascador (o profissional chamado Natiêmá) procedia à operação do arrancamento da pele. Para tanto servia-se de enormes unhas, que propositadamente deixava crescer; elas constituíam a ferramenta do ofício” (p. 111). Depois o corpo era envolto em panos e inumado.
Quanto à prática da necrofagia que se verificava ainda na década de 50 entre os Felupes, os cadáveres eram enterrados quase à superfície da terra, durante uma semana, finda a qual, os corpos já putrefactos eram desenterrados, cozinhados e comidos.
Todavia, nem entre os manjacos, nem entre os brames (mancanhas) foram detectadas práticas de
canibalismo, muito embora os felupes a praticassem em tempos remotos. Carreira admite, como mera hipótese de trabalho, que os manjacos a tivessem levado a cabo, muito embora não o possa provar, tendo, ao longo do tempo, evoluído para o descasque de cadáveres.
[ Foto à direita: Um felupe, 1821... Gravura norte-americana, imagem do domínio público, cortesia de Wikipédia]
A cerimónia revestia-se de uma certa complexidade, na medida em que previamente era necessário proceder ao interrogatório do defunto, o anúncio da morte, o sacrifício de vários animais, a que se seguiam danças e outras cerimónias para afastar os maus espíritos. O corpo depois era colocado num estrado, regado com álcool e defumado.
Como relata Carreira, “logo que a decomposição estivesse avançada, o descascador (o profissional chamado Natiêmá) procedia à operação do arrancamento da pele. Para tanto servia-se de enormes unhas, que propositadamente deixava crescer; elas constituíam a ferramenta do ofício” (p. 111). Depois o corpo era envolto em panos e inumado.
Quanto à prática da necrofagia que se verificava ainda na década de 50 entre os Felupes, os cadáveres eram enterrados quase à superfície da terra, durante uma semana, finda a qual, os corpos já putrefactos eram desenterrados, cozinhados e comidos.
Outro dos costumes ancestrais dos felupes consistia em colecionar crânios dos inimigos caídos em combate e que eram utilizados em libações. Hábito que não nos deverá parecer tão exótico, na medida em que os antigos vikings também o praticavam. Membros de tribos inimigas que penetrassem em território felupe eram “assassinados em condições misteriosas; e a maior parte (dos crânios, entenda-se) provém, precisamente, dos cadáveres desenterrados e comidos nos festins do fanado (circuncisão) ou nos ritos especiais, nos Irãs.” (p. 116).
Comer carne humana de cadáveres consistia numa cerimónia ritual que se revestia da maior importância entre os membros desta etnia. Comer determinadas partes do corpo do inimigo morto conferiria, a quem as devorasse, as mesmas qualidades do defunto, designadamente de coragem e bravura em combate,. Em regra, eram apenas comidos os corpos das pessoas que faleciam de morte natural ou que morriam em conflito armado, mas, muitas vezes, secretamente, os feiticeiros envenenavam pessoas com o fito de as devorarem, muito embora a tribo não tivesse necessidade de carne, porquanto tinha gado e a caça abundava. A necrofagia era um ritual mágico e envolto no maior secretismo.
A. Carreira conclui que “a influência da cultura portuguesa, da francesa e mesmo da africana não conseguiu vencer práticas milenares que a civilização do Ocidente condena, por repugnantes, como a necrofagia” (p. 121).
“Contribuição para o estudo das mutilações genitais na Guiné Portuguesa” é outro interessante artigo subscrito por António Carreira e bastante abrangente, pois abarca todo o território guineense e confere-nos uma panorâmica da extensão destas práticas.
A. Carreira conclui que “a influência da cultura portuguesa, da francesa e mesmo da africana não conseguiu vencer práticas milenares que a civilização do Ocidente condena, por repugnantes, como a necrofagia” (p. 121).
“Contribuição para o estudo das mutilações genitais na Guiné Portuguesa” é outro interessante artigo subscrito por António Carreira e bastante abrangente, pois abarca todo o território guineense e confere-nos uma panorâmica da extensão destas práticas.
O autor divide a população local em 3 grupos consoante a diversidade da prática das mutilações sexuais:
(i) o primeiro grupo, é aquele em que se pratica a circuncisão nos indivíduos do sexo masculino e a excisão do clítoris nos do sexo feminino (trata-se de etnias islamizadas: fulas, mandingas, biafadas, nalus, banhuns, cassangas e balantas-mané);
(ii) o segundo grupo confina-se apenas à prática da circuncisão, não se procedendo à ablação do clitóris (estão neste grupo os animistas: manjacos, papéis, brames, felupes, baiotes, balantas e mansoancas);
(iii) o terceiro e último grupo apenas pratica uma circuncisão de caráter simbólico, “por incisões superficiais na pele do pénis, seguidas de escarificações tegumentares simples” (p. 135) e nas mulheres umas incisões no baixo ventre (apenas os bijagós mantém este hábito ancestral).
