domingo, 16 de junho de 2019

Guiné 61/74 - P19894: A galeria dos meus heróis (31): Fatumata, a gazela furtiva de Sare Ganá (Luís Graça)

 

Contuboel, c. junho / julho de 1969... Furriel Henriques,
CCAÇ 2590/CCAÇ 12. Foto: Luis Graça
A galeria dos meus heróis > 

Fatumata, a gazela furtiva de Sare Ganá


por Luís Graça






Não, hoje já não saberias lá chegar. Foste de Bambadinca até Bafatá e aí cortaste para a vila de Geba, a outrora praça forte e presídio de Geba, agora em decadência, ofuscada pelo progresso e a beleza de Bafatá, a "princesa do Geba", como lhe chamavam os colonos brancos… (*)

Lembras-te de atravessar a ponte nova, uma bela ponte em betão sobre o rio Geba Estreito… Ponte Salazar, que o homem grande de Lisboa ainda era vivo… Mas já ninguém queria saber dele nem do seu nome. O novo homem grande era o Marcello (com dois ll) Caetano, cujo nome os teus soldados eram simplesmente incapazes de pronunciar e muito menos de soletrar: não falavam português, com exceção do Suleimane (que gostava de ser o teu intérprete, guarda-costas, secretário e cozinheiro). 

Levavas uma secção, 11 militares contigo, guineenses, incluindo um operador de transmissões, metropolitano. Em pleno agosto, no tempo das chuvas. Sare Ganá, no subsector de Geba, a noroeste de Bafatá. Apanhas nos teus papéis, ou no que resta deles, 
num caderno escolar, roído pela traça, as seguintes notas do teu diário de 1969:

“Sare Ganá. A última das tabancas do regulado de Joladu, no subsector de Geba. Estive aqui destacado duas semanas, em reforço ao sistema de autodefesa... O que não é irónico, porque a população é fula, está ao lado dos tugas, seus antigos inimigos e agora aliados".

A mais de 4500 quilómetro de distância, de Lisboa… Será que Sare Ganá ainda existe ou alguma vez existiu ?

"Armadilhada entre as duas fiadas de arame farpado e guarnecida por um pelotão de milícia (o PM nº 109, da Companhia de Milícias nº 3) e grupos civis de autodefesa, Sare Ganá é uma espécie de aldeia estratégica. Aqui termina a nossa soberania territorial, a norte do Rio Geba e começa a zona de intervenção do Com-Chefe que inclui, entre outras, as regiões de Mansomine, Caresse e Óio”.

E acrescentavas:

"É aqui que vive o régulo, uma solitária figura de aristocrata fula, de elevada estatura. A sua cabeça destaca-se acima da cabeça dos demais. Presumo que seja futa-fula. Não fixei o seu nome. Todos os seus súbditos, mandingas, balantas e manjacos, que viviam em Joladu, 'foram no mato' (leia-se: aderiram à guerrilha ou fugiram das NT). Hoje o seu regulado está circunscrito ao perímetro de Sare Ganá e a mais duas ou três tabancas: Sinchã Sutu, Sare Banda"...



Guiné > Carta de Bambadinca (1955) >  Escala de 1/50 mil > Posição relativa de Sinchã Jobel (IN) e de aquartelamentos, destacamentos e tabancas em autodefesa (NT): a sul, Missirá e Fá Mandinga; a leste, Geba, Sare Ganá, Sinchã Sutu... Pelo meio o rio Geba Estreito...Sare Banda ficava mais a norte (vd. carta de Banjara).

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2019)


Tinhas chegado a 18 de julho de 1969, a Bambadinca, vindo de Contuboel, do Centro de Instrução Militar de Contuboel, um oásis de paz (**), e a tua CCAÇ 2590 (mais tarde CCAÇ 12) era agora uma companhia de intervenção ao serviço do comando do BCAÇ 2852... Como dizias com sarcasmo, eras um preto de 1ª e os teus soldados pretos de 2ª.

"Quase todos os dias ouvíamos os Fiat G-91 bombardearem Sinchã Jobel, uma base da guerrilha a 10 km a norte, e que é inacessível no tempo das chuvas devido às bolanhas e lalas que a rodeiam”.

“Até Farim é tudo terra para queimar”, diziam-te os milícias locais. “Nenhuma tropa apeada, ao que parece, se atreve a penetrar neste santuário do IN. Fala-se aqui da ‘mata do Óio’, como um misto de temor e de terror, domínio do sagrado e da morte”…

Ainda estava na memória da população o ataque de há um ano atrás, em 12 de agosto de 1968, ao tempo da CART 1690: à meia noite em ponto, um grupo IN estimado em cerca de 60 elementos, ou seja um bigrupo reforçado, vindo de Sinchã Jobel, tinha atacado Sare Ganá.

“Um ataque medonho”, segundo o testemunho de alguns milícias com quem falaste, com o Suleimane a servir de intérprete.  O ataque iniciou-se por tiros de morteiro (82 e 60), lança-granadas-foguete (RPG) e metralhadoras, com uso de granadas incendiárias. O IN conseguiu alcançar o arame farpado do lado Norte,   penetrando na tabanca por este lado e pelo lado Sul. Uma falha de segurança, no perímetro de arame farpado, mesmo armadilhado,  terá permitido a passagem de uns alguns atacantes, empunhando armas ligeiras automáticas. Algumas moranças começaram logo a arder. 


A reação das NT não se fez esperar: os valentes milícias fulas, uns a partir dos abrigos, outros dispersos pela tabanca, reagiram pelo fogo, aguentando o ímpeto inicial do ataque e dificultando o mais que puderam a infiltração dos guerrilheiros. Grande parte da população, os homens, estava armada e colaborou na defesa da tabanca. Mas depressa se esgotaram as munições, obrigando a milícia a recuar. A disciplina de fogo nunca foi apanágio do guineense, quer empunhasse uma G3 quer manejasse uma Kalash.

Em Geba, sede da CART 1690, a escassa meia-dúzia de quilómetros, logo que se ouviram os primeiros rebentamentos, saiu um piquete de socorrro, num viatura: meio pelotão, enquadrado por um alferes e um furriel. Nas proximidades de Sare Ganá, cerca de meia hora de depois, o grupo subdividiu-se em dois ou três, aproximando-se, a pé, da tabanca, com a intenção de procurar surpreender as forças atacantes.

Ao mesmo tempo que apoiavam a retirada da população, as forças da CART 1690 iam abrindo caminho, morança a morança, à força de bazucadas e curtas rajadas de G3. Gente brava!...

Às tantas, o IN, surpreendido pelo contra-ataque, lançou um “very light” e iniciou a sua retirada, arrastando consigo as baixas que sofrera e carregando o respetivo material. Devido à escassez de efetivos e à escuridão da noite, a perseguição encetada pelas NT não terá ido além da orla da mata próxima.

Uma hora depois do ataque chegou uma coluna de socorro, em viaturas, oriunda de Bafatá, composta por cerca de dois pelotões reforçados, da CCS/BCAV 1904, do EREC 2350, e do Pel Caç Nat 64. Normalizada a situação, as forças de Bafatá, com exceção do Pel Caç Nat 64, regressaram com os feridos mais graves da milícia e da população local. Foi montada segurança à tabanca nessa noite e dias seguintes.

Apurou-se então que o IN terá tido 5 mortos e outras baixas prováveis. De entre o material capturado, contaram-se duas armas ligeiras, uma metralhadora Dectyarev, com bipé, uma pistola metralhadora Sudayev PPS-43, uma das lendárias armas ligeiras da II Guerra Mundial (além de uma fita de metralhadora com 85 cartuchos e 2 granadas de mão ofensivas). Do lado dos defensiores, soube-se que tinha havido baixas entre a milícia e a população local. Parte da tabanca teve que ser reconstruída.

“Um ano depois eu aqui estou, periquito, de 5 a 17 de agosto [de 1969], integrado no 4º Gr Comb da CCAÇ 12 que foi reforçar o Sector L2 (Bafatá), sendo destacada uma secção para Sare Ganá e duas para Sare Banda (subsector de Geba). 


