quarta-feira, 4 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20704: Historiografia da presença portuguesa em África (202): "A Guiné Através da História", pelo Coronel Leite de Magalhães; Cadernos Coloniais, Editorial Cosmos (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Março de 2019:

Queridos amigos,
A despeito do caráter divulgativo, do recurso que o antigo governador fez da documentação que à luz da época era dada como a mais completa e fidedigna, Leite de Magalhães procede ao inventário que se mostra relevante entre os séculos XIX e XX, é dos autores que melhor cuidaram em repertoriar as sublevações e os factos da ocupação efetiva. Despede-se com otimismo, esperançado no desenvolvimento da colónia, ele é contemporâneo de algum crescimento agrícola e da imposição das produções do arroz, do amendoim e do coconote.
Documento a ter em conta pela historiografia, é o que se pode chamar uma boa síntese para aqueles tempos.

Um abraço do
Mário

Coronel António Leite de Magalhães

A Guiné Através da História, pelo coronel Leite de Magalhães (2)

Beja Santos

Estes Cadernos Coloniais foram uma aposta da Editorial Cosmos, foram publicados durante décadas. O número 24 teve como autor o Coronel António Leite de Magalhães, Governador da Guiné de 1927 a 1931, apanhou a Revolução Triunfante. É um livrinho de divulgação que tem aspetos bastante curiosos, Leite de Magalhães elenca, à luz dos conhecimentos da época alguns dos aspetos mais palpitantes da vida da colónia-feitoria.

No texto anterior, procurou-se sumular o que o antigo governador escreveu sobre a presença portuguesa do século XV até ao início do século XIX. Dá-se agora continuidade, estamos em 1843 e houvera um novo rompimento entre as forças acantonadas em Bissau e os Grumetes. Nesse mesmo ano, Honório Pereira Barreto fizera diversos contratos com os chefes indígenas Banhuns para a ocupação de diversos territórios nas duas margens do Casamansa. Em 1853, é criado o lugar de Governador da Guiné, com residência em Bissau, ficando-lhe subordinado o Governador da Praça de Cacheu. Também nesse ano ocorrera uma grave sublevação dos Papéis de Bissau. Dado positivo desse período é a cedência feita por Honório Pereira Barreto à Coroa Portuguesa de um território que lhe pertencia na região dos Felupes de Varela.

O autor chama à atenção que nos inícios do século XIX, a Guiné, do ponto de vista da missionação católica compreendia as seguintes freguesias: Nossa Senhora da Candelária (Bissau), Nossa Senhora da Natividade (Cacheu), Nossa Senhora da Luz (Farim), Nossa Senhora da Graça (Geba) e Nossa Senhora da Graça (Zinguinchor).

Em 1863, trava-se na Guiné a luta sangrentíssima que havia de acabar, anos mais tarde, pela vitória dos Fulas sobre os Mandingas e os Beafadas e que se estendeu, mais tarde, até ao Forreá. No início de 1871 regista-se nova rebelião dos Grumetes de Bissau, nas refregas perde a vida o Governador-Interino do distrito, Capitão Álvaro Teles Caldeira. No mesmo ano é assassinado pelo gentio de Caconda o Governador de Cacheu. E chegamos ao ano fatídico de 1878 em que os Felupes massacraram em Bolor uma força comandada pelo Tenente Calisto dos Santos, perdeu a vida o Alferes Sousa e cinquenta soldados.
E numa prosa vibrante, escreve Leite de Magalhães:“E só então, com a terra empapada de mais sangue, o Governo de Portugal resolve-se a quebrar os grilhões nefastos que prendiam a Guiné ao mando desastrado e mísero de Cabo Verde”. 

1879 marca a autonomia administrativa da Guiné, a sua capital escolhida foi Bolama e o primeiro governador foi o Tenente-Coronel Agostinho Coelho. Nesse mesmo ano, os Felupes de Jufunco cedem todo o seu território à nação portuguesa.
Sendo facto que aumenta a área territorial ocupada importa sublinhar que as sublevações se mantiveram ininterruptas, e em simultâneo os atos de vassalagem. Em maio de 1885 o régulo de Bubaque prestou homenagem ao Governo da Colónia, pediu que se hasteasse na sua ilha a bandeira portuguesa e que se fundasse uma colónia agrícola. Ano em que Fulas e Beafadas fizeram as pazes depois de uma guerra de extermínio que apagou irremediavelmente todo o esplendor do Rio Grande onde, em 1879, ainda se contavam 53 feitorias.