Quer no caso da circuncisão, quer no da ablação do clitóris, ambas as cerimónias são genericamente designadas, em crioulo, por fanado.
A circuncisão consiste no corte da pele do prepúcio, em geral, com uma faca afiada de lâmina recta. Trata-se de uma cerimónia ritual de purificação (segundo Bastide, citado por Carreira) que só se realiza com uma periodicidade determinada (depende das etnias) e que implica provas físicas, algumas de grande dureza, e nalguns casos até castigos corporais; provas intelectuais e de conhecimento de vida e sócio-religiosas, como refere o autor. Existem igualmente múltiplos tabus e regras específicas, variáveis de tribo para tribo. Em geral, as cerimónias terminam com uma série de festas públicas.
[Foto à direita: Vaqueira manjaca... Detalhe de postal ilustrado da série Guiné Portuguesa. Cortesia de Joaquim Ruivo]
Dependendo das etnias, a circuncisão pode ocorrer na infância, puberdade, adolescência ou já na idade adulta. O autor não refere, porém, que, em muitos casos, os circuncisos podiam morrer de hemorragia, por inexperiência do “operador” ou de infeção (tanto quanto sei, pessoalmente, no caso dos balantas, eram utilizados emplastros com plantas e lama).
A excisão clitoridiana tem menor expansão que a circuncisão, que como se vê está generalizada a quase toda a população masculina, e segundo A. Carreira alguns elementos femininos de certos grupos étnicos (mandingas e fulas) opõem-se-lhe. Todavia, como sublinha, “o certo é que o costume tem, ainda, grande simpatia e aceitação das massas” (p. 172).
Quer no caso da circuncisão, quer no da ablação do clitóris, ambas as cerimónias são genericamente designadas, em crioulo, por fanado.
A circuncisão consiste no corte da pele do prepúcio, em geral, com uma faca afiada de lâmina recta. Trata-se de uma cerimónia ritual de purificação (segundo Bastide, citado por Carreira) que só se realiza com uma periodicidade determinada (depende das etnias) e que implica provas físicas, algumas de grande dureza, e nalguns casos até castigos corporais; provas intelectuais e de conhecimento de vida e sócio-religiosas, como refere o autor. Existem igualmente múltiplos tabus e regras específicas, variáveis de tribo para tribo. Em geral, as cerimónias terminam com uma série de festas públicas.
[Foto à direita: Vaqueira manjaca... Detalhe de postal ilustrado da série Guiné Portuguesa. Cortesia de Joaquim Ruivo]
Dependendo das etnias, a circuncisão pode ocorrer na infância, puberdade, adolescência ou já na idade adulta. O autor não refere, porém, que, em muitos casos, os circuncisos podiam morrer de hemorragia, por inexperiência do “operador” ou de infeção (tanto quanto sei, pessoalmente, no caso dos balantas, eram utilizados emplastros com plantas e lama).
A excisão clitoridiana tem menor expansão que a circuncisão, que como se vê está generalizada a quase toda a população masculina, e segundo A. Carreira alguns elementos femininos de certos grupos étnicos (mandingas e fulas) opõem-se-lhe. Todavia, como sublinha, “o certo é que o costume tem, ainda, grande simpatia e aceitação das massas” (p. 172).
Aparentemente, os rituais destas cerimónias são bastante mais simples e menos violentos que os da circuncisão, aparte a operação de excisão propriamente dita. O autor descreve-a da seguinte forma: “Consiste na ablação do clítoris por um corte transversal, dado com uma lâmina recta. Para o efeito, puxam o clítoris para fora, depois de seguro por uma espécie de anzol sem rebarba. Em uns grupos a ablação é total e em outros está limitada a uma pequenina porção da ponta.” (p. 144).
A extracção ou corte dos lábios da vulva não é de todo em todo levada a cabo por nenhuma etnia guineense. Registe-se que a excisão do clítoris não constitui um mero rito de passagem, mas uma condição “sine qua non” para o casamento. Sem embargo de Carreira descrever com minúcia a operação, as cerimónias e as regras a observar, não regista em qualquer parte do texto o menor sinal de repúdio ou de horror perante o barbarismo e a crua brutalidade deste costume ancestral.
Para além de apresentar um mapa das mutilações sexuais na Guiné Portuguesa, o autor traça um quadro de cada uma da tribos e dos diferentes processos e cerimónias que nesta matéria que levam tradicionalmente a efeito.