“Dias antes [da nossa chegada a Sare Ganá]k  o IN fizera um ataque malogrado à tabanca em autodefesa de Sinchã Sutu. Agora, por causa de um possível ataque da guerrilha, é proibido, à noite, fazer lume ou foguear na tabanca de Sare Ganá.

“Aqui come-se cedo e deita-se cedo. Ficam os vampiros dos mosquitos. Por sorte, não apreciam lá muito o meu sangue. Deve-lhes saber a uísque.” 


E mais à frente escreveste, no teu diário, a 15 de agosto de 1969:

“Destacado ou desterrado ? O que farei eu com uma seção de combate, uma bazuca, um morteiro 60, dez G-3 e um rádio se isto der para o torto ? Depois do ataque malogrado à tabanca próxima, Sinchã Sutu, a população fula anda inquieta... Sinto-me como os bombeiros, atrás da ameaça de fogo-posto, mas ainda não fiz sequer o meu batismo de fogo, contrariamente à maior parte da companhia, que teve os seus primeiros feridos graves em Madina Xaquili, há menos de 3 semanas."


Perguntas-te sobre o sentido e o alcance da tua missão:

“Limito-me a estar aqui: de manhã, durmo como um porco; às dez ou onze levanto-me, porque o calor dentro da minha palhota é já absolutamente insuportável. Devoro o almoço que o Suleimane entretanto já me preparou. Depois oiço velhas lendas dos tempos em que os cavaleiros do Futa Djalon eram donos e senhores destas terras. Ao fim da tarde dou um giro para fingir que me mantenho operacional.”

(Dormir que nem um porco!... Muito anos mais tarde, já como professor de sociologia e de saúde pública, passaste a fazer teu o sábio conselho do provérbio popular: 'Três horas dorme o santo, quatro o que não é santo, cinco o viajante, seis o estudante, sete o porco e oito o morto'... Foi, afinal, na Guiné que aprendeste que dormir muito fazia mal à saúde...)

E relatas, no teu diário, “uma bravata estúpida, bem típica de um periquito”, feita logo no princípio das tuas andanças por aqui. É uma das tuas duas recordações marcantes da estadia em Sare Ganá, uma má, outra boa:

“Fui sozinho com um milícia local fazer o reconhecimento duma aldeia próxima, abandonada pela população e armadilhada. Talvez Sinchã Famora, a sul, não fixei o nome. O tipo ia à frente com uma varinha feita de caule de capim seco (!), tentando detetar os fios de tropeçar que atravessavam os trilhos da aldeia, de resto já pouco visíveis.

" A meio do percurso, apanho um susto: um antílope, que pastava perto, atravesssou-se-nos no caminho, em plena área supostamente armadilhada. Foi mais do que um susto, apanhei um calafrio: é que na noite anterior, um felino que vinha no encalce dos galináceos domésticos, tinha feito acionar um das armadilhas do perímetro de defesa de Sare Ganá. E de pronto comecei a ouvir, de todos os lados, sucessivas rajadas de G-3... O pessoal, assustadíço, anda mesmo nervoso.”

Ainda hoje te perguntas como é que tu arriscaste a tua vida e a do milícia local, nesta estúpida e inútil aventura de ir “reconhecer” uma aldeia abandonada e armadilhada ?!… Não fazia parte da tua missão!... Foi pura bravata!... Ou talvez quisesses provar a ti mesmo que também eras “um gajo com tomaste", tu que nem sequer eras um atirador de infantaria, nem tinhas, ao certo, nem pelotão nem secção...Eras o "pião das nicas", como te chamava o teu capitão, suprias as faltas de graduados, em todos os pelotões...

A outra recordação marcante foi a da visita à tua morança, da “Fatumata, a gazela furtiva":


“ (…) Ainda não me habituei foi ao ‘black-out’ total, imposto por óbvias razões de segurança: não posso ler nem escrever na minha morança (faz-me falta uma pequena lanterna de pilhas), o que torna ainda mais insuportáveis estas longas noites de Sare Ganá (...).

“Resta-me a companhia silenciosa e furtiva da Fatumata, uma das quatro mulheres do comandante da milícia (presumo pou supeito): logo ao segundo ou terceiro dia, introduziu-se-me, lesta como uma gazela, na palhota onde durmo, junto ao espaldão do morteiro 60. Tapou-me a boca com a mão, esboçou um sorriso cúmplice, puxou o pano de chita até à cintura, virou-se delicadamente de costas e ofereceu-me o seu esguio corpo de ébano, ressumando húmidos odores da floresta!...

“De pé, ligeiramente curvada para a frente, enigmática como uma máscara, lasciva como a serpente bíblica, submissa como uma fêmea de felino!"...

Não te olhou olhos nos olhos, mas tu fizeste questão de a mirar de alto a baixo, de frente:

“Não é bonita, o rosto deve-lhe ter sido marcado pela varíola, quando mais nova... É sensual e ainda jovem, de seios duros mas pequenos. É provável que seja infértil e nunca tenha parido.”


Tiveste dificuldade em perceber a sua atitude e em adivinhar-lhe a idade:

“Terá vinte e tal anos, menos de trinta. Tínhamos trocado apenas olhares no primeiro dia, quando cheguei, na linguagem mais universal dos seres humanos” (…)

“E, tal como tinha chegado, partia depois, furtivamente, pela calada da noite, sem dizer uma única palavra em português ou crioulo: a única, de resto, que até agora lhe ouvi, foi uma estranha corruptela do meu apelido.”

Um "affaire” no mato ? “Que palavra tão deslocada aqui no cú do mundo, num país em guerra!”, comentaste tu.

De qualquer modo, este momento foi “celebrado com uma singela troca de roncos: dei-lhe a minha toalha de banho turca, colorida,  e fiquei-lhe com a sua pulseira de missangas vermelhas e brancas como recordação das estranhas noites de Sare Ganá.”


Nem sequer te ocorreu "partir patacão" com ela: não querias, de modo algum, estragar a singeleza e até a beleza daquele momento, a partilha de corpos entre um homem e uma mulher que pertenciam a dois mundos opostos...mas tinham em comum a infelicidade do "hic et nunc", do aqui e agora...

Ainda hoje tens dificuldade em entender o significado… socioantropológico desta cena!... Simples atração sexual de um mulher por um estrangeiro ? Simples favores sexuais sem pedir mais nada em troca ? Cumprimento da obrigação feminina de hospitalidade, por ordens expressas do régulo ou do comandante de mílicias que tu mal conheceras ? Ritual de submissão ao representante dos tugas, os "senhores da guerra"? Solidão, despeito, ciúme, não sendo a mais nova das mulheres do comandante de milícias, e muito provavelmente sendo infértil, uma das piores maldições que pode recair sobre a honra de uma mulher em África ?

Este caso não não era virgem, na época, e outros camaradas teus contaram-teestórias semelhantes de partilha de favores sexuais, de iniciativa feminina... em contexto de guerra.


E concluias a escrita desse dia, no teu diário, antes de regressares a Bambadinca:

“Deveríamos ser, ali, em Sare Ganá, os dois seres mais deslocados e solitários do mundo... Nunca mais a vi, nem cheguei a saber a sua verdadeira estória. Nem sei se ainda voltarei a Sare Gana. Mas a sua imagem de gazela furtiva, essa, não vou tão cedo apagá-la da minha memória."


E, de facto, ainda não a apagaste, cinquenta anos depois...Nem nunca mais voltaste a Sare Ganá.

© Luís Graça (2006). Revisto: 24 de junho de 2023.
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 11 de maio de 2019 >  Guiné 61/74: P19775: A galeria dos meus heróis (30): Depressa, tuga, dá-me o tiro de misericórdia!... E que o teu deus te pague!... (Luís Graça)



(**) Vd. poste de  25 de junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6642: A minha CCAÇ 12 (4): Contuboel, Maio/Junho de 1969... ou Capri, c'est fini (Luís Graça)


(...) Aqui a consciência humana tem a dimensão da tribo, do grupo étnico ou até da aldeia. Uma precária serenidade envolve a azáfama quotidiana destes povos ribeirinhos do Geba que, no meu eurocentrismo de viajante, recém-chegado e distraído, descreveria como felizes, gentis e hospitaleiros. 

