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Lai Yong e Bernardo, uma História Simples - Parte I
por António Graça de Abreu
Se não trazem amantes para os quartos,
as vidas dos anjos não passam de um sonho.
Li Shangyin (813-858)
Grave e leda no gesto, e tão fermosa
Que se amansava o mar de maravilha.
Camões, Os Lusíadas, Canto VI, 21
I
Cantão, ano de graça de 1981, Outubro.
Diante da cidade, no pequeno cais fluvial do outro lado do braço do rio das Pérolas, o barco da ligação nocturna Cantão-Macau está prestes a partir.
A polícia chinesa procedeu à rigorosa verificação de passaportes e salvos condutos, vistoriou as bagagens dos cidadãos, cerca de duas centenas, que viajam no ferry da noite rumo à pequena cidade portuguesa, na península do Santo Nome de Deus, na China.
Sou o único estrangeiro a bordo. Cheguei esta tarde a Cantão, depois da longa viagem desde Pequim, trinta e nove horas, 2.700 quilómetros na carruagem yingwoche 硬卧车, ou seja, “cama dura”, no beliche do meio de um comboio ronceiro, fumegante e sujo.
Agora, o naviozinho, uma espécie de cacilheiro meio alindado, acomoda os passageiros para o possível sono da noite numa vasta camarata, com dois pisos iguais em convés coberto, tipo salão, cada andar com uma centena de camas, todas unidas umas às outras.
Depois do comboio, antevejo uma noite tranquila, embalado pelo navegar ritmado do barco, nos cento e trinta quilómetros até Macau por águas escuras, barrentas,mas bonançosas, no delta do rio das Pérolas.
Cabe-me em sorte o leito número 8 no piso inferior do “cacilheiro” chinês. Oito é um bom número, associado à prosperidade e à riqueza. Deposito a mala, apalpo acama, instalo-me.
Mesmo ao lado, no número 9 – outro número de excelsas qualidades a apontar para longa vida, poder e harmonia, – está uma menina chinesa aí de vinte anos, de pernas cruzadas, bonitas, sentada no colchão. Esplendorosa. Surpreende-se, curiosa com a minha presença, tal como eu me espanto face à sua inesperada aparição.
Vamos dormir, lado a lado, separados por um estreito tabique de madeira, ao rés dos nossos corpos. A chinesa não é bem menina, mais uma mulher jovem, 'mignonne', o rosto cheio, os olhos amendoados e fundos, os cabelos descendo pelos ombros e um sorriso que passeia na fissura da almofada dos lábios, e chega até mim. Sorrio também.
O barco vai descendo o rio. A meu lado, que sorte, que formosa mulher!
Ajeitamo-nos nas camas, é quase hora de fechar os olhos para um possível sono descansado.
No meu catastrófico chinês mandarim, saúdo a inesperada companheira de tãopróximos espaços a compartilhar.
– Boa noite, como te chamas?
– Li Yang, mas em cantonense chamo-me Lai Yong.
– Eu sou Bernardo, português, vivo há quatro anos em Pequim, onde trabalho e tenho a minha vida. Esta é a minha terceira viagem a Macau. Ni ne? E tu?
– Nasci em Cantão, vim pequena para Macau, com os meus pais.
– O que é que fazes, Lai Yong?
– Trabalho numa loja de arte chinesa, pintura tradicional, caligrafia e livros.
Este o essencial arrevesado da conversa. Estamos apresentados. Outra vez o fíníssimo sorriso a baloiçar nos lábios da Lai Yong e ela a enroscar-se no edredão, preparando o sono da noite. Pergunto-lhe em mandarim, depois em inglês:
– Que língua vamos falar?
– Não vamos falar, vamos dormir. Falo cantonense e mandarim, mais umas palavras de inglês. Mingtian jian, 明天见, “até amanhã”, good night.
– Mingtian jian, sleep well.
Vivendo em Pequim desde 1977, habituara-me a uma existência dura em tempo de rigores políticos, à extremada separação entre chineses e estrangeiros, à quase impossibilidade de um relacionamento com estas meninas de jade e de seda, alvas e perfeitíssimas.
Recordei como, desde há quatro séculos e meio, este feminino de assombros -- sublimes criações dos deuses –, tem povoado o imaginário e a realidade quotidiana de tantos portugueses em Macau, diante de depuradas mulheres, mesmo se de origem humilde, mas quase sempre dedicadas e meigas, tão superiores à mediania e à mediocridade de incontáveis gentes.
A três palmos de mim, no barco da carreira Cantão-Macau, dorme uma primorosa filha das terras da China. O rosto sereno no travesseiro diminuto, creio que nenhum sonho, nenhum sobressalto. Bela e adormecida, Lai Yong parece porcelana.