O investigador José Lampreia elaborou um estudo intitulado “Da morte entre os Brames”. Segundo nos conta, no passado remoto, entre os Brames (mancanhas) na cerimónia do “choro” (funeral) chegava a ser sacrificado um casal de crianças se o defunto fosse um régulo. Essa prática terá desaparecido, mas o sacrifício de animais manteve-se e o abate do gado do defunto para alimentar toda a comunidade também, o que, aliás, como se sabe, não é costume exclusivo dos brames.
Para além de apresentar um mapa das mutilações sexuais na Guiné Portuguesa, o autor traça um quadro de cada uma da tribos e dos diferentes processos e cerimónias que nesta matéria que levam tradicionalmente a efeito.
O investigador José Lampreia elaborou um estudo intitulado “Da morte entre os Brames”. Segundo nos conta, no passado remoto, entre os Brames (mancanhas) na cerimónia do “choro” (funeral) chegava a ser sacrificado um casal de crianças se o defunto fosse um régulo. Essa prática terá desaparecido, mas o sacrifício de animais manteve-se e o abate do gado do defunto para alimentar toda a comunidade também, o que, aliás, como se sabe, não é costume exclusivo dos brames.
Uma cerimónia com algumas semelhanças à do descasque de cadáveres dos manjacos também se praticava, contrariando, de algum modo, o que refere António Carreira que a considera exclusiva daquela etnia. É interessante saber-se como era determinado o local propício ao enterro do corpo. O ritualista acompanhava uma cabra e no local onde esta urinasse cravava-se uma estaca e era esse o sítio designado para se abrir uma galeria funerária onde seria enterrado o defunto.
[Imagem à esquerda: O bombolom...Cortesia do sítio italiano Parrocchia San Leonardo Murialdo di Milano]
“Talking drums in Guiné” é um texto em inglês da autoria de W. A. A. Wilson da Universidade de Londres e que menciona, entre outros instrumentos de percussão (tambores) para transmissão de mensagens à distancia, o bombolom. Seis tribos da Guiné comunicam por este meio – manjacos, papéis, mancanhas, bijagós, balantas e mansoancas. Trata-se de um método muito utilizado em várias partes de África. Contrariamente ao que se possa pensar, não se trata de um qualquer código morse ou algo de aparentado, mas a reprodução de uma língua em que cada sílaba é pronunciada, nesta caso tocada, num tom alto ou baixo, “cada palavra ou frase tem uma melodia particular: os tons altos e baixos são tão importantes como a posição do acento tónico em português ou inglês” (p. 216), como refere o resumo.
[Imagem à esquerda: O bombolom...Cortesia do sítio italiano Parrocchia San Leonardo Murialdo di Milano]
“Talking drums in Guiné” é um texto em inglês da autoria de W. A. A. Wilson da Universidade de Londres e que menciona, entre outros instrumentos de percussão (tambores) para transmissão de mensagens à distancia, o bombolom. Seis tribos da Guiné comunicam por este meio – manjacos, papéis, mancanhas, bijagós, balantas e mansoancas. Trata-se de um método muito utilizado em várias partes de África. Contrariamente ao que se possa pensar, não se trata de um qualquer código morse ou algo de aparentado, mas a reprodução de uma língua em que cada sílaba é pronunciada, nesta caso tocada, num tom alto ou baixo, “cada palavra ou frase tem uma melodia particular: os tons altos e baixos são tão importantes como a posição do acento tónico em português ou inglês” (p. 216), como refere o resumo.
O bombolom é um tronco de madeira escavado com uma frincha que se estende a todo o comprimento. O tocador com dois paus extrai os sons cavos ou mais agudos do instrumento. O som pode ser ouvido a vários quilómetros de distância.
Finalmente, o artigo “Sobre a etnonímia das populações nativas da Guiné Portuguesa” da autoria do professor António de Almeida. O autor defende a tese de que as designações de quase todos os povos da Guiné é de origem mandinga, com várias alterações introduzidas pela língua portuguesa ou pelo crioulo. Também existiriam etnónimos de outras origens designadamente fulas.
_______________
Nota do editor:
Último poste da série > 25 de março de 2013 > Guiné 63/74 - P11309: Notas de leitura (468): Catarse, por Abel Gonçalves (Mário Beja Santos)
Finalmente, o artigo “Sobre a etnonímia das populações nativas da Guiné Portuguesa” da autoria do professor António de Almeida. O autor defende a tese de que as designações de quase todos os povos da Guiné é de origem mandinga, com várias alterações introduzidas pela língua portuguesa ou pelo crioulo. Também existiriam etnónimos de outras origens designadamente fulas.
_______________
Nota do editor:
Último poste da série > 25 de março de 2013 > Guiné 63/74 - P11309: Notas de leitura (468): Catarse, por Abel Gonçalves (Mário Beja Santos)