segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15605: Notas de leitura (795): “Dois Tiros e Uma Gargalhada”, de Abdulai Sila; Ku Si Mon Editora, 2013 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Março de 2015:

Queridos amigos,
Não é de mais repetir que Abdulai Sila é o nome mais relevante da literatura guineense, injustamente não publicado em Portugal, e não pasmará que um dia ele apareça premiado e muita gente se irá questionar porque razão nenhum, dos seus trabalhos vem à luz em editores portugueses, como se ele não fosse credor, por mérito próprio, da nossa atenção.
"Dois Tiros e Uma Gargalhada" integra muitos dos ingredientes do trabalho deste grande artista, como refere Moema Augel: tensão e surpresa, uma mescla de violência, traição, lealdade, amizade e amor, tudo no palco, é nesse palco que um canalha pretende ver abatido um homem grande com dois tiros nos olhos e os presumíveis executantes regressam humilhados, com as calças borradas, e nós gargalhamos.
Por favor, procurem conhecer Abdulai Sila, esse caso sério da literatura lusófona.

Um abraço do
Mário


O teatro de Abdulai Sila, entre a tradição e a modernidade

Beja Santos

Abdulai Sila nasceu em 1958, em Catió. Estudou em Dresden, então República Democrática Alemã, onde se licenciou em engenharia eletrotécnica. Além de engenheiro, é também economista e investigador social. Foi cofundador do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas – INEP, da primeira editora privada da Guiné-Bissau, a Ku Si Mon, e da revista cultural Tcholona.
É hoje o nome proeminente da literatura guineense, os seus romances e o seu teatro são de uma enorme beleza, dotados de originalidade e onde a língua portuguesa aparece renovada pelas suas incorporações da tipicidade guineense. Percebe-se rapidamente que Abdulai Sila manipula com mestria os grandes eixos da tragédia, da crítica política, da utopia, e dos grandes enredos clássicos com o William Shakespeare à frente.

A sua peça de teatro mais recente, “Dois Tiros e Uma Gargalhada”, Ku Si Mon Editora, 2013, regressa, dentro dos seus costumados eixos da farsa acidulada e da iminência trágica, a uma realidade guineense em que o poder evocador da esperança em melhores tempos se digladia com as tentações da corrupção e do poder arbitrário. Quais as linhas de orientação deste prodigioso texto teatral? Amambarka, uma personificação do mal, serve-se de alguns executores a soldo para liquidarem um velho e dois sócios. Os mandantes querem saber as razões que os levam a esta execução, rendem-se ao argumento de quem vão liquidar são traidores. Na cena seguinte, temos uma conversa em que se insinua com subtileza a atmosfera do poder arbitral na Guiné-Bissau, fala-se do culto da personalidade e alguém exproba: “Nós somos um povo valente, honrado, com dignidade, e que não merece o que está a acontecer”.
Alguém anteriormente observa em crioulo: tudu kusa ku tene kumsada i ta tene si fin (tudo o que tem um início tem um fim). Entretanto, os mandantes de Amambarka regressam humilhados, aqueles “homens grandes” mostraram os seus poderes superiores e enxotaram-nos, regressaram com as calças cheias de trampa, Amambarka insiste na execução. E chegamos a um momento de pedagogia, o velho delega em três homens o exercício de um poder coletivo que conduza aquele país à liberdade e ao progresso, os três homens são Kilin, Woro e Dimmo.