Apetece tocar.
O barco desce por meandros e curvas do rio das Pérolas. Luzes dispersas, mais anegritude no horizonte, no vasto delta a abrir-se para o mar. Vou também tentar dormir.
Adormeço no sonho de uma chinesa vestida de nuvens coloridas aproximando-se de mim. Um braçado de flores, uma fada imaculada, erva fofa e tenra.
Acordo com um amanhecer difuso. Lá fora, a leste, o céu levemente azul, levemente rosa. Tudo ainda muito escuro. Cá dentro, na penumbra, ao lado, a Lai Yong continua a dormir. É uma ninfa descida de paragens celestiais, veio por detrás do debruar da noite para adormecer junto de mim.
No barco, a estibordo, adivinham-se ainda distantes as primeiras luzes de 9Macau, perfurando o clarear do dia. O farol da Guia a lampejar no alto, depois o traço iluminado dos hotéis Presidente e Lisboa, mais a linha da baía da Praia Grande.
O “cacilheiro” passa sob a ponte Nobre de Carvalho, circunda o extremo sul da península, rodeia a Penha, a Barra, o templo de Amá e encontra o cais para acostar, no Porto Interior. Os passageiros, ainda meio ensonados, deixam as camas para trás, carregam malas e embrulhos, aceleram o passo, saem do barco. É a debandada ligeira e rápida para dentro de Macau, sem nenhuma barreira ou fiscalização, os chineses da polícia e alfândega de Cantão já controlaram tudo. E Macau tem o privilégio de ser um porto livre.
É dia claro. Lai Yong e eu não temos pressa, somos quase os últimos a deixar o barco. Ajudo-a no transporte das suas muitas trouxas e pergunto-lhe:
– Logo à noite, queres jantar comigo?
Lai Yong espera uns vinte segundos, parece hesitar na resposta. Mas o sorriso macio, adocicado, brilha outra vez nos olhos, nos lábios, enche-lhe o rosto todo. Depois diz:
– Keyi, pode ser. Onde nos encontramos?
– Em San Ma Lou, a avenida Almeida Ribeiro, em frente ao Leal Senado.
Um aperto de mão cordial e bye bye, até logo.
II
Sete da noite. Chego ao Leal Senado, no centro da cidade, e questiono-me: Será que a Lai Yong vai mesmo aparecer, ou esfumar-se-á para sempre nos atalhos escondidos das sombras de Macau?
A mulher lá está, os mesmos sapatinhos pretos de Bela Adormecida, saia justa azul arredondando-lhe as formas do corpo, uma blusa vermelha apertada, com o botão de cima aberto no decote sobre o levantar dos seios perfeitos, uma pequena gola de folhos, os olhos de veludo castanho voluptuosamente pintados, a boca rubra entreaberta.
Outra vez o sorriso perfumado, acariciante e leve que não se desprende apenas do abrir dos seus lábios, quero crer que lhe circula no sangue. São os ténues entendimentos de um português romântico, hoje completamente fora de moda, homem da estranha casta lusitana, mas espantado, encantado, embriagado diante de possíveis enxertias em bacelos do sul da China.
Onde vamos jantar?
O Hotel Metrópole está na moda. O restaurante do hotel, o Beira-Mar, é uma sala enorme com um palco e um palanquim lateral onde jovens cantoras de Hong Kong, com voz de rouxinol afinado, entoam modinhas chinesas em cantonense, às vezes em mandarim. Degustamos umas tantas iguarias de comida meio ocidental, meio chinesa, bebemos uma garrafa de vinho verde Gatão, bem fresquinho, o néctar das encostas das terras de Amarante, em Macau, no seu melhor. Lai Yong tende mais para o lado do chá, mas decide fazer companhia ao amigo recente, em suaves libações vínicas. À nossa saúde, Ganbei, 干杯, brindamos à felicidade em nossas vidas.
Bernardo é o primeiro português que conhece nos seus quase vinte e quatro anos de idade, muitos deles já vividos em Macau. Falamos, falamos, falamos num linguajar de trapos, meio mandarim, meio inglês.
Quem és tu Lai Yong, mulher da China, de Cantão, de Macau? Quem sou eu, Bernardo, português dos distantes mares do Ocidente, ancorado em Pequim, agora de passagem por esta estranha cidade do sul do império, com portugueses lá dentro, e mais gente, macaense e chineses, todos filhos das singularidades do mundo e de dez mil desvairos?
Ao modo da velha China trocamos dados sobre os nossos signos, identificamo-nos, descobrimo-nos pelos animais do zodíaco chinês que estão por detrás do ano emque nascemos e que, quase de certeza, nos condicionam as vidas e nos fazem ser o que somos. Recordamos qualidades, esquecemos, por completo, os muitos defeitos.