Estamos chegados à Convenção Luso-Francesa de 12 de maio de 1886, ficam definidas as fronteiras na Guiné e perde-se o Casamansa. Há combates sérios em Bissau, em 1891, teve que vir um contingente militar de Bolama, de Cabo Verde e de São Tomé para jugular a revolta, operações em que morreram dois capitães, um tenente, um alferes, três sargentos, um 1.º cabo e trinta e nove soldados. Ao lado das forças portuguesas combateram Beafadas e Fulas, com os respetivos chefes. A insubmissão dos Grumetes e Papéis de Bissau era crónica, mas assistiu-se a um ato paradoxal, em 1882 os autores de tantos crimes e de tanto desassossego foram perdoados.
Só que a desordem não se extinguiu, mesmo quando a Guiné, em 1892, passou a ter Distrito Militar Autónomo. A rebelião voltou a Bissau em 1893. Dois anos depois, o Governo da metrópole restabelece a designação da Província, acabando com o Distrito Militar. Nesse mesmo ano houve novas operações no Forreá contra o régulo Mamadu Paté Coiada. A ocupação militar da Guiné, a despeito das intensas sublevações, tinha vindo a crescer e Leite de Magalhães refere que a ocupação além de Bolama e de Bissau se estendia a Geba, a S. Belchior, a Sambel Nhantá, Gã-Dagé, Cacheu, Farim, Buba, Bolola, Contabane, Cacine e Cacondo. Crescera o número de postos militares. É no início do século XX que se efetuam os trabalhos de limitação das fronteiras. Anos depois, as operações no Cuor entre 1907 e 1908 criaram a liberdade de circulação no Geba.
Leite de Magalhães escreve: 
“A Guiné já não era a mesma Guiné que Oliveira Martins nos descrevia no seu Brasil e as Colónias Portuguesas, com a área de 8400 quilómetros quadrados e uma população pouco superior a 5 mil habitantes e um orçamento com 73 contos de receita e 178 de despesa”.
E a ocupação efetiva (ou quase) ganha expressão com as campanhas de Teixeira Pinto.

Leite de Magalhães mostra-se confiante, no final do seu livro de divulgação: aperfeiçoou-se a administração, cresceu a rede de postos, houvera uma nova divisão administrativa da colónia, a despeito da pacificação de Bissau as circunscrições de Balantas e de Costa de Baixo continuavam com um regime de comandos militares.
Apesar de todas estas vicissitudes, ele despede-se assim: 
“A Guiné medrou, crescendo em bens de toda a espécie. Quando nela desembarquei, em Abril de 1927, 2809 quilómetros de estradas a cruzavam em todas as direcções; e, à beira delas, erguiam-se povoações comerciais activas, aonde acudiam, nos ombros robustos dos negros, as variadas produções da terra. Nas clareiras dos matos, entre paliçadas frágeis e verduras de arvoredos, repousava a antiga população hostil, cujos braços já não tomavam armas que não fossem de trabalho para o cultivo dos campos, de onde brotava a riqueza que abastecia os celeiros e animava a vida dos mercados. E nas palmeiras opulentas, cuja seiva se converte no óleo dos frutos; nos chãos lavrados de araquídeas, cuja produção é o alimento mais forte do comércio; nas culturas abundantes de arroz e de milho e de feijão, cujas sementes são o sustento mais farto do indígena; e finalmente nas amostras de culturas ricas que, aqui e além, se deparavam nos quintais, cheios de viço, numa promessa ridentíssima, tudo era uma vastidão de esperanças que os nossos olhos abarcavam, sentindo a grandeza e a beleza do esforço praticado.”
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Nota do editor

