sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15620: Notas de leitura (796): “Les grands”, por Sylvain Prudhomme, Éditions Gallimard, 2014 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Abril de 2015:

Queridos amigos,
Temos aqui um livro soberbo, uma grande surpresa de um escritor promessa francês.
Pegando na história de um grupo musical guineense conceituado, Super Mama Djombo, vamos vaguear pelos tempos febris da pós-independência, em que a música guineense percorria continentes e era aclamada pelo ardor das promessas. A sua cantora-ícone acaba de morrer, e Couto, o guitarrista, agora um velho desencantado, percorre Bissau enquanto os militares se preparam para sufocar as instituições democráticas.
Primorosamente escrito, e com um achado de enredo, é um livro que merecia fazer parte tendencial dos interesses lusófonos. Que haja um editor que dê à estampa este livro invulgar, e tão bem urdido.

Um abraço do
Mário


Os Grandes, por Sylvain Prudhomme 
(ou a Guiné-Bissau da euforia revolucionária à deceção)

Beja Santos

O teor da contracapa deste livro elucida-nos quanto ao tema principal: Guiné-Bissau, 2012, Couto, guitarrista de um grupo famoso dos anos 1970, Super Mama Djombo (um sério competidor do Cobiana Jazz, do grande José Carlos Schwarz), vive presentemente de expedientes. Enquanto se prepara um golpe de Estado sob égide militar, ele toma conhecimento da morte de Dulce, a famosa cantora do grupo, e que foi o seu primeiro amor. A noite estende o seu manto sobre a capital, há o sussurro das ruas, Couto deambula, anda de bar em bar, entre amigos. Mais de trinta anos da sua vida correm velozmente, sente recordações da mulher amada, lembra-se da guerrilha, todos aqueles anos fastos do Super Mama Djonko assaltam-lhe à lembrança, percorreram as sete partidas do mundo com uma música nova, portadora do entusiasmo e do orgulho de um país. Na cidade, homens e mulheres continuam entregues às suas ocupações, indiferentes às manobras militares, até que de repente se começam a ouvir os canhões e as rajadas de metralhadoras. Para homenagear Dulce, Couto e os outros elementos do velho grupo acordaram dar um concerto no Chiringuitó.

“Les grands”, por Sylvain Prudhomme, Éditions Gallimard, 2014, é um romance surpreendente de uma promessa literária (Sylvain Prudhomme recebeu o prémio Louis Guilloux 2012 pelo seu anterior romance), trata-se de uma ficção com personagens de carne e osso em que a maior parte dos factos são manifestamente imaginários. O Super Mama Djombo é um grupo que ainda existe, a personagem de Dulce é imaginária, e não se confunde com Dulce Neves, que continua a cantar. O autor recorda mesmo o nome dos músicos do Super Mama Djombo dos anos 1977-1981 e que andam muito próximos dos nomes que ele utiliza no seu romance. Trata-se pois de uma construção habilidosa em que se manipula a realidade até mesmo a do golpe de 12 de Abril de 2012 em que a poucos dias da segunda volta da eleição presidencial que levaria seguramente ao poder o candidato Carlos Gomes Júnior, militares insurretos e associados ao narcotráfico sufocaram as instituições democráticas.

O anúncio da morte de Dulce faz despertar Couto da sua vida em torpor, é logo assaltado por lembranças daquela sua voz deslumbrante e dos êxitos triunfais do conjunto musical. Couto vive de pequenos trabalhos e a sua companheira, Esperança trabalha num restaurante, leva uma vida modestíssima. Couto sai de casa, vai trôpego, ensimesmado na sua tristeza, ele que foi o homem de Dulce, a Kantadura, a cantora. Entra em pequenos bares, as recordações são vibrantes, assoladoras, têm a ver com todos aqueles locais onde eles obtiveram triunfos, pois foi a partir de Bissau que conheceram êxitos estrondosos na África Ocidental, na Europa, em Cuba. Toda a história da criação da originalidade do grupo lhe enche a memória, bem como os anos da guerrilha, Couto estava subordinado na região do Morés a Gomes, uma figura lendária do PAIGC, será ele que irá arrebatar Dulce, será ele que chefiará o golpe de 2012.