O que eu observo, sob o frondoso e secular poilão da tabanca, é uma típica cena rural: (i) as mulheres que regressam dos trabalhos agrícolas; (ii) as mulheres, sempre elas, que acendem o lume e cozem o arroz; (iii) as crianças, aparentemente saudáveis e divertidas, a chafurdar na água das fontes; (iv) os homens grandes, sempre eles, a tagarelar uns com os outros sentados no bentém, mascando nozes de cola…

Em suma, um fim de tarde calma numa tabanca fula de Contuboel que daria, em Lisboa, uma boa aguarela, para exposição no Palácio Foz, no Secretariado Nacional de Informação (SNI). E, no entanto, o seu destino, o destino destes homens, mulheres e crianças fulas, já há muito que está traçado: em breve a guerra, e com ela a morte e a desolação, chegará até estas aldeias de pastores e agricultores, caçadores e pescadores, músicos e artesãos, místicos e guerreiros…

O chão fula vai resistindo, mal, ao cerco da guerrilha. De Piche a Bambadinca ou de Galomaro a Geba, os fulas estão cercados. Mas por enquanto, Bafatá, Contuboel ou Sonaco ainda são sítios por onde os tugas podem andar, à civil, desarmados, como se fossem turistas em férias! (...).

Guiné 61/74 - P19893: Agenda cultural (689): Lançamento do livro de Mário Leitão, "Heróis Limianos da Guerra do Ultramar", Museu da Farmácia, Lisboa, dia 17 de junho, às 18h30



COMUNICADO DE IMPRENSA


Lisboa, 7 de Junho de 2019

17 de Junho | 18h30 | Museu da Farmácia*
Mário Leitão, Ponte de Lima


Guerra do Ultramar: Memória e actualidade no Museu da Farmácia

Livro “Heróis Limianos da Guerra do Ultramar”, de Mário Leitão, lançado em Lisboa.

O livro “Heróis Limianos da Guerra do Ultramar”, de Mário Leitão, vai ser apresentado publicamente a 17 de Junho, no Museu da Farmácia, em Lisboa. A obra, resultado de um trabalho de investigação inédito em Portugal, reúne as biografias dos 53 soldados de Ponte de Lima,  mortos na Guerra Colonial.

A cerimónia de apresentação será presidida pelo Tenente-General Chito Rodrigues, Presidente da Liga dos Combatentes, que vai relatar as questões sociais, económicas e emocionais que ainda perturbam o espírito dos antigos Combatentes e respectivas famílias.

O Coronel da GNR Luís Gonzaga Coutinho de Almeida fará a apresentação da obra e do autor.

António Mário Lopes Leitão, farmacêutico e professor reformado, foi furriel miliciano na Farmácia Militar de Luanda, entre 1971 e 1973. Esta é a sua terceira obra, que materializa «as vicissitudes que estão subjacentes a esta saga da conservação das Memórias dos Combatentes Limianos».

O Museu da Farmácia promoverá uma visita comentada pelo seu director, João Neto, às peças da sua exposição permanente que recordam a luta contra a morte e a doença dos soldados da Guerra Colonial.

* R. Marechal Saldanha, 1

Entrada livre

Informações: cultura@anf.pt
Aceda aqui ao evento no Facebook

sábado, 15 de junho de 2019

Guiné 61/74 - P19892: 15 anos a blogar desde 23/4/2004 (9): Relembrando o cobarde assassinato em Jumbembem, em 16/7/1973, do alf mil op esp / ranger Nuno Gonçalves da Costa, natural de Arcos de Valdevez, cmdt do Pel Caç Nat 51, substituído depois pelo Francisco Justino Silva, hoje médico ortopedista (Fernando Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, 2ª CCAÇ / BCAÇ 4512, Jumbembem, 1972/74)


Lisboa > Belém > Monumento aos Combatentes do Ultramar > XXV Encontro Nacional dos Antigos Combatentes > 10 de junho de 2019 > Sob o olhar atento do Carlos Silva, régulo da Tabanca dos Melros, o Francisco Justino Silva, hoje ortopedista (. foto à  esquerda),  membro da nossa Tabanca Grande desde 26 de abril de 2010 (*), relembra os tempos em que foi substituir, em Jumbembem, em circunstâncias trágicas, o comandante do Pel Caç Nat 51: o seu interlocutor, um antigo milícia do seu tempo  (, à direita, na imagem), estava lá, nesse fatídico dia 16 de julho de 1973, em que foi cobardemente morto a tiro de G3 o alf mil op esp / ranger, Nuno Gonçalves Costa.

Dois camaradas, pelo menos,  da nossa Tabanca Grande conheceram e conviveram com o Nuno Gonçalves da Costa:

(i)  o  Luís Mourato Oliveira conviveu com ele, na 1ª metade do ano de 1973,  e com o seu Pel Caç Nat 51, em Cufar;

e (ii)  Fernando Costa Gomes de Araújo (ex-fur mil op esp / ranger, 2ª CCAÇ / BCAÇ 4512, Jumbembem, 1973/74): é deste último o relato do que aconteceu nesse dia 16 de julho de 1973, 2ª feira, relato esse  já publicado em poste, editado pelo Eduardo Magalhães Ribeiro (**), e que merece ser reproduzido na série "15 anos a blogar desde 23/4/2004" (***)

O Nuno Gonçalves da Costa era natural de Campos de Sá, freguesia de São Jorge, Arcos de Valdevez.  A sua morte é atribuída a "acidente com arma de fogo" (sic), forma eufemística das Forças Armadas classificarem não só os casos de acidente devidos a arma de fogo, como os de homicídio e suicídio no TO da Guiné.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


O assassinato do Alf Mil Op Esp/Ranger  Nuno Gonçalves Costa,  do Pel Caç Nat 51, em Jumbembem, em 16 de julho de 1973

por Fernando Araújo (*)



[ex-Fur Mil Op Esp/Ranger,  2ª CCAÇ do BCAÇ 4512, Jumbembem, 1973/74M foto à civil, à esquerda]


Jumbembem, 16Jul1973 – 08h00/09h00

Estava eu no meu quarto, quando ouvi, nas traseiras da instalação, três disparos de G3.

A primeira coisa que pensei foi que o alferes açoriano (cujo nome não me lembro) se tinha suicidado, pois, nos últimos tempos, vinha a dar sinais evidentes, não só de estar farto de permanecer em Jumbembem, como de graves complicações psicológicas.

Desloquei-me rapidamente para o local de onde ouvira as detonações, dando a volta às instalações do dormitório do meu quarto, cujas traseiras davam para as traseiras de outro edifício com quartos e fiquei muito surpreendido…

Ao contrário do que eu estava a pensar, não fora o alferes dos Açores a vítima dos tiros, mas sim o alf mil op esp Nuno Gonçalves Costa, do Pel Caç Nat 51 [, adido à 2ª CAÇ / BCAÇ 4512] ,  e que jazia no chão gravemente ferido, pois tinha sido ele o alvejado com as três balas.

A sua imagem ali tombado a esvair-se em sangue, mortalmente, ainda hoje a retenho no pensamento.

Motivo da morte: o alf mil Costa tinha aplicado como castigo (não sei a causa), um reforço a um nativo do Pel Caç Nat 51. O homem não conformado com a punição, foi à porta do seu quarto e disse-lhe:

–  Alferes, eu não fazer reforço!

Ao que ele retorquiu:

– Já te disse que vais cumprir o reforço!

Foram trocadas mais algumas palavras de que eu já não me lembro. O nativo tornou a reclamar:

– Alferes,  eu não fazer reforço!

–  Já te disse que sim e não se fala mais nisso!

Acabado este diálogo, o nativo deslocou-se à tabanca em busca da G3 que lhe estava atribuída. Passado algum tempo, talvez 30 minutos, regressou novamente para junto do quarto do alferes. Pousou a G3 à porta e, chamando-o novamente, disse-lhe:

–  Alferes, eu não fazer reforço!

O alferes voltou a afirmar que ele tinha de cumprir o castigo, com que o tinha sancionado. Presumo que o alferes devia estar deitado. Deve ter-se levantado e foi nessa altura que o homem pegou na G3 e, traiçoeiramente, disparou três tiros à queima-roupa sobre o oficial português.