Último poste da série de 26 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20686: Historiografia da presença portuguesa em África (201): "A Guiné Através da História", pelo Coronel Leite de Magalhães; Cadernos Coloniais, Editorial Cosmos (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20703: Ser solidário (226): Projeto Kassumai: almoço de convívio, seguido de reunião para aprovar os estatutos e eleger os órgãos sociais da nova Associação ANGHILAU: Restaurante da Quinta de Stº António, Alcabideche, Cascais, domingo, 8 de março de 2020, às 12h30 (Manuel Rei Vilar)



Guiné-Bissau > Região do Cacheu > Susana > Fevereiro de 2020 > As gerações do futuro

Foto (e legenda): © Manuel Rei Vilar (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de Manuel Rei Vilar,  gestor do Projecto Kasumai, com data de 1 do corrente, às 14h23:

Caríssimos Padrinhos, Madrinhas, Benfeitores e Amigos do Projeto Kassumai

Peço a todos aqueles que que ainda não me confirmaram a vossa presença no nosso Almoço para me contactarem rapidamente afim de podermos reservar a Sala.

Email: reivilar@paris7.jussieu.fr

Telefone: 0033676579504 ou 962977002

Após o almoço, aprovaremos os Estatutos e elegeremos os Órgãos Sociais da nova Associação ANGHILAU.

Como já se referiu, o almoço terá lugar no

Restaurante da Quinta de Santo António.

Rua de Cascais 290, 2755-162 ALCABIDECHE

Dia 8 de Março às 12h30

Aproveitaremos, esta mesma reunião para vos relatar as conclusões e as peripécias da nossa recente viagem a Suzana. (Vd. página do Facebook do Manuel Rei Vilar)

Kassumai

 Manuel Rei Vilar

[Irmão do cap cav Luís Rei Vilar (1941-1970), ex-comandante da CCAV 2538 (Susana, 1969/71), morto em combate em 18/2/1970, no decurso da Op Selva Viva; vive em Paris: professor universitário e investigador na área da engenharia química]
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Nota do editor:

Último poste da série > 22 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20480: Ser solidário (225): Projecto Kassumai: prestação de contas e anúncio de assembleia geral, em 8/3/2020, para constituição de associação sem fins lucrativos (Manuel, Duarte e Miguel Rei Vilar)

terça-feira, 3 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20702: Consultório militar do José Martins (50): Par de duas condecorações de um Capitão do Regimento de Caçadores

 
Mais um trabalho do nosso camarada José Martins (ex-Fur Mil TRMS, CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), a propósito de "restos da vida de um combatente, capitão de infantaria, provável comandante de uma Companhia de Caçadores, CTIG, 1970/72", publicado no Poste 20680[1] de 24 de Fevereiro passado.

Desde já o nosso obrigado ao Zé Martins por mais esta preciosa colaboração.



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Notas do editor:

[1] - Vd. poste de 24 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20680: Fotos à procura de... uma legenda (119): restos da vida de um combatente, capitão de infantaria, provável comandante de uma Companhia de Caçadores, CTIG, 1970/72... (Carlos Mota Ribeiro, Maia)

Vd. também poste de 6 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20685: Fotos à procura de... uma legenda (120): O militar em questão não seria o cap inf Manuel Francisco da Silva, comandante da CCAÇ 1681/BCAÇ 1911 (1967/1969) ? Se sim, nasceu em Silves em 1933 e morreu em Faro, em 2015, como cor inf ref, tendo sido também, em 1982, presidente da Câmara Municipal de Faro (Jorge Araújo)

Último poste da série de 18 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20253: Consultório militar do José Martins (49): Das leis do Reino e da República, às leis da Igreja, com influência nas Forças Armadas (5)

Guiné 61/74 - P20701: (D)o outro lado do combate (56): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte III (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)


Guiné-Bissau > Bolama > s/d  [ c. 2009] > Cais > Uma canoa nhominca, para transporte de passageiros. A sua lotação máxima são 100 passageiros...  E foram 100 "nacionalistas" ou "elementos subversivos" [, no dizer das autoridades coloniais da época, ao tempo do governador da Guiné, de triste memória, o oficial da marinha, António Augusto Peixoto Correia (1913-1988)],  que em 1 de setembro de 1962  foram tranferidos da Ilha das Galinhas, a ilha-prisão do arquipélago dos Bijagós, para o Campo de Trabalho de Chão Bom, no Tarrafal, ilha de Santiago Cabo Verde...