Lai Yong é Cabra, um animal simpático, de bom coração que irradia vontade de viver,
Bernardo nasceu no ano privilegiado do Porco Dourado, sob o elemento Fogo, tem por isso um ror de qualidades. É generoso e honesto, por muitas voltas que a vida dê, o dinheiro não lhe costuma faltar, é sensual e corajoso.
Sorrimos ambos face ao que vamos descobrindo. Não será difícil a aceitação de um pelo outro. Sabemos que temos quase tudo para entendimentos sinuosos mas sublimados, para nos darmos bem porque deverão existir baús e baús de compatibilidades e interesses comuns.
Falo-lhe do meu trabalho em Pequim, na minha danwei 单位 comunista, a entidade de trabalho, a Foreign Languages Press onde tenho bastante liberdade e passo os dias a cerzir textos em razoável português. Pagam-me um magro salário que, no entanto, chega, é suficiente para viver, até dá para viajar e vir a Macau.
Lai Yong é uma mulher quase letrada ao modo do velho Império, ocupa o seu labor cirandando pela pintura tradicional chinesa, a exercitar caligrafia, a ler e a copiar poesia clássica.
Falo-lhe nos grandes poetas da dinastia Tang (618-907) que também vou descobrindo e que gostaria um dia, ocupando parte dos meus ócios, de traduzir para língua portuguesa. São Li Bai, Du Fu, Wang Wei, Bai Juyi.
Conhece-os todos, fala-me de Wang Wei: 当一个人品味王玮的诗,有画在他们, “A sua poesia é pintura, a sua pintura é poesia”, e diz-me, também em mandarim, a brincar, um famoso poema de Li Bai, ou Li Po que as crianças chinesas costumam aprender na escola primária. Assim:
床 前 明 月 光
疑 是 地 上 霜
举 头 望 明 月
低 头 思 故 乡
e que, em mandarim, soa deste modo:
chuang qian min yue guangyi shi di shang shuang
ju tou wang ming yue
di tou si gu xiangA tradução livre será mais ou menos esta:
“Li Bai, em viagem, acorda numa estalagem longe de sua casa. De madrugada,vem à janela e tem a geada diante dos seus olhos. Ou serão reflexos do luar? O poeta, triste, pensa no seu lar”.
Lai Yong fala-me de outros poetas da dinastia Tang, grande parte deles eu nem sequer conheço. Ela sabe dezenas de poemas de cor. Ah, mulher bonita, eu agarro em ti e levo-te comigo, debaixo do braço, para darmos a volta ao mundo!
Deixamos o restaurante do Hotel Metrópole. Acompanho a Lai Yong, a pé, até casa. Mora na rua da Praia do Manduco, por baixo de S. Lourenço, lá no extremo sul, ao lado do Porto Interior, quase a chegar ao templo de A Má.
Vamos descendo pela marginal, circundando a Praia Grande, passando a Penha, até à Barra, caminhando lentamente sob árvores seculares num dos espaços mágicos de Macau.
O meu braço direito sobe e rodeia o ombro de Lai Yong. Puxo-a para mim, a menina de Cantão e Macau aconchega-se suavemente na espalda do amigo recente. Caminhamos enlaçados.
Quase ninguém na noite de Santiago da Barra. Bernardo, os pés em Macau, o coração entre céu e terra, abraça a mulher chinesa, beija a polpa dos lábios da ancestral e presente filha do dragão, lábios perfeitíssimos humedecidos por milénios de águas da chuva, espantos e carícias. Alegria, prazer. O português de Pequim sorve a língua da fada chinesa, de jade, menos fria, tão macia. Flutuamos ambos, como nuvens.
Lai Yong chega a casa, na Praia do Manduco, por detrás do templo da Barra, onde a deusa A Má, chegada da província de Fujian, de quando em quando, promete fortuna, paz e felicidade. A despedida, um beijo agora leve levado pela brisa da noite.
De regresso ao provisório lar, Bernardo escreve o seguinte poema:
Obrigado aos deuses,
deram-me o que eu não merecia.
No silêncio iluminado da noite de Macau,
o bem-querer dos amantes principia.
Em Santiago da Barra,
desagua um rio de ternura,
para eu navegar
no jade do mar, na tua formosura.António Graça de Abreu
(Continua)
(Seleção, revisão / fixação de texto para efeitos de publicação neste poste: LG)
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Nota do editor:
(*) Vd. poste de 25 de março de 2024 > Guiné 61/74 - P25305: Notas de leitura (1678): "Lay Yong, Bernardo e outros poemas", de António Graça de Abreu (Lua de Marfim Editora, 2018, 90 pp.) (Luís Graça)