Estamos agora no segundo ato, aquele triunvirato no poder passa em revista as mudanças já operadas: habitação decente, saúde gratuita, florescimento cultural; agora o país passou a ser respeitado, a ser um exemplo em África. Mas é preciso continuar. Mas Kilin tergiversa, arranja uma amante, aproveita-se do poder, é manifestamente corrupto. Este segundo ato é um demorado deleto entre Kilin e a sua amante, Sonaa, é aqui que assistimos ao envenenamento do poder, Kilin propõe a Sonaa que esta seja uma falsa primeira dama de alguém que pode vir a ser derrubado, e é aqui que sentimos a influência da peça teatral anterior de Abdulai Sila, “As Orações de Mansata”, uma espantosa adaptação do Macbeth de Shakespeare, peça, aliás, onde também há poderes estarrecedores, sobrenatural, execução de colaboradores e delírios de déspota. Mas o triunvirato é chamado à pedra por esse “homem grande” que dá pelo nome de Kamala Djonko, e este, em termos alegóricos, previna sobre a tentação dos desvios aos grandes ideais, quando observa:  
“Crescemos porque há uma força dentro de nós que nos abraça e à qual nos abraçamos, um poder enorme, que assumimos e que nos leva à procura de algo, mesmo sem termos uma perceção clara do que possa ser a sua forma, dimensão ou natureza. Quando atingimos parte desse algo, o que acontece geralmente é que iludimo-nos e enveredamos por uma outra via, deixamos de acreditar em nós mesmos. Tornamo-nos pouco a pouco descrentes e passamos a ser cada dia mais vulneráveis”. E aí o homem sábio interpela Kilin, é evidente que ele conhece muito bem os desvios deste, vai-se falar de corrupção e desvios de dinheiro. Vendo-se denunciado, Kilin pede a Flor, outra amante, que lhe encontre um executor e é aí que entra de nova em cena Amambarka, é negociado um golpe.

Estamos agora no terceiro ato, Dimmo e Woro criticam asperamente Kilin por este ter procurado assassiná-los, Dimmo e Woro propõem-lhe que ponha termo à sua vida para não se vir a descobrir as suas desonestidades. A tensão teatral eleva-se, os dois elementos do triunvirato recordam as violências do passado:  
“Quanta gente, quantos parentes, amigos, companheiros foram no passado assassinados sem motivo nem justificação? Quantas famílias podem hoje afirmar que não têm um membro que não tenha sido torturado ou fuzilado no passado? Mas quem ganhou com essa situação de caos e de barbárie que foi criada? Será que houve mais sossego? Mais tranquilidade? Mais concórdia? Não! Por isso, este é o tempo de, de uma vez por todas, dizermos a uma única voz, bem, alto, que não vamos aceitar o regresso a esse passado”. Este será o lema que relançará o eixo da concórdia na trama desta peça teatral, quem se tinha embuçado revela a verdadeira face, a verdade volta à tona de água. Woro e Dimmo exigem a Kilin que escreva um livro para passar uma mensagem:  
“Tu vais dizer à nossa juventude e a todos os nossos compatriotas que ainda estão por vir como foi a tortuosa caminhada que fizemos na direção da liberdade e da dignidade, quão dolorosa foi a longa e anárquica noite que atravessamos”. Kilin está arrependido pela sua traição. E Kamala Djonko profere a última tirada teatral em língua Fula: Mo no yade ka artata yo yobho ko lannata (quem parte para uma viagem sem data de regresso que leve bagagem completa).

No posfácio, Laura Cavalcante Padilha, professora da Universidade Federal Fluminense, explana os motes didáticos da obra: a sabedoria dos “homens grandes”, que carregam consigo um conhecimento milenar; o ódio reduzido a farsa quando os executantes regressam humilhados e borrados de medo, o que motiva a gargalhada do espectador; e o terceiro ato em que o mundo abalado volta ao seu lugar. Uma peça de teatro em que se entrelaçam a constatação e a explicação, o ético e o político, em que releva a vitória da sensatez, do perdão e do orgulho coletivo pela reconciliação. E pedagogia, acima de tudo, a violência dá lugar à tolerância, depois de todas as vicissitudes postos no texto teatral. “Dois Tiros e Uma Gargalhada” é um novo triunfo de um escritor que é merecidamente um caso sério da literatura lusófona.
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Nota do editor

Último poste da série de 8 de janeiro de 2016 Guiné 63/74 - P15592: Notas de leitura (794): "Autópsia dum livro proibído", por Armor Pires Mota, edição de autor, 2015 (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

Há muito poucos africanos lusófonos a escrever, nas várias ex-colónias portuguesas.

A principal explicação é porque foi criada uma mordaça real e psicológica por quem manda.

Mas pior, foi criada uma censura, uma guerra e uma auto-censura e um grande retrocesso no ensino e no uso da língua do colonizador.

Culpa de todas as partes, após a independência.