Foto (e legenda): © Patrício Ribeiro (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


(...) "Na madrugada de 1 de setembro [, depois da prisão, efetuada nas instalações do BNU em 15 de março de 1962, ainda ao tempo do governador, oficial da marinha, Peixoto Correia], foram buscar-nos em Mansoa para [nos] levar à ilha das Galinhas. Via João Landim, fomos levados no porão do barco Formosa. Chegamos à ilha das Galinhas cerca das 16 horas. De seguida, fomos levados para o acampamento, onde já se encontravam outros presos oriundos da Zona Sul. Na noite de 1 de Setembro, dormimos todos nós presos concentrados num pavilhão grande. Naquela noite tiraram dois irmãos e foram matá-los a tiro. (...).

"No dia 2 de setembro, de manhã cedo, tiraram-nos num total de 100 presos e encaminharam-nos para o Porto da Ilha das Galinhas, onde tínhamos desembarcado no dia anterior; meteram-nos no porão do mesmo barco Formosa, com o rumo a Estação de Pilotos em Pontom; de seguida, meteram-nos no porão do vapor África Ocidental com destino desconhecido por nós. Só viemos a saber onde estávamos quando chegamos ao Porto do Tarrafal, onde nos mandaram sair de porão como animais de carga. Passamos muito mal durante todo o caminho."(...)  

(Excerto de: Inácio Soares de Carvalho, "Memórias da Luta Clandestina", no prelo, 2020)


 Por Portaria nº 18539, de 17 de Junho de 1961, assinada pelo então Ministro do Ultramar, Adriano Moreira, tinha sido reaberto o antigo campo de Tarrafal (que funcionou entre 1936 e 1954), agora designado Campo de Trabalho de Chão Bom, na Ilha de Santiago, Cabo Verde, originalmente destinado aos presos políticos de Angola. 

Em 1962, após uma série de vagas de prisões de nacionalistas guineenses, que sobrelotavam os ass prisões e os quartéis militares de então, o governador da Guiné pede. por um simples ato administrativo,  a deportação para o Tarrafal dos 100 mais... "perigosos".  Juntam-se aos angolanos em 4 de setembro de 1962.

O governador  António Augusto Peixoto Correia viria a substituir o professor Adriano Morerra no cargo de ministro do ultramar.


Capa do livro "Memórias da Luta Clandestina", de Inácio Soares de Carvalho. Foto: cortesia de Expesso das Ilhas, 30/1/2020



1. Continuação da publicação de excertos do  livro "Memórias da Luta Clandestina" (que foi lançado, no passado dia 30 de janeiro, na Praia, capital de Cabo Verde, na Biblioteca Nacional.)  (*)

Dois meses antes, um dos filhos, do Inácio Soares de Carvalho , o  Carlos de Carvalho, arqueólogo e historiador, que coordenou o projeto editorial, pediu-nos autorização para reproduzir uma foto do administrador Guerra Ribeiro, da autoria de Paulo Santiago (***). Autorizou-nos, ao mesmo tempo, a reproduzir alguns excertos da obra, em fase final de acabamento.

Inácio Soares de Carvalho (ISC) (1916-1994)  trabalhou no BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, desde 1939,  até ser detido pela PIDE em 15/3/1962. Vamos continuar a publicar alguns excertos das suas memórias políticas, até há pouco inéditas, com a devida autorização do seu filho, Carlos de Carvalho.

Nasceu na Praia (, temos dúvida sobre a sua data de nascimento: ele diz que em 29 de Abril de 1974, quando "terminou para sempre o nosso martírio e sofrimento na Ilha das Galinhas", ele completava "58 anos de idade"; terá então nascido em 29/4/1916 ).
 

Foi em criança para a Guiné com os pais. No seu tempo haveria 1700 cabo-verdianos no território, muitos deles tendo posições de destaque na vida económica, social, cultural e político-administrativa  da colónia portuguesa. Envolveu-se na luta política, filiando-se em 1956 no MLG– Movimento para Libertação da Guiné   (**) por influência do seu compadre e colega de Abílio Duarte.