O brilhantismo desta arquitetura romanesca passa exatamente pelo entrosamento dos tempos (pretérito ao presente “real”), enquanto Couto deambula à procura da sua gente, entram no romance todas as personagens, da guerrilha aos delírios de popularidade do Super Mama Djombo, à decisão de Dulce o abandonar para se casar com o prestigioso Gomes, cerimónia para a qual o grupo musical é convidado e onde o romancista modela páginas arrebatadoras, numa atmosfera de tragicomédia. Mas o ponto fulcral deste livro admirável são as décadas entre o sonho e a amargura do país à deriva. Com oportunidade, Sylvain Prudhomme vai buscar uma entrevista de Vasco Cabral, então o promissor ministro da Economia, em Outubro de 1973, dada à revista Afrique-Asie, em que fala dos inúmeros recursos do país, cita os fosfatos, o calcário, a possibilidade de haver petróleo, as jazidas de bauxite, as potencialidades para o desenvolvimento da energia hidroelétrica, as riquezas da pesca, as florestas, as espécies fruteiras, enfim, parecia que o país iria ser desbravado e com aquele regime político a partilha de riquezas seria a melhor homenagem que se podia fazer aos sonhos de Amílcar Cabral.

Vamos acompanhar a evolução de Dulce, a grande estrela da canção abandonou tudo para se tornar na hospitaleira mulher do general Gomes, é uma mulher triste, fica no povo como uma saudade. O grupo musical recompõe-se, mas sem Dulce será outra coisa, muitos dos seus membros partiram para a diáspora e a crença revolucionária desvaneceu-se. Agora que Dulce morreu, estes homens grandes, desiludidos, preparam febrilmente a grande homenagem, enquanto em Bissau rodam as viaturas para sufocar as liberdades, numa casa de espetáculos, e de acordo com os anúncios existentes na rádio, os grandes êxitos de Super Mama Djombo com Dulce vão ser relembrados. Caminhamos para o final, Couto percorre Bissau como um sonâmbulo, uma Bissau corroída, sombria, esburacada, na sua cabeça acorrem sons, conversas, letras de canções, Couto vai permanentemente sacudido por toda a melancolia daquele seu grande amor. Entra em casa do general Gomes, onde os insurretos estão ainda em reunião. Couto presta homenagem à sua amada, Gomes reaparece e mostra-se polido, ele é conhecedor daquela paixão que conseguiu tripudiar. Couto sabe que Esperança o ama, mas é outra coisa. Continua a deambular, ouvem-se os acordes de Guiné-Cabral, a canção mágica do grupo. No Chiringuito, começa a homenagem a Dulce. Couto, o dutur di biola, o grande doutor da guitarra, lança-se novamente na noite de Bissau, já percorreu todos aqueles espaços onde o grupo conheceu a glória, cresce a sua amargura, já está na Avenida Amílcar Cabral, caminha para o Pidjiquiti, é aí que as sombras da cidade são mais espectrais. Estala a fuzilaria. Estranhamente, naquele ponto outrora cheio de vida, onde o rio segue vasto e silencioso, tudo está calmo, avista-se um barco que se encaminha para o Ilhéu do Rei. Nada mais há a dizer. Os homens grandes estão reduzidos à insignificância, são os últimos portadores de um passado da guerrilha que pôs a Guiné nos noticiários do mundo, agora só têm lembranças. E Dulce morreu, muito pouco mais resta.

Indiscutivelmente, “Les grands”, de Sylvain Prudhomme, é uma obra a requerer toda a nossa atenção, é bom que nomes sonantes da escrita francesa ainda se lembrem da Guiné-Bissau, do seu fado e das suas esperanças.
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Nota do editor

Último poste da série de 11 de janeiro de 2016 Guiné 63/74 - P15605: Notas de leitura (795): “Dois Tiros e Uma Gargalhada”, de Abdulai Sila; Ku Si Mon Editora, 2013 (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Luís Graça disse...

1. Mário, tu és tramado, nada te escapa, de tudo aquilo que diga respeito à "nossa" Guiné, hoje Guiné-Bissau, um país adiado e contra o qual os grandes deste mundo há muito que se exasperam!...

O "desconcerto" da Guiné-Bissau e do "partido timoneiro", fundado por Amílcar Cabral", deixa-nos a todos, os seus amigos, com o coração apertado... "Quod vadis, Guiné-Bissau?"... Qual é o "karma" que te persegue ?...

2. Sobre o "français" Sylvain Prudhomme, nascido em 1979, leio aqui na Wikipédia (em frncês):

Il est l'auteur de romans et de reportages, dont plusieurs ont pour cadre l'Afrique contemporaine, où il a vécu et travaillé. Son roman Les Grands (éd. L'Arbalète, Gallimard) a été désigné "Révélation française de l'année 2014"1 par la rédaction du magazine Lire. (...)