Este último ainda foi levado para a enfermaria, onde se prestaram os primeiros socorros, ao mesmo tempo que foi pedido, com a maior urgência, a sua evacuação aérea. Como estava a perder muito sangue, foi pedido sangue e voltou a ser pedido,  insistentemente, o máximo de urgência na sua evacuação, que tardava em aparecer.

E tanto tardou que o alferes não resistiu aos ferimentos e faleceu, sem que aparecesse qualquer meio aéreo para o socorrer. Esta situação indignou todo o pessoal da companhia, desde o soldado até ao comandante.

O nativo foi preso, com arames nos pulsos, atrás das costas, enquanto os próprios elementos do Pel Caç Nat 51, bem como a milícia local, queriam fazer justiça pelas próprias mãos (isto é, linchá-lo). Valeu-lhe o nosso comandante, que ordenou:

– Não lhe toquem!

Mas, mal ele virava as costas, alguns militares mais revoltados descarregavam a sua ira em cima do assassino, que foi depois colocado na casa do motor (gerador), que se situava ao lado do tanque da água.

Ali permaneceu o prisioneiro até meio da tarde, altura em que o nosso comandante, penso que por causa da evacuação não se ter efectuado e achando que o comandante em Farim teve alguma culpa nesta falta, resolveu ir a Farim levar o corpo do alferes em sinal de protesto.

Deslocamo-nos então numa coluna motorizada (já não sei quantos nem quais pelotões), com o corpo do defunto numa viatura Berliet e com uma bandeira nacional a cobri-lo, até Farim (sede do BCAÇ 4512).

A coluna fez-se sem fazer a habitual picagem, tal era a revolta, desagrado e excitação que grassava em todo o pessoal da Companhia. Um risco acrescido, mas justificado pela hora tardia para o fazer.

Viam-se aqui e ali soldados e graduados com as lágrimas nos olhos, chocados com um desfecho fatídico que o alferes assassinado não merecia, porque todos eram conhecedores e concordantes de que ele era boa pessoa e bom para os nativos do Pel Caç Nat 51. Talvez bom demais,  ainda hoje o penso e digo! Segundo ouvi dizer na altura, ele, quando isso lhe era solicitado, inclusive emprestava dinheiro aos militares do seu pelotão.

A coluna chegou à entrada de Farim, abrandou mais um pouco e continuou a sua marcha, enquanto os militares que a compunham saltaram para o chão e acompanharam as viaturas a pé.

Ao passar defronte ao edifício de comando, estava em posição de sentido e continência um graduado (ou era o comandante, en Cor Vaz Antunes, ou o 2º comandante major Menezes, já não me lembro bem).

Este é o relato com que fiquei gravado no pensamento desse dia.

Também trouxemos o nativo assassino que, pelo caminho fora na viatura onde seguia, alguns soldados, em certas alturas do percurso, continuaram a dar-lhe o “tratamento especial”, tendo o mesmo chegado a Farim num estado físico muito debilitado.

Disseram-me posteriormente que ficou preso em Farim e depois seria enviado para a Ilha das Cobras [ou Ilha das Galinhas, que funcionava como campo prisional ? (LG)]

Para substituir o comandante do Pel Caç Nat 51, foi destacado o alf mil at inf Francisco Silva, madeirense, que apareceu na 2ª Companhia do BCAÇ 4512 logo após esta tragédia. [Era oriundo da CAÇ 3492, Xitole, 1971/73]

Com o meu pedido de desculpas por eventuais lapsos de memória, que poderão sempre ser corrigidos, mas esta é a visão dos factos que ainda mantenho hoje, passados mais ou menos  36 anos. Na minha agenda/diário, no dia 16 de Julho de 1973, 2º feira, anotei este fatídico evento, a morte do alf mil ranger Costa

Um abraço,
Fernando Araújo
Fur mil op esp / ranger
2ª CCAÇ do BCAÇ 4512
(Jumbembem, 1972/74)
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Guiné 61/74 - P19891: Os nossos seres, saberes e lazeres (332): Na Bélgica, para rever e para descobrir o nunca visto (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Janeiro de 2019:

Queridos amigos,
Nova viagem à Bélgica, com novidades no roteiro, como adiante se verá.
O passeio inaugural é ao Parque do Cinquentenário, construído exatamente para comemorar os 50 anos de independência da Bélgica, amplos jardins, muitíssimo bem mantidos, instalações para vários museus, um deles um museu de valor excecional que encerra tesouros arqueológicos, um deles na lista do Património Mundial da UNESCO, o Egipto, Grécia e Roma, as artes decorativas de muitas eras e objetos fabulosos das civilizações não europeias estão aqui altamente representados. E o viandante tinha também em mira ir ver uma exposição de estalo, o acervo dos ourives Wolfers, dois génios que deixaram obras-primas da Arte Nova e Arte Deco, exibida num espaço elaborado por um génio da arquitetura, Victor Horta.
Uma viagem que começou com o pé direito.

Um abraço do
Mário


Na Bélgica, para rever e para descobrir o nunca visto (1)

Beja Santos

Regresso à Bélgica, o viandante vem dar um abraço muito amigo a quem tomou a decisão de fechar a casa e ir viver para um lar. Não poderá ser uma despedida de arromba, há uma vincada melancolia neste concerto de despedidas, tem-se a noção de que é um novo caminho sem retorno, acorda-se em palmilhar o que as forças permitem. E começa-se por ir ao Museu do Cinquentenário, há o bom pretexto de ir ver a exposição do que foi a joalharia Wolfers, criada em 1912 pelo arquiteto Victor Horta, em Bruxelas. O museu situa-se no chamado Parque do Cinquentenário, Leopoldo II da Bélgica era riquíssimo e sentiu-se no direito de imitar as opulências parisienses, havia o dinheiro do Congo e a Bélgica caminhava para a categoria da quinta potência industrial do mundo. Assim se fez este aparato de edifícios e jardim, é aqui que está encravado um museu com coleções fabulosas. Por aqui se vai deambular para abrir o apetite à exposição Wolfers, etapa seguinte.




Este museu constitui o núcleo principal dos Museus Reais da Arte e História, aqui estão quatro conjuntos impressionantes: a arqueologia nacional, obras de arte da Antiguidade, artes decorativas europeias e um não menos fabuloso núcleo dedicado às civilizações não europeias. Esclareça-se que a arte africana está num riquíssimo museu à parte, em Tervuren, no limiar de Bruxelas. O viandante foi dar uma expiada a joias referentes à presença romana em solo belga, daí seguiu para objetos da Mesopotâmia, demorou-se na rica coleção egípcia e sentiu-se impressionado com a estátua em bronze do imperador Septímio Severo, que grande beleza.


As artes decorativas europeias, só elas, davam para se passar aqui um dia, tal a sumptuosidade dos painéis de marfim, da ourivesaria, dos relicários, das artes decorativas dos períodos gótico, renascentista e barroco, é impressionante o acervo de retábulos de madeira. Mais adiante, coleções de vidraria, de jarrões, diversas obras da Arte Nova e Arte Deco, indo por aí fora, temos carruagens, trenós e bicicletas, até objetos folclóricos. Aqui não se pode dizer que a variedade é pequena.





Está na hora de tomar decisões, já se palmilharam muitas salas e para levar tudo a preceito temos por diante a arte islâmica, a arte pré-colombiana e ameríndia, a arte indiana e muitas obras da Coreia, do Sudeste Asiático e da Ásia Central, para já não falar na coleção Oceânica. Tem que se ser radical: fica para a próxima, há mais marés que marinheiros, nem os museus acabam nem o viandante desiste do seu amor por Bruxelas, haverá uma próxima vez, assim permitam os fados.



Feita uma pausa para tomar café e deixar os pés descansar, entra-se em pleno na exposição dedicada ao génio arquitetónico de Victor Horta que concebeu a joalharia dos irmãos Wolfers, inaugurada em 1912. Esta firma era no início do século XX uma das mais importantes produtoras de prataria e ourivesaria. Wolfers tornou-se sinónimo de criação artística belga em matéria de Arte Nova e Arte Deco. Em 1909, Victor Horta (1861-1947) foi encarregado de conceber as novas instalações para o estabelecimento dos irmãos Wolfers na rua d’Arenberg, no centro de Bruxelas. A inauguração teve lugar a 4 de novembro de 1912, e o estabelecimento foi reconhecido como obra prodigiosa, sinónimo de vanguarda e de grande prestígio das artes decorativas belgas.





