
Queridos amigos,
Temos aqui um livro soberbo, uma grande surpresa de um escritor promessa francês.
Pegando na história de um grupo musical guineense conceituado, Super Mama Djombo, vamos vaguear pelos tempos febris da pós-independência, em que a música guineense percorria continentes e era aclamada pelo ardor das promessas. A sua cantora-ícone acaba de morrer, e Couto, o guitarrista, agora um velho desencantado, percorre Bissau enquanto os militares se preparam para sufocar as instituições democráticas.
Primorosamente escrito, e com um achado de enredo, é um livro que merecia fazer parte tendencial dos interesses lusófonos. Que haja um editor que dê à estampa este livro invulgar, e tão bem urdido.
Um abraço do
Mário
Os Grandes, por Sylvain Prudhomme
(ou a Guiné-Bissau da euforia revolucionária à deceção)
Beja Santos
O teor da contracapa deste livro elucida-nos quanto ao tema principal: Guiné-Bissau, 2012, Couto, guitarrista de um grupo famoso dos anos 1970, Super Mama Djombo (um sério competidor do Cobiana Jazz, do grande José Carlos Schwarz), vive presentemente de expedientes. Enquanto se prepara um golpe de Estado sob égide militar, ele toma conhecimento da morte de Dulce, a famosa cantora do grupo, e que foi o seu primeiro amor. A noite estende o seu manto sobre a capital, há o sussurro das ruas, Couto deambula, anda de bar em bar, entre amigos. Mais de trinta anos da sua vida correm velozmente, sente recordações da mulher amada, lembra-se da guerrilha, todos aqueles anos fastos do Super Mama Djonko assaltam-lhe à lembrança, percorreram as sete partidas do mundo com uma música nova, portadora do entusiasmo e do orgulho de um país. Na cidade, homens e mulheres continuam entregues às suas ocupações, indiferentes às manobras militares, até que de repente se começam a ouvir os canhões e as rajadas de metralhadoras. Para homenagear Dulce, Couto e os outros elementos do velho grupo acordaram dar um concerto no Chiringuitó.

O anúncio da morte de Dulce faz despertar Couto da sua vida em torpor, é logo assaltado por lembranças daquela sua voz deslumbrante e dos êxitos triunfais do conjunto musical. Couto vive de pequenos trabalhos e a sua companheira, Esperança trabalha num restaurante, leva uma vida modestíssima. Couto sai de casa, vai trôpego, ensimesmado na sua tristeza, ele que foi o homem de Dulce, a Kantadura, a cantora. Entra em pequenos bares, as recordações são vibrantes, assoladoras, têm a ver com todos aqueles locais onde eles obtiveram triunfos, pois foi a partir de Bissau que conheceram êxitos estrondosos na África Ocidental, na Europa, em Cuba. Toda a história da criação da originalidade do grupo lhe enche a memória, bem como os anos da guerrilha, Couto estava subordinado na região do Morés a Gomes, uma figura lendária do PAIGC, será ele que irá arrebatar Dulce, será ele que chefiará o golpe de 2012.
O brilhantismo desta arquitetura romanesca passa exatamente pelo entrosamento dos tempos (pretérito ao presente “real”), enquanto Couto deambula à procura da sua gente, entram no romance todas as personagens, da guerrilha aos delírios de popularidade do Super Mama Djombo, à decisão de Dulce o abandonar para se casar com o prestigioso Gomes, cerimónia para a qual o grupo musical é convidado e onde o romancista modela páginas arrebatadoras, numa atmosfera de tragicomédia. Mas o ponto fulcral deste livro admirável são as décadas entre o sonho e a amargura do país à deriva. Com oportunidade, Sylvain Prudhomme vai buscar uma entrevista de Vasco Cabral, então o promissor ministro da Economia, em Outubro de 1973, dada à revista Afrique-Asie, em que fala dos inúmeros recursos do país, cita os fosfatos, o calcário, a possibilidade de haver petróleo, as jazidas de bauxite, as potencialidades para o desenvolvimento da energia hidroelétrica, as riquezas da pesca, as florestas, as espécies fruteiras, enfim, parecia que o país iria ser desbravado e com aquele regime político a partilha de riquezas seria a melhor homenagem que se podia fazer aos sonhos de Amílcar Cabral.
Vamos acompanhar a evolução de Dulce, a grande estrela da canção abandonou tudo para se tornar na hospitaleira mulher do general Gomes, é uma mulher triste, fica no povo como uma saudade. O grupo musical recompõe-se, mas sem Dulce será outra coisa, muitos dos seus membros partiram para a diáspora e a crença revolucionária desvaneceu-se. Agora que Dulce morreu, estes homens grandes, desiludidos, preparam febrilmente a grande homenagem, enquanto em Bissau rodam as viaturas para sufocar as liberdades, numa casa de espetáculos, e de acordo com os anúncios existentes na rádio, os grandes êxitos de Super Mama Djombo com Dulce vão ser relembrados. Caminhamos para o final, Couto percorre Bissau como um sonâmbulo, uma Bissau corroída, sombria, esburacada, na sua cabeça acorrem sons, conversas, letras de canções, Couto vai permanentemente sacudido por toda a melancolia daquele seu grande amor. Entra em casa do general Gomes, onde os insurretos estão ainda em reunião. Couto presta homenagem à sua amada, Gomes reaparece e mostra-se polido, ele é conhecedor daquela paixão que conseguiu tripudiar. Couto sabe que Esperança o ama, mas é outra coisa. Continua a deambular, ouvem-se os acordes de Guiné-Cabral, a canção mágica do grupo. No Chiringuito, começa a homenagem a Dulce. Couto, o dutur di biola, o grande doutor da guitarra, lança-se novamente na noite de Bissau, já percorreu todos aqueles espaços onde o grupo conheceu a glória, cresce a sua amargura, já está na Avenida Amílcar Cabral, caminha para o Pidjiquiti, é aí que as sombras da cidade são mais espectrais. Estala a fuzilaria. Estranhamente, naquele ponto outrora cheio de vida, onde o rio segue vasto e silencioso, tudo está calmo, avista-se um barco que se encaminha para o Ilhéu do Rei. Nada mais há a dizer. Os homens grandes estão reduzidos à insignificância, são os últimos portadores de um passado da guerrilha que pôs a Guiné nos noticiários do mundo, agora só têm lembranças. E Dulce morreu, muito pouco mais resta.
Indiscutivelmente, “Les grands”, de Sylvain Prudhomme, é uma obra a requerer toda a nossa atenção, é bom que nomes sonantes da escrita francesa ainda se lembrem da Guiné-Bissau, do seu fado e das suas esperanças.
____________
Nota do editor
Último poste da série de 11 de janeiro de 2016 Guiné 63/74 - P15605: Notas de leitura (795): “Dois Tiros e Uma Gargalhada”, de Abdulai Sila; Ku Si Mon Editora, 2013 (Mário Beja Santos)