Seria preso pela primeira vez  pela PIDE em 15/3/1962. É então deportado, com outros "suspeitos", para o Tarrafal (, a partir da Ilha das Galinhas). Três depois, em 16/10/1965, 
é transferido  para a  colónia penal da  ilha das Galinhas, no arquipélago dos Bijagós. 

Em 7/2/1967, é solto, pela primeira vez. Em 1972 e 1973, volta a passar pela experiência da prisão, em Bissau,  até conhecer a liberdade definitiva com o "golpe de Estado do 25 de Abril de 1974 em Portugal". O seu nome na clandestinidade era Nassi ou Naci Camará. [O de Rafael Barbosa, de etnia papel (c. 1926-2007), era Zain Lopes.]

Nos final dos anos setenta, regressa à sua terra natal, Cabo Verde e afasta-se praticamente da vida política activa. Vem a falecer em 1994.

"Após incessantes insistências dos filhos, ISC resolve escrever suas 'Memorias', tendo-as dado por concluídas em 1992. Nelas o autor narra factos novos, desconhecidos da maioria dos militantes, pois, infelizmente, poucos foram os combatentes da clandestinidade, sobretudo na Guiné, que deixaram escritos sobre essa vertente da luta protagonizada pelo PAIGC." (Informações biográficas fornecidas pelo filho, Carlos de Carvalho, nascido na Guiné, complementadas por LG.)



Assinaturas em Relatório do PAIG sobre o dispositivo militar português em Bissau, e nomeadamente o Quartel General a "norte da cidade" [Santa Luzia].  Data: c. 1961. Relatório datilografado, em duas páginas, em papel branco. É assiando pelos eesponsáveis do PAI em Bissau: Latranco da Costa [Pedro Ramos], Zain Lopes [Rafael Barbosa] e Naci Camará [Inácio Soares de Carvalho, acrescentamos nós. (LG)]...

Citação:
(1961), "Relatórios do PAI em Bissau", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_41679 (2020-3-3) (com a devida vénia...)

[No Arquivo Amílcar Cabral, há vários documentos, como este,  com a assinatura de Zain Lopes e N. Camará, da Secção de Controlo e Defesa, do PAI, em Bissau,  datados de 1961. Rafael Barbosa e Inácio Soares de Carvalho serão presos em Março de 1962. Pedro Ramos (, irmão do Diomingos Ramos,) consegue furar o cerco militar à base clandestina onde estava escondido  o presidente do PAI,nio Rafael Barbosa, na Zona 0, em Bissalanca, nos arredores de Bissau. Sabe-se que o Rafael Barbosa teve, na época, um papel fundamental na mobilização dos jovens para a "luta de libertação". Era considerado uma figura carimástica e respeitada pelos mais jovens até à sua  prisão em setembro  de 1962 e posterior libertação, em 1969, ao tempo de Spínola. A sua evental participação no conspiração para prender e/ou matar Amílcar Cabral, em janeiro de 1972, é ainda hoje motivo de controvérsia. Tornou.se um dissidente do PAIGC, sendo a sua memória, hoje, na Guiné-Bissau,  objeto de uma relação de amor-ódio.  Leopoldo Amado entrevistou-o e fotografou-o em 1989. (LG)]


2. Excertos do livro - Parte III (*)

(Continuação)

Rafael Barbosa – o regresso a Bissau

Estando o Alfredo Menezes d’Alva ainda em liberdade faz todos os possíveis para entrar em contacto com o Rafael  [Barbosa] que se encontrava já nas matas no interior da Guiné, em campanha de mobilização, com a ajuda de um nosso companheiro [1].

Entretanto, esse companheiro nosso acabou por ser informado por nossos agentes de ligação do que se passou em Bissau. Dali então tomou a precaução de pôr o Rafael Barbosa na clandestinidade sob a vigilância de um dos nossos responsáveis em Bissorã que, do seu lado, tudo fez para entrar em contacto com o Menezes. 

Como não havia lugar seguro onde se podia esconder o Rafael, a única solução que foi encontrada foi metê-lo numa horta de mandioca enquanto, durante a noite, se procurava um lugar definitivo para o pôr a salvo da PIDE. Foi efectivamente muito complicado tirar o Rafael de Bissorã e pô-lo em Bissau, ainda mais sendo ele um deficiente físico [2].

