quarta-feira, 12 de junho de 2019

Guiné 61/74 - P19886: Bibliografia de uma guerra (96): "Capital Mueda", por Jorge Ribeiro; Unicepe (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Setembro de 2018:

Queridos amigos,
No que tange à literatura da guerra colonial, convindo distinguir o que é peculiar a cada um dos teatros de operações, há igualmente que saber pôr a nível horizontal o que une todas as experiências vividas, entre o Atlântico e o Índico, e aí podemos contar, inequivocamente, com peças de grande nível como este "Capital Mueda", de Jorge Ribeiro.
Reportagem simultaneamente hiperbólica e crua, entremeia o rasteiro, o extremamente brutal e o onírico. Peça, creio eu, que um dia constará na antologia das melhores páginas com que esmaltámos este subgénero literário.

Um abraço do
Mário


Capital Mueda, uma viagem alucinante de Mueda a Nangololo

Beja Santos

Capital Mueda, por Jorge Ribeiro, nas suas duas primeiras edições, datadas de fevereiro e maio de 1993, respetivamente, é um trabalho jornalístico na feição de reportagem, caraterizado por um tom hiperbólico e barroco pouco usual, descreve uma coluna de má memória que sai de Mueda em direção a Nangololo, um registo diário de alguém que faz cinema e fotografia e irá repertoriar, na experiência de todos aqueles infortúnios que pôde observar como protagonista. Ia para filmar e viu um dos lados mais horrendos que a guerra permite. Coisas que a censura, como é óbvio, não permitiria que aparecessem na televisão ou por meio escrito.

Estamos a 3 de fevereiro, não se sabe em que ano. Sabemos, sim, que há uma Companhia com dez secções de combate, três pelotões de sapadores, doze Berliets, quatro baterias de morteiros, dois granadeiros, duas Panhard, uma Fox, dez Unimogs, dois Caterpillas, outra Companhia completa de atiradores para rendição, e um número calculado em cerca de trinta camiões “civis”. Uma longa serpente verde escura, pronta a arrastar-se por aquele mato de Cabo Delgado.

Aquele fotocine vai escolher o camião dos sapadores, posiciona-se em quarto lugar, antes ao rebenta-minas, uma Berliet, uma secção de atiradores. O fotocine leva por obrigação uma G-3, a sua arma, no entanto, é uma máquina de filmar que custa tanto como um BMW. Encaixa-se no camião com as bobines de Gevapan, os canhões das objetivas, a utilíssima Pan-Cinor.

O que têm pela frente, em termos de viagem até Mangololo, é mais do que temível, não se anda por este itinerário há mais de um ano. A coluna começa a mover-se, morosamente. Fica-se a saber que no primeiro dia não se devem ter afastado de Mueda mais de três quilómetros, havia que desbastar o mato, afastar troncos da picada, silvas entrelaçadas. Regista lamentações, casquinadas de caserna, o dia passa em limpeza da estrada, mais uma noite a dormir debaixo da Berliet, há quem insista em ouvir Jimmy Hendrix. A Frelimo anuncia-se com descargas de morteiros, há feridos, muito trabalho para o enfermeiro.
O cronista acorda de manhã cedo e dá a notícia:  
“Vejo todo o pessoal empoleirado nos carros, nus. Uns sacodem os camuflados, outros catam as cuecas e as meias. Todos proferem asneirolas. Principalmente aqueles que imploram para que alguém lhes arranque da pele as cabeças de talaca. Talaca é a designação local de uma formiga gigantesca, que possui a particularidade de nunca mais largar a presa onde uma vez enterrou as mandíbulas. A estas térmitas assustadoras, negras e corpulentas, quando se lhes puxa o corpo, deixam lá ficar a cabeça. A noite passada dormimos sobre um ninho de talaca”.

Foi detetada qualquer coisa muito grande em plena picada. O sapador vai estudar a situação e informa: “Eles agora põem três ou quatro no correr. Só que a primeira é de efeito retardado; para além de serem anticarro. Pode regular-se para o segundo, terceiro ou quatro rodado que lhe passar por cima. Há um dispositivo para andares que só à segunda, terceira ou quarta calcadela faz soltar a mola, que por sua vez dispara o percutor sobre a mina”.