Em 1973, o interior do estabelecimento foi desmantelado e transportado para o Museu do Cinquentenário, procederam-se a restauros, a intenção é reconstruir o espaço idêntico da ourivesaria numa sala de museu. O que o visitante tem aqui à sua disposição é o interior do estabelecimento Wolfers e uma exposição excecional de obras-primas de Philippe Wolfers e do seu filho Marcel. É impressionante o acervo. E a visita mal começou…

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 8 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19871: Os nossos seres, saberes e lazeres (331): No condado de Oxford, a pretexto de um casamento em Fairford (8) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 14 de junho de 2019

Guiné 61/74 - P19890: Notas de leitura (1186): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (10) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Março de 2019:

Queridos amigos,
Aqui se fala de quem morre e a inquietação de comunicar a perda para muito longe ou para muito perto. Vivi uma experiência que ainda não dou por terminada. Em 16 de outubro de 1969, em Ganturé, no regulado do Cuor, uma mina anticarro espatifou um Unimog 404, deixou-me imediatamente o condutor, Manuel Guerreiro Jorge, natural de Monte da Cabrita, Santana da Serra, Ourique, moribundo, foi um sofrimento que se arrastou por horas, exalou o último suspiro em Finete, o médico, David Payne Pereira, nada pôde fazer, os seus órgãos vitais tinham entrado imediatamente em falência aquando da explosão que deflagrou principalmente do seu lado.
O importante é que escrevi para o Sr. Jesuíno Jorge, procurei abafar quanto o moribundo penou, relevando as qualidades do jovem e a consternação que deixara. Imediatamente na volta do correio era-me feito um pedido terrível, descrever ao pormenor todas as vicissitudes daquela morte. O que, como se compreende, não fiz, andei à volta deixando a promessa, não cumprida, de que um dia o iria abraçar no Monte da Cabrita, esse desgosto ninguém mo tira. E aprendi igualmente que esta necessidade descritiva é muito mais universal do que eu pensara. Já em Lisboa, de visita à mãe do meu maior amigo, que morrera em Mocímboa da Praia, também ela mostrou saber todos os pormenores que antecederam a sua partida deste mundo. Continuo a ignorar o que nos leva a querer saber ao pormenor como o nosso ente querido morreu, será que encontramos alívio na aproximação, nesses últimos momentos de vida. Penso que nunca encontrarei resposta, mesmo depois de tudo quanto li e ouvi.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (10)

Beja Santos

“António dos Santos Alberto,
Conto o que me aconteceu
Foi a primeira emboscada
Que a Companhia sofreu.

A minha saída primeira
foi dia 9 de Setembro.
A hora é que não me lembro,
mas foi numa segunda-feira
o meu amigo Teixeira
disse tudo está bem certo.
Mansabá está bem perto
da pior zona dos malvados,
pois passou uns maus bocados
António dos Santos Alberto.

O comer é bem ruim
e a água é pouca também.
Não desejo isto a ninguém,
acreditem que é assim!
Tudo isto para mim,
o coração me comoveu.
O pessoal uma vez não comeu
pela demora dos cozinheiros,
eu mais que os meus companheiros
conto o que me aconteceu.

O amigo quinhentos e três
do Jeep não desceu.
Não sei como não morreu
o Farinha desta vez.
Foi a 16 deste mês,
num dia de trovoada,
caminhando pela estrada,
a seguir à serração,
jogámo-nos todos para o chão:
foi a primeira emboscada.

Íamos nós capinar
de manhã até ao meio-dia
e aquela patifaria
só nos queria era matar.
Estavam-nos sempre a espiar
mas a gente não se rendeu.
Um caso triste se deu:
na quadra seguinte contarei
todas as coisas que sei
que a Companhia sofreu.”

********************

O trovador regista nestes primeiros tempos de comissão a aspereza da adaptação, as perdas humanas, o insólito da emboscada, a comida enfadonha. O que me remete para um livro bastante singular no panorama da literatura da guerra. António Loja, que teve atividade política na Região Autónoma da Madeira e foi professor do ensino secundário, comandou a CCAÇ 1622, em local duríssimo do Sul da Guiné. Muitos anos depois do regresso, gerou uma atmosfera, no dia-a-dia do ambiente hospitalar, onde estava em pós-operatório de uma cirurgia no Hospital de Coimbra, terá o sono ressuscitado, nas pessoas que ia encontrando nos corredores, os seus companheiros de combate, europeus e africanos, mas também homens, mulheres e crianças com quem conviveu naqueles eremitérios. Quando reeditou “As Ausências de Deus” na Âncora Editora, em 2013, convidou-me a apresenta-lo, o que fiz com imensa satisfação, relevei que alguns destes parágrafos irão fazer obrigatoriamente parte de qualquer antologia que se venha a escrever sobre a guerra da Guiné, é intensíssima a carga emocional da recuperação da sua memória: aqueles dois amigos que andaram juntos na escola, que foram recrutados no mesmo ano, destacados para a mesma unidade, quase dois gémeos típicos que caíram juntos e que depois foram enviados às suas famílias em dois caixões que viajaram no porão do mesmo navio e que depois foram enterrados no mesmo cemitério, nos arredores de Barcelos; o Roncolho, um herói improvisado que um dia gritou “Ai minha mãe!” lá numa emboscada e a quem o capitão teve de dar uma estalada e que estupidamente morreu na véspera da partida, atropelado para os lados do aeroporto; as queixas da dobrada liofilizada, dos coronéis incapazes, dos momentos de depressão que assaltam toda a gente…

Oiçamos António Loja e os seus dons narrativos:
“Quando estava na guerra os primeiros soldados que morreram foram europeus. Sentíamos evidentemente a dor de ver desaparecer jovens de vinte anos, mas participar a sua morte aos seus pais ou suas mulheres era tarefa que ficava a cargo das autoridades das suas terras de residência. Para além de um processo burocrático em que se descreviam as condições em que ocorrera a morte, de colocar o corpo num caixão e enviá-lo para Bissau a fim de ser transferido para a sua terra nada mais restava ao comandante de Companhia para além de dizer duas palavras aos outros soldados na formatura da manhã e extrair da ocorrência os ensinamentos úteis para evitar a sua repetição.

Com os soldados nativos a situação era diferente. As suas famílias viviam na aldeia, junto ao quartel, e sabia ter de enfrentar a situação se houvesse algum desastre com um deles. E foi precisamente o que aconteceu quando Mutaro Jau, filho do chefe da aldeia, um velhote trémulo e débil de nome Suleimane Jau, morreu no cruzamento de Guileje. Carregámo-lo em padiola durante todo o percurso de regresso.
Quando chegámos à vista da aldeia mandei Umarú Julde Jaló, o meu temperamental guarda-costas, avisar o chefe da aldeia que queria falar com ele. Encontrámo-nos à porta do quartel-aldeia e ele estava na expetativa de qualquer coisa fora do comum. Disse-lhe, sem rodeios:
- Suleimane, o teu filho morreu em Guileje.
O homem olhou-me de um modo que nunca me permitiria descobrir se tinha ficado em estado de choque ou se representava o papel que lhe fora destinado no teatro da vida:
- Vontade de Deus, nosso capitão, vontade de Deus.
‘A vontade de Alá é infinita! Só Alá é nosso Deus! Seja feita a vontade de Alá!’. São assim os muçulmanos.
Mas será esta fé tão infinita e inesgotável? Dois meses depois, um rapazinho que em Guileje pediu para vir no carro da tropa que escoltávamos de volta a Mejo foi derrubado por um tiro durante uma emboscada inimiga.
- Quem é ele? - Perguntei eu.
- É filho do chefe de Mejo, respondeu-me Umarú, então presente, assumindo de modo pleno a sua função de meu guarda-costas.
- Quando chegarmos à aldeia vai chamar o chefe para falar comigo.
- Sim, meu capitão.