Com a prisão de nossos companheiros, responsáveis do Partido, e crentes de que o Rafael se encontrava em Dakar, os agentes e informadores da PIDE deram uma festa para comemorar porque estavam presos todos os principais responsáveis do Partido no interior da Guiné e contavam que o Rafael estivesse em Dakar. Esta convicção dos agentes da PIDE de que o Rafael estava em Dakar foi uma grande sorte para nós.

A minha grande preocupação nessa altura era que a PIDE não soubesse que o Rafael já estava dentro da Guiné, porque se soubessem desencadeariam uma perseguição até o encontrarem, o que seria uma desgraça, pois seria um grande atraso para a nossa luta, sobretudo nessa fase muito difícil.

Estando o Rafael em Bissorã, o nosso maior problema agora é fazê-lo entrar em Bissau, tendo em conta o aumento do número de informadores que a PIDE fez em toda a Guiné, principalmente em Bissau, capital da província.

A entrada do Rafael Barbosa em Bissau só foi possível devido à vontade e muita coragem do Alfredo Menezes d’Alva e alguns jovens companheiros de luta como Nicolau Cabral [3], Mandu Biai [4] e Albino Sampa [5].

Amigos leitores, não fazem ideia da minha grande satisfação quando o Alfredo Menezes foi ao Banco [, o BNU, ]  dar-me a notícia de que o Rafael já se encontrava em Bissau e o sítio onde se encontrava escondido. Ele foi levado e escondido em casa duma prima dele que se situava na margem esquerda da ponte de Cobornel [6] ], para os lados do futuro Bairro da Ajuda ?, (LG)].  Informou-me ainda a forma como chegar ao local onde estava escondido.

Mas para ver o Rafael,  o Menezes recomendou-me para fazê-lo só a partir das 3 horas da tarde, pois, é uma zona muito movimentada e tinha que ter muita atenção. Mais me disse que o Rafael estaria à janela à minha espera, pois, já estava tudo combinado com ele. Assim, não foi difícil localizar a casa e encontrar o nosso companheiro de luta.

Tudo aconteceu num sábado à tarde e, caros leitores, passámos toda a tarde até às 9 da noite a conversar sobre os últimos episódios de nossa luta; mas, como tínhamos muitos assuntos a discutir, acertamos continuar a conversa no dia seguinte, visto que já era tarde e a vigilância da PIDE era apertada e não podíamos correr risco.

No encontro do dia seguinte, começamos logo a pensar na melhor maneira de recomeçarmos as nossas actividades e Rafael contou-nos como passou na vinda de Bissorã para Bissau, dado o seu estado físico.

Caros leitores, podem imaginar um indivíduo fisicamente deficiente e debilitado conseguir fazer um trajecto de aproximadamente 70 kms, tudo dentro do mato até chegar a capital porque não podia andar por via normal, controlada pelos agentes da polícia e da PIDE. Todo este episódio foi contado pelo Rafael na presença do Menezes, Nicolau Cabral, Albino Sampa e mais outros companheiros de luta.

Depois deste acontecimento entrei em contacto com D. Irene Fortes, esposa do Fernando Fortes, e informei das últimas novidades, sobretudo a entrada do Rafael em Bissau. Quando lhe contei toda a estória, ela ficou ainda mais contente do que eu próprio. De seguida, fui levar a mesma informação ao Sr. Rosendo que ficou muito admirado ao saber que o Rafael já estava em Bissau, pois ninguém esperava naquelas horas muito difíceis que isso pudesse acontecer.

Aproveitamos para falar, mas não por muito tempo, pois andava sempre desconfiado com a PIDE porque os companheiros estavam quase todos na prisão.

Com o Rafael já em Bissau, a nossa maior preocupação consistia agora em arranjar um sítio mais seguro para o esconder porque a casa da prima, como dito antes, ficava na beira da estrada e não nos oferecia segurança para montarmos a nossa base, mas sobretudo porque o marido dela já estava com medo porque a PIDE lançou a propaganda de que a casa onde for encontrado o Rafael, este seria preso com toda a família que o escondia.