(...) Sylvain Prudhomme a passé son enfance dans différents pays d'Afrique (Cameroun, Burundi, Niger, Ile Maurice) avant de venir étudier les Lettres à Paris, puis de diriger de 2010 à 2012 l'Alliance franco-sénégalaise de Ziguinchor, au Sénégal.

Il a collaboré à la revue Geste et au journal Le Tigre.

Il a traduit l'essai Décoloniser l'esprit, de l'écrivain kenyan Ngugi wa Thiong'o (La Fabrique, 2011). (...)

https://fr.wikipedia.org/wiki/Sylvain_Prudhomme

https://www.youtube.com/watch?v=D0oI2unFjxg

3. A Guiné-Bissau é uma terra de grandes músicos!... E o nosso blogue tem feito algumna cosia (pouca) para os apoiar... Infelizmente, muitos deles acabam por morrer no tarrafo...

Já em tempos recordámos aqui que o Pansau Na Isna, o mítico guerrilheiro, balanta, que gostava de se vestir de "cowboy", foi também título de canção, criada e interpretada pelo popular conjunto musical, dos anos 70/80, Super Mama Djombo, no seu álbum Super Mama Djombo (2003, etiqueta: Cobiana).

Este grupo musical, sob a liderança de Adriano Atchutchi, estilizou a música tradicional e deu a conhecer ao mundo (e às gerações mais novas da população guineense), ao ritmo do estilo Gumbé, o que foi o "sonho" de Amílcar Cabral, a luta de libertação e a esperança dos guineenses no futuro... A origem do grupo remonta a 1973...

Diga-se, de passagem, que é (ou foi) um grupo carismático, mítico, cuja música merece ser conhecida por nós, ex-combatentes, cotas, tugas que somos amigos da Guiné e do seu povo... Aqui fica uma cheirinho desse fabuloso grupo e do seu mítico álbum de 2003 (gravado em Portugal em 1979!, e não em França...), que é obrigatório comprar e ouvir muitas vezes...

http://www.sternsmusic.com/discography/4282

4. Mário: se calhar, este era um livro (de ficção) que devia ter sido escrito por ti ou por algum de nós... Somos poucos, e cada vez menos... Sempre fomos poucos, para a ambição (desmesurada) de dar a volta ao mundo em cinco séculos... E estamos a prazo. Dentro de vinte/trinta/quarenta/cinquenta anos, o "tuga" vai desaparecer... Tal como os romanos... de quem ficou, apesar de tudo, o latim.

Espero, e agora dirigindo-me aos nossos amigos muçulmanos como o Cherno Baldé, que a nossa querida Guiné-Bissau não venha a ser anexada pelo Estado Islâmico... que tem um ódio de morte à França...e a todos os "cruzados"...

Confesso que eu não sou "chauvinista", mas a verdade é que a Guiné-Bissau, quer se goste ou não, é cada vez menos um país lusófono... E no entanto penso que a lusofonia é a única forma de ela escapar ao buraco negro da entropia da história... Saibam os guineenses perceber a grande lição desse grande português, mal amado hoje por todos, que foi o Amílcar Cabral, um intelectual que tinha o songo, lindo, mas desastrado, de juntar a Guiné e Cabo Verde!...


http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/search/label/Super%20Mama%20Djombom...

Antº Rosinha disse...

Luís, os sonhos de Amílcar Cabral, falta serem analisados pelos historiadores/escritores guineenses, sem complexos, e quando o PAIGC já estiver "domesticado" tal como aconteceu com o PAICV.

Amílcar, português, antigo Estudante do Império, foi uma vítima daqueles "ventos da história" como foram a maioria dos Estudantes do Império que lutaram no sentido contrário àqueles ventos, como nós, aqui, tertulianos.

E eram muitos mais os que ficaram deste lado, porque sabiam que aqueles ventos não eram bons.

Não era bons, principalmente para os guineenses.

Mas até que aqui na ex-metrópole já são menos as vozes a acusarem Spínola e a pide, de mandantes do seu assassinato.

Tal como na Guiné nunca o povo teve essa ideia, apenas o discurso oficial cabraliano o insinua.

E se o assassinato de Amílcar não tiver sido a rivalidade anti-caboverdeana de guineenses dentro do PAIGC, como facilmente também se insinua?

Talvez pelo teu blog, ainda se possa pegar noutras "insinuações" oriundas da boca de caboverdeanos.

Pelo teu blog, porque já pouca mais gente está interessada nestas antiguidades nossas.

Cumprimentos.