O sapador começa a trabalhar quando desata uma grande emboscada. O rebenta-minas foi à vida com a bazucada que levou no motor, com o anoitecer a Berliet assume um aspeto fantasmagórico. Já estamos no quinto dia, as conversas são cada vez mais desencontradas, tanto se fala de comida como de sexo, há queixumes de todos os formatos. Procuram provocar o fotocine, perguntam-lhe onde arranjou o tacho e ele responde: “Foi o médico. Receitou-me emoções fortes, as auras dos grandes espaços, respirar oxigénio puro do mato, reforçar a saúde em revigorantes operações e colunas”. Os batedores flanqueiam as bermas da picada, quem ouvia Jimmy Hendrix ouve agora Jim Morrison.

As minas antipessoais vão fazendo os seus estragos, nem sempre há condições para o helicóptero descer em segurança, o sofrimento ribomba naquela coluna sem fim. Palmilha-se lentamente as distâncias, rebentam minas, rebenta imenso tiroteio, a coluna encontra-se envolta numa grande nuvem de fumo, polvorenta. O cenário é patético: “Distinguem-se agora os gemidos dos baleados, nas pernas, nos braços. Há histerias incontroláveis de batismo de fogo. Alguns jerricãs foram alvejados e estão a arder. Correrias, de um lado. E vejo gente do outro, a esvair-se, caída para fora da picada”.

A saga parece ter acabado quando chegou a tropa de Nangololo, faz-se o balanço dos carros desfeitos, dos mortos e feridos. O repórter dá conta:
“Passamos por mais um marco da administração territorial portuguesa. Para trás ficou o histórico Posto 15 do caminho Mueda-Nangololo. Há quem defenda que foi aqui que tudo começou, com o assassinato, pela PIDE, em agosto de 1964, do padre Boorman, missionário branco defensor dos direitos dos negros”.
Chega novo helicóptero para recolher feridos, no céu ouve-se o roncar de dois T-6, dois pontos negros. Duas horas foi o tempo gasto para cortar o tronco maior, um enorme abatis já a caminho da pista de Nangololo. Chega-se ao destacamento, há militares que se reconhecem, entre os que estão e os que chegam. E o fotocine descobre para além dos mantimentos, o essencial da coluna é material de construção para o novo teto da igreja. Alguém barafusta: “A tropa vive aqui sem condições, como animais. Mas eles decidiram defender a igreja”.

E assim termina a atribulada e sanguinolenta coluna entre Mueda e Nangololo:
“Um telhado para a igreja. Um telhado para a igreja. Um telhado para a igreja. Tenho eco dentro da minha cabeça.
Sento-me na terra. Estendo a vista e o pensamento para longe, muito longe daqui. Fixo para sempre na retina o admirável matiz de um pôr-de-sol no planalto. Em Nangololo.”

O trabalho de Jorge Ribeiro conheceria novas edições aumentadas. Deverá muito do seu sucesso ao tão coloquial, ao dantesco quanto baste, à verosimilhança de uma coluna em terreno áspero, muitíssimo áspero. Um documento fora de série, poucas vezes referenciado como peça maior da literatura da guerra, de toda ela.


Ao adquirir o livrinho dei conta que Jorge Ribeiro ofereceu um exemplar ao Dr. Raul Rêgo, que foi diretor do jornal República, ministro da Comunicação Social do I Governo Provisório, historiador e político.
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Nota do editor

Último poste da série de 5 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19860: Bibliografia de uma guerra (95): Guiné-Bissau: a causa do nacionalismo e a fundação do PAIGC, por António Duarte Silva em Cadernos de Estudos Africanos (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Fernando Ribeiro disse...

Mário Beja Santos escreveu:

«Estamos a 3 de fevereiro, não se sabe em que ano. (...)»

"Estamos" no ano de 1973, segundo se pode ler em https://www.facebook.com/groups/picadascabodelgado/permalink/2262805137065201/.