Assim, para ultrapassar essa situação e encontrarmos um lugar com segurança, fizemos uma pequena reunião da qual saiu a decisão de encarregar Nicolau Cabral, Albino Sampa, Abdulay Bary, Martinho Balanta que é cunhado do Epifânio, Mandu Biai, Abdul Dja [7] e mais outros jovens de procurar um lugar seguro para instalarmos Rafael e “construir” a base para o recomeço de nossas actividades.


A primeira leva de prisões de responsáveis do PAIGC

Todo aquele desentendimento e confusão, em Dezembro do mesmo ano [, 1960 ?], originou a prisão de alguns de nossos companheiros, como o Quintino Nosoliny, o Estevão Tavares e o Lassana Sissé, todos eles responsáveis do Partido em Bissorã. Estes responsáveis faziam parte dos responsáveis que estavam de acordo para se trabalhar conjuntamente com os cabo-verdianos.

A segunda leva de prisões de responsáveis do PAIGC

Nesta leva de prisões [, em abril de 1961 ], foram presos, entre outros, Fernando Fortes, Inácio Júlio Semedo, Epifânio Souto Amado, Júlio d’Almeida e João Rosa. Só o Alfredo Menezes d’Alva escapou. (**)

Estes nossos companheiros foram levados e ficaram detidos nas celas na 2ª Esquadra da Policia. A situação deles como a de todos os prisioneiros políticos era desagradável porque eram sujeitos a muitas injúrias pelos agentes da PIDE portugueses e também de alguns dos nossos irmãos africanos que se encontravam ao serviço da Policia portuguesa na referida Esquadra. Depois da prisão destes companheiros, as actividades paralisaram quase completamente.

(Continua)

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Notas do Carlos de Carvalho:

[1] ISC não explicita o nome desse companheiro. Mas, com certeza, trata-se de um dos muitos dirigentes / militantes que o Movimento/Partido tinha já espalhado em todas as zonas do interior da Guiné-Portuguesa, como se poderá constatar aquando das prisões ocorridas em [março de]  62.

[2] Rafael era deficiente da perna esquerda. Segundo a filha Helena Barbosa esse problema foi consequência duma deficiente administração de uma vacina, em criança, contra a meningite, tendo piorado já homem, após ter sido mordido por uma cobra.

[3] Nicolau Cabral foi seguramente dos mais activos militantes do PAIGC na clandestinidade. O seu nome aparece em todos os principais momentos da luta clandestina. Preso em 1962, foi enviado, como ISC, para a Colónia Penal do Tarrafal. Segundo ISC, era pedreiro de profissão.

Segundo informações de Almiro de Carvalho, depois da independência, Nicolau trabalhou na UNTG.

[4] Mandu Biai foi preso em [março de ] 1962 e enviado com ISC à Colónia Penal do Tarrafal, em Cabo Verde, donde terá saído em liberdade em 1969. Segundo ISC, Biai era Empregado Comercial.

[5] ISC fala do Albino Sampa durante todo o decurso da luta. É de se supor que Albino tenha sido mobilizado por Rafael para a luta, pois, na sua “Descrição Biográfica”, uma espécie de “Autobiografia Política”, fornecida por um sobrinho de nome Paulino, Albino escreve que: “Aderiu às fileiras do PAIGC em 1957 com idade muito jovem, tendo cumprido a sua primeira Missão de Serviço em 01/05/61, que lhe fora incumbida pelo Sr. Rafael de Paula Gomes Barbosa, no sentido de efectuar uma viagem para o Senegal, Dakar, portador de correspondências para Luís Cabral, naquela cidade, e para o Sr. Marcelo em Cundará”

Foi um dos principais agentes de ligação entre a Zona 0 e o exterior. Muito seguro e convicto, granjeou respeito no seio de seus companheiros de luta. Ainda após a luta ISC se lembrava com frequência desse incansável lutador pela independência da Guiné e de Cabo Verde.

Ainda segundo sua “Descrição Biográfica” e informações recolhidas junto de vários companheiros de luta (Paulo Pereira de Jesus, Brígido, Constantino, entre outros), Albino, depois da independência, trabalhou como Agente de Guarda nos Empreendimentos dos Serviços Portuários. Morreu em 2014, quase completamente abandonado pelos companheiros de luta. (Ver nos Anexos alguns documentos sobre este herói quase desconhecido da maioria de seus compatriotas).

[6] Cobornel era, na altura, um bairro em construção. Ficava a uns poucos quilómetros do centro da Cidade de Bissau, portanto, uma zona quase que desabitada. Na verdade, a cidade de Bissau quase que terminava na zona situada logo após a “Chapa-de- Bissau”. [Mais tarde ter-se-á construido ali o novo bairro da Ajuda; segundo o Leopoldo Amado, seria em Bissalanca. (LG).

[7] Sobre Abdul Djá,  ISC falará posteriormente.

(Continua)
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Notas do editor:

(*) Postes anteriores da série

2 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20698: (D)o outro lado do combate (55): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte II (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)

29 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20695: (D)o outro lado do combate (54): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte I (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)

(**) MLGC ou só MLG?... Não confundir com o PAI (futuro PAIGC). Um e outro entram em rutura antes do início da luta armada..

Vd. poste de 25 de fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - P569: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - II Parte

(...) Aliás, salvo raras excepções, d
e 1958 a 1961, numa amálgama inextricável, alguns destacados dirigentes do MLG e do PAI, indistintamente, partilharam, voluntária ou involuntariamente o mesmo espaço político (...)  coincidindo essa fase com o período em que ainda se acreditava ser possível, a breve trecho, sobretudo da parte do MLG, o início do processo que havia de conduzir a Guiné "dita portuguesa" à independência.

Na verdade, a criação em Bissau, em 1958, do MLG (Movimento de Libertação da Guiné), a par das perseguições das autoridades coloniais, constituiu-se no mais sério problema para os propósitos unitários que Amílcar Cabral postulava na luta contra o colonialismo português na Guiné. O MLG, que desenvolvia acções numa perspectiva política pouco elaborada, cedo hostilizou Amílcar Cabral, a quem alcunhou pejorativamente de "cabo-verdiano".

Este movimento acusava os cabo-verdianos de terem ajudado os portugueses na dominação colonial da Guiné e, perante a iminência de independência, pretenderem substituir os colonialistas. A miragem de uma independência prestes a concretizar-se, à semelhança do que ocorreu nas colónias francesas da Guiné "dita francesa" e do Senegal, precipitou nas hostes do MLG a tendência para a organização de um movimento que procurasse congregar no seu seio alguns poucos guineenses ilustres, dando assim primazia a necessidade de sublimação das inquietações mais personalizadas que colectivas, relegando para um plano secundário a preparação para a luta armada e a estruturação do movimento em termos populares. (...)

(...) Como quer que seja, é dado adquirido que o PAI, enquanto tal, até pelo hiato referido que caracterizou a sua quase inacção entre 1956 e 1959, não teve, pelo menos directamente, uma acção ou influência decisivas nas acções que viriam a desembocar em Pindjiguiti. Diferentemente do PAI, a mesma asserção já não pode aferir-se relativamente ao MLG que teve, de facto, uma assinalável e directa participação directa nos acontecimentos. Efectivamente, activistas do MLG tais como César Mário Fernandes (empregado do tráfego do cais de Pindjiguiti), Paulo Gomes Fernandes e José Francisco Gomes tinham-se há muito empenhado em acções de discreta mobilização e consciencialização política dos trabalhadores portuários em geral e dos marinheiros e estivadores do cais de Pindjiguiti em particular (...)

Das pessoas referidas pelo Elisée[Turpin] (...) recordo-me perfeitamente de:

- Benjamim Correia, que tinha uma loja de bicicletas e acessórios e era um conceituado comerciante muito estimado e considerado entre a população da Guiné, "colonos" incluídos;

- Rafael Barbosa, que era funcionário das Obras Públicas e tinha uma pequena deficiência numa perna que o obrigava a mancar;

- Quanto ao Inácio Semedo, o único Semedo de que me recordo era o guarda-redes do Sporting de Bissau, alcunhado de "Swift"; talvez não seja o mesmo;

- Luís Cabral, irmão do Amílcar, trabalhava na Casa Gouveia.