Encontrámo-nos, mais uma vez, à porta da aldeia e ele mostrou-se de novo na expectativa de qualquer coisa inesperada. Disse-lhe, ainda sem rodeios:
- Suleimane, o teu filho morreu na emboscada.
Desta vez a fé pareceu fraquejar. Deus estava ausente… O homem ficou com os olhos espantados, em evidente estado de choque. Não houve palavras, nem de fé nem de desespero, mas duas lágrimas grossas correram-lhe pela face negra e rugosa. Abracei-o.”

“As Ausências de Deus” também levantam o delicado problema da arbitrariedade das fronteiras impostas à Guiné-Bissau. António Loja viu o irreparável e destaca a intensidade das tensões desses retalhos arbitrários:
“Sambele, régulo de Contabane, no Sul da Guiné, tinha das fronteiras uma visão mais coerente que o comum dos chefes políticos africanos. E agia em conformidade, provocando embaraços políticos nas instituições internacionais, mais interessadas em manter o status quo já tornado única possibilidade de gestão do difícil problema mas que continua a levantar atritos insanáveis entre a lei tradicional e a tradição. Feito tenente pelo Exército Português, Sambele vestia sempre a sua farda de caqui amarelo e ostentava sobre os ombros a insígnia do seu posto, tinha a vantagem de lhe permitir juntar a autoridade tradicional do régulo ao prestígio de partilhar com a potência colonial, aos olhos do seu povo, uma fração da força que aquela representava.
Para nós, a ‘sua’ zona terminava na fronteira que acordáramos com os franceses, talvez setenta ou oitenta anos atrás, enquanto, para ele, a ‘sua’ zona era a do regulado tradicional, que se estendia mais para Sul, muito para além da aldeia de Mampatá Bacirgo, limite que tínhamos a preocupação de não ultrapassar. Do outro lado da fronteira vinham ataques dirigidos aos nossos aquartelamentos e às aldeias nativas. Defendíamos aqueles, enquanto Sambele e os seus caçadores nativos, a quem entregáramos uniformes camuflados e centenas de espingardas Mauser do nosso exército, cuidavam da defesa das aldeias, a que acorríamos sempre que necessário, prosseguindo os atacantes até à linha da fronteira. Para ele, o ‘seu’ território estendia-se por todo o Sul do Forreá e alcançava uma larga fatia da Guiné Conacri, pelo menos até Boké. E agia em conformidade. Pouco antes da minha chegada à Guiné fizera uma incursão no território vizinho, um ataque a algumas aldeias do seu regulado, manifestamente na Guiné Conacri.
Falei a Sambele e tentei convencê-lo a abandonar as suas reivindicações àquele território, ele replicou:
- Meu capitão, não tenho culpa que português e francês tenham feito fronteira no lugar errado. Regulado do meu pai ia muito mais longe. E eu vou lá para mostrar a minha autoridade. Assim, meu povo que vive para lá da fronteira aprende a não vir para a nossa Guiné matar nossas mulher e atacar quartel das nossa tropa”.

António Loja é admirável neste transcurso memorial, a partir de um pós-operatório, em Coimbra. Tão impressivo, e tão conhecedor daquilo que nós vivemos e que o bardo Santos Andrade aqui dedilha que a ele voltaremos numa próxima oportunidade.

(continua)
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Nota do editor

Poste anterior de 7 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19869: Notas de leitura (1184): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (9) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 10 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19878: Notas de leitura (1185): “As Papaias da Guiné”, por António Coelho Ferreira; Chiado Books, Agosto de 2018 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P19889: Voluntário em Bissau, na Escola Privada Humberto Braima Sambu - Crónicas de Luís Oliveira (10): Se fosse fácil não seriamos corajosamente voluntários, seriamos apenas turistas.









Guiné-Bissau > Bissau > Escola Privada Humberto Braima Sambu (março-maio de 20919) > Uma experiência, enriquecedora, de voluntariado

Fotos: © Luís Mourato Oliveira  (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Mensagem do Luís Mourato Oliveira:

(i)  nosso grã-tabanqueiro nº 730;

(ii)  foi alf mil inf, de rendição individual, na açoriana CCAÇ 4740 (Cufar, 1973, até agosto);

(iii)  e, no resto da comissão, o último comandante do Pel Caç Nat 52 (Setor L1 , Bambadinca, Mato Cão e Missirá, 1973/74): 

(iv) é lisboeta,fez o Liceu Pedro Nunes, é bancário reformado, foi praticante e treinador de andebol;

(v)  tem fortes ligações à minha terra natal, onde agora vivo, Lourinhã, Oeste, Estremadura...

(vi) acaba de regressar de uma missão de 3 meses em Bissau, como voluntário na Escola Privada Humberto Braima Sambu, no âmbito de um projeto da associação sem fins lucrativos ParaOnde, que promove o voluntariado em Portugal e no resto do Mundo



Data: 76 de junho de 2019. 12h52:
Assunto: Missão na Guiné




Bom dia Luís
Aqui vai o texto  enviado para a ORG ParaOnde. relatando a minha experiência de voluntariado na Guiné-Bissau.

Abraço
Luís Oliveira



Porque devemos fazer voluntariado na Guiné-Bissau

por Luís Oliveira



A Guiné-Bissau é um pequeno País com cerca de 1.800.000 habitantes que, após uma guerra de libertação com o colonialismo português, conquistou a independência em Setembro de 1974. Desde então inúmeras vicissitudes têm contribuído para o enorme atraso económico e social que a sua população vive nos dias de hoje.

A instabilidade política e governativa, consequência de 20 golpes de Estado desde a data de independência, sendo que dezasseis deles não foram bem sucedidos, são a principal causa dos graves problemas que hoje grassam no País, colocando-o entre os mais pobres do Mundo.

Grande parte da população, cerca de 26%, sofre grave situação de insegurança alimentar e desnutrição e desde 2017 este valor tem tendência para aumentar. Como consequência existem fortes índices de anemia nas mulheres em idade reprodutiva e nas crianças com efeitos directos no atraso do desenvolvimento.

O Plano Nacional de Desenvolvimento Sanitário III prevê que 90% do orçamento da saúde seja financiado por apoio externo e população não confia no sistema. Patologias como a tuberculose,  malária e febre amarela contribuem para que a esperança de vida não ultrapasse os 58,2 anos.

A corrupção é uma doença endémica que atinge os governantes, o funcionalismo público e as autoridades policiais colocando a Guiné na posição 170 entre os 180 países mais corruptos do Mundo o que acentua a pobreza instalada, agrava as desigualdades, atinge os direitos humanos e fragiliza as instituições do Estado.

A Educação no ensino básico é em grande parte garantida pela iniciativa de privados e, não sendo obrigatória, 23% das crianças estão fora do sistema educativo. No ensino estatal a falta de pagamento aos professores que passam meses sem receber dá origem a greves ininterruptas que originam que das quinze unidades curriculares previstas no ensino básico, apenas três ou quatro são cumpridas.

Apesar de ter decorrido em Abril último em Bubaque o V Congresso da Educação Ambiental dos PALOP e Galiza, actualmente mais de 90% dos guineenses cozinham a carvão, a recolha do lixo é limitada e a sua eliminação é feita por incineração sem qualquer tratamento provocando enorme poluição ambiental.

O corte ilegal de árvores e a destruição da floresta determinam alterações climáticas significativas reduzindo em volume e tempo a época das chuvas com consequências negativas na produção agrícola.

A actividade piscatória está controlada por embarcações estrangeiras que através do arrasto selvagem delapidam os recursos piscícolas do País.

Neste cenário um povo maravilhoso, resiliente e solidário,  tem de sobreviver e conhecendo as suas dificuldades e dos seus irmãos partilham com generosidade o arroz da refeição familiar com qualquer um que chegue, mesmo se desconhecido.

Os mais jovens inspirados pelo sociólogo guineense Miguel Barros têm consciência crítica dos problemas do País e dialogam sobre as suas origens e como ultrapassá-los, outros já sem esperança optam pela viagem da emigração por vezes uma aventura fatal.

No dia a dia têm de se divertir. A festa é um lenitivo que os anima para o dia seguinte e os faz esquecer as dificuldades por isso gostam de brincar, conviver e arranjar pretexto para soltar a alegria que reside muito no fundo dos seus corações.

Aos voluntários cabe a grande responsabilidade de lhes levar o que mais falta lhes faz e não são apenas bens materiais.

É necessário transmitir aos guineenses uma mensagem inspiradora e de confiança no seu potencial, incentivá-los a não descurarem a educação que é a única via que os libertará e a garantia do seu futuro, a terem orgulho na Pátria que libertaram e capacidade para fazerem dela um lar confortável para a família guineense. 

Cabe aos voluntários dar um exemplo de trabalho, organização e rigor e transmitir aos guineenses que, sem estes valores e sem o empenho pessoal de todos eles, os seus objectivos nunca serão atingidos.

Foi para isto que fui voluntário na Guiné-Bissau. pois acredito no potencial e capacidades dos guineenses, na sua generosidade, na sua alegria que pode transformar um trabalho árduo num divertimento.

Com humanidade, solidariedade e um grande sorriso é mais fácil transformar o Mundo.

Se fosse fácil não seríamos corajosamente voluntários, seríamos apenas turistas.
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Nota do editor:

Último poste da série > 3 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19854: Voluntário em Bissau, na Escola Privada Humberto Braima Sambu - Crónicas de Luís Oliveira (9): Dicas para viver e sobreviver em Bissau: Custos mensais de estadia aproximados por voluntário com a casa habitada por 3 pessoas: 105 mil Francos CFA (c. 163,00 Euros)

Guiné 61/74 - P19888: Parabéns a você (1638): Francisco Silva, ex-Alf Mil Art da CART 3492 e Pel Caç Nat 51 (Guiné, 1971/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 11 de Junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19881: Parabéns a você (1637): Fernando Tabanez Ribeiro, ex-2.º Tenente da Reserva Naval (Guiné, 1972/73)

quinta-feira, 13 de junho de 2019

Guiné 61/74 - P19887: 15 anos a blogar, desde 23/4/2004 (8): O soldado Machado, de etnia cigana: 'Ó Barrelas, pagas-me uma bejeca ?!'... Uma "estória" bem humorada do Mário Pinto (1945.2019)


Mário Pinto (1945-2019):  além de animador nas redes sociais,  foi também um dos grandes organizadores dos convívios do pessoal da CART 2519, "Os Morcegos de Mampatá", igualmente conhecidos por "Os Coirões de Mampatá", comandados pelo cap art Jacinto Manuel Barrelas... Estiveram em Buba, Aldeia Formosa e Mampatá (1969/71), ao tempo em que era comandante do COP 4 o major Carlos Fabião.

Sobre este oficial superior escreveu o seguinte, em 10/2/2015 na página do Facebook Tabanca de Mampatá - Grupo Público:

 (...) " A primeira vez que o vi, foi no meu desembarque em Buba em meados de Maio de 1969, ainda periquito e desconhecendo aquilo que teria de infrentar apartir daí. Na formatura formal de apresentação em Buba, fiquei a conhecer o então Major Carlos Fabião, comandante do COP4.
Quem, como nós, CART. 2519,  habituados á disciplina militar imposta pelo seu comandante, estranhou, e  de que maneira, a atitude descontraída e informal de Carlos Fabião quando nos recebeu, de calções e camisa com o seu bastão, a dirigir algumas indirectas ao nosso Capitão Barrelas, avisando que no seu sector era tudo mato e não uma parada de qualquer quartel onde os militares teriam de andar sempre aprumados. No seu sector permitia que os mesmos andassem á vontade quanto a bigodes, barba e vestimenta, o que era necessário era que os homens se sentissem á vontade e com espírito guerreiro para enfrentarem as vicitudes que iriam encontrar daí para a frente. Desejou boa sorte a todos e que o nosso destino seria Mampatá e a nossa missão os trabalhos da nova estrada Buba-Aldeia Formosa.
Para mim, que estava habituado à disciplina ferrea do meu comandante de Companhia foi uma lufada de ar fresco este seu discurso... O certo é que o Capitão Barrelas nunca mais foi o mesmo daí em diante, ele próprio com algum espanto meu aderiu à moda do calção, tronco nu e chinela no pé.
Isto a meu ver, só foi possível depois do discurso de boas vindas do comandante do COP4, Major Carlos Fabião" (...) 


"Hoje é dia de coluna, algures na estrada Buba-Aldeia Formosa 1969/71" (Mário Gualter Pinto, 12 de fevereiro de 2012, página do Facebook Tabanca de Mampatá - Greupo Público) (com a devida vénia...). Não temos a certeza se a foto era da autoria do Mário Pinto, administrador da página. De qualquer modo, passa a ser de todos nós...


1. Esta foi a primeira das "estórias do Mário Pinto" (que publicou cerca de 4 dezenas) (*)... Fomos repescá-la para alimentar esta série dos "15 anos a blogar, desde 23/4/2004" (**).  É um dupla homenagem, ao nosso Mário Pinto (1945-2019), que nos acaba de deixar, e também aos nossos camaradas de etnia cigana, que passaram pelo TO da Guiné. Não sabemos quantos foram, nem muito muito os que cumpriram o serviço militar na época. Mas temos o descritor "ciganos" no nosso blogue. A "estória" vale também pelo bom humor de caserna.

No seu blogue, "CART 2519, Os Morcegos de Mampatá", em poste de 23 de agosto de 2009 , o Mário Pinto já tinha deixado esta nota de homenagem ao seu camarada Machado, o "cigano" (que, convém dizê-lo, não é uma "raça", mas quando muito um "grupo étnico": em Portugal e no resto do mundo, não há "raças humanas"; o termo "raça" era ainda usado no nosso tempo, mas sem "conotação racista", tal como o Mário Pinto o usa aqui).

(...) "Quem não se lembra do cigano, José António Pereira Machado, soldadi atirador do 1.º Grupo de Combate ?!

Foi um dos inconformados e controversos soldados que os Morcegos tiveram nas suas fileiras. No mato era um bom combatente, sempre activo e combativo, demonstrava não ter medo do perigo, mas no aquartelamento era problemático e conflituoso.

A sua raça e origem não permitia a convivência com os seus camaradas. Por diversas vezes, tememos a seu abandono, ou seja que o mesmo desertasse, mas o mesmo tornou-se sempre digno dos Coirões.

Por ser uma figura carismática da nossa Companhia, deixo aqui uma pequena citação ao Cigano." (...)


O soldado Machado, de etnia cigana: ' Ó Barrelas, pagas-me uma bejeca ?'

por Mário Pinto


O “Cigano”, como era conhecido o soldado Machado (creio que era mesmo da etnia cigana), foi protagonista de um episódio hilariante, mas muito real, que um dia “atropelou” o que não podia ser “abandalhada” - a rígida Disciplina Militar -, que na tropa se exige (creio que ainda hoje esta se mantém), em relação aos superiores hierárquicos.

Certo dia, o nosso capitão integrou-se num grupo de combate que ia patrulhar a nossa ZA - Zona de Acção, onde ia o nosso camarada Machado. Depois de percorrida já uma vasta área do patrulhamento habitual, e perto dum local por todos considerado de elevado risco, o Machado sai-se com esta:

- Ó meu capitão, à nossa frente estão pegadas do IN.

Isto em pleno mato... O capitão ripostou:

- Ó meu coirão, não sabes o meu nome, eu sou o Barrelas!

O patrulhamento terminou ao findar do dia e procedeu-se ao respectivo regresso ao aquartelamento de Mampatá.

Na cantina, que era comum a todos, praças, sargentos e oficiais, depois do banho, o camarada Machado tem este desplante perante a admiração de todos os presentes:

- Ó Barrelas, não me pagas uma bejeca?!

O capitão, com o seu ar autoritário - de Comandante -, virou-se para o Machado e disse:

- Ó meu coirão, já não me conheces, eu sou o teu capitão Barrelas, por isso deves tratar-me como tal. Quando te dirigires a mim, tratas-me por meu capitão!

O mesmo, atónito com a situação, retorquiu:

- Mas o senhor lá atrás disse-me para o tratar por Barrelas!...

Aqui o capitão riu-se da situação e acabou mesmo por pagar a “bejeca” ao Machado.

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Último poste da série > 9 de junho de  2019 > Guiné 61/74 - P19874: 15 anos a blogar, desde 23/4/2004 (7): o inferno de Bissá: a morte do balanta Abna Na Onça, capitão de 2ª linha (Abel Rei, ex-1.º cabo at, CART 1661, Fá, Enxalé, Bissá, Porto Gole, 1967/68)

quarta-feira, 12 de junho de 2019

Guiné 61/74 - P19886: Bibliografia de uma guerra (96): "Capital Mueda", por Jorge Ribeiro; Unicepe (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Setembro de 2018:

Queridos amigos,
No que tange à literatura da guerra colonial, convindo distinguir o que é peculiar a cada um dos teatros de operações, há igualmente que saber pôr a nível horizontal o que une todas as experiências vividas, entre o Atlântico e o Índico, e aí podemos contar, inequivocamente, com peças de grande nível como este "Capital Mueda", de Jorge Ribeiro.
Reportagem simultaneamente hiperbólica e crua, entremeia o rasteiro, o extremamente brutal e o onírico. Peça, creio eu, que um dia constará na antologia das melhores páginas com que esmaltámos este subgénero literário.

Um abraço do
Mário


Capital Mueda, uma viagem alucinante de Mueda a Nangololo

Beja Santos

Capital Mueda, por Jorge Ribeiro, nas suas duas primeiras edições, datadas de fevereiro e maio de 1993, respetivamente, é um trabalho jornalístico na feição de reportagem, caraterizado por um tom hiperbólico e barroco pouco usual, descreve uma coluna de má memória que sai de Mueda em direção a Nangololo, um registo diário de alguém que faz cinema e fotografia e irá repertoriar, na experiência de todos aqueles infortúnios que pôde observar como protagonista. Ia para filmar e viu um dos lados mais horrendos que a guerra permite. Coisas que a censura, como é óbvio, não permitiria que aparecessem na televisão ou por meio escrito.

Estamos a 3 de fevereiro, não se sabe em que ano. Sabemos, sim, que há uma Companhia com dez secções de combate, três pelotões de sapadores, doze Berliets, quatro baterias de morteiros, dois granadeiros, duas Panhard, uma Fox, dez Unimogs, dois Caterpillas, outra Companhia completa de atiradores para rendição, e um número calculado em cerca de trinta camiões “civis”. Uma longa serpente verde escura, pronta a arrastar-se por aquele mato de Cabo Delgado.

Aquele fotocine vai escolher o camião dos sapadores, posiciona-se em quarto lugar, antes ao rebenta-minas, uma Berliet, uma secção de atiradores. O fotocine leva por obrigação uma G-3, a sua arma, no entanto, é uma máquina de filmar que custa tanto como um BMW. Encaixa-se no camião com as bobines de Gevapan, os canhões das objetivas, a utilíssima Pan-Cinor.

O que têm pela frente, em termos de viagem até Mangololo, é mais do que temível, não se anda por este itinerário há mais de um ano. A coluna começa a mover-se, morosamente. Fica-se a saber que no primeiro dia não se devem ter afastado de Mueda mais de três quilómetros, havia que desbastar o mato, afastar troncos da picada, silvas entrelaçadas. Regista lamentações, casquinadas de caserna, o dia passa em limpeza da estrada, mais uma noite a dormir debaixo da Berliet, há quem insista em ouvir Jimmy Hendrix. A Frelimo anuncia-se com descargas de morteiros, há feridos, muito trabalho para o enfermeiro.
O cronista acorda de manhã cedo e dá a notícia:  
“Vejo todo o pessoal empoleirado nos carros, nus. Uns sacodem os camuflados, outros catam as cuecas e as meias. Todos proferem asneirolas. Principalmente aqueles que imploram para que alguém lhes arranque da pele as cabeças de talaca. Talaca é a designação local de uma formiga gigantesca, que possui a particularidade de nunca mais largar a presa onde uma vez enterrou as mandíbulas. A estas térmitas assustadoras, negras e corpulentas, quando se lhes puxa o corpo, deixam lá ficar a cabeça. A noite passada dormimos sobre um ninho de talaca”.

Foi detetada qualquer coisa muito grande em plena picada. O sapador vai estudar a situação e informa: “Eles agora põem três ou quatro no correr. Só que a primeira é de efeito retardado; para além de serem anticarro. Pode regular-se para o segundo, terceiro ou quatro rodado que lhe passar por cima. Há um dispositivo para andares que só à segunda, terceira ou quarta calcadela faz soltar a mola, que por sua vez dispara o percutor sobre a mina”.

O sapador começa a trabalhar quando desata uma grande emboscada. O rebenta-minas foi à vida com a bazucada que levou no motor, com o anoitecer a Berliet assume um aspeto fantasmagórico. Já estamos no quinto dia, as conversas são cada vez mais desencontradas, tanto se fala de comida como de sexo, há queixumes de todos os formatos. Procuram provocar o fotocine, perguntam-lhe onde arranjou o tacho e ele responde: “Foi o médico. Receitou-me emoções fortes, as auras dos grandes espaços, respirar oxigénio puro do mato, reforçar a saúde em revigorantes operações e colunas”. Os batedores flanqueiam as bermas da picada, quem ouvia Jimmy Hendrix ouve agora Jim Morrison.

As minas antipessoais vão fazendo os seus estragos, nem sempre há condições para o helicóptero descer em segurança, o sofrimento ribomba naquela coluna sem fim. Palmilha-se lentamente as distâncias, rebentam minas, rebenta imenso tiroteio, a coluna encontra-se envolta numa grande nuvem de fumo, polvorenta. O cenário é patético: “Distinguem-se agora os gemidos dos baleados, nas pernas, nos braços. Há histerias incontroláveis de batismo de fogo. Alguns jerricãs foram alvejados e estão a arder. Correrias, de um lado. E vejo gente do outro, a esvair-se, caída para fora da picada”.

A saga parece ter acabado quando chegou a tropa de Nangololo, faz-se o balanço dos carros desfeitos, dos mortos e feridos. O repórter dá conta:
“Passamos por mais um marco da administração territorial portuguesa. Para trás ficou o histórico Posto 15 do caminho Mueda-Nangololo. Há quem defenda que foi aqui que tudo começou, com o assassinato, pela PIDE, em agosto de 1964, do padre Boorman, missionário branco defensor dos direitos dos negros”.
Chega novo helicóptero para recolher feridos, no céu ouve-se o roncar de dois T-6, dois pontos negros. Duas horas foi o tempo gasto para cortar o tronco maior, um enorme abatis já a caminho da pista de Nangololo. Chega-se ao destacamento, há militares que se reconhecem, entre os que estão e os que chegam. E o fotocine descobre para além dos mantimentos, o essencial da coluna é material de construção para o novo teto da igreja. Alguém barafusta: “A tropa vive aqui sem condições, como animais. Mas eles decidiram defender a igreja”.

E assim termina a atribulada e sanguinolenta coluna entre Mueda e Nangololo:
“Um telhado para a igreja. Um telhado para a igreja. Um telhado para a igreja. Tenho eco dentro da minha cabeça.
Sento-me na terra. Estendo a vista e o pensamento para longe, muito longe daqui. Fixo para sempre na retina o admirável matiz de um pôr-de-sol no planalto. Em Nangololo.”

O trabalho de Jorge Ribeiro conheceria novas edições aumentadas. Deverá muito do seu sucesso ao tão coloquial, ao dantesco quanto baste, à verosimilhança de uma coluna em terreno áspero, muitíssimo áspero. Um documento fora de série, poucas vezes referenciado como peça maior da literatura da guerra, de toda ela.


Ao adquirir o livrinho dei conta que Jorge Ribeiro ofereceu um exemplar ao Dr. Raul Rêgo, que foi diretor do jornal República, ministro da Comunicação Social do I Governo Provisório, historiador e político.
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Nota do editor

Último poste da série de 5 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19860: Bibliografia de uma guerra (95): Guiné-Bissau: a causa do nacionalismo e a fundação do PAIGC, por António Duarte Silva em Cadernos de Estudos Africanos (Mário Beja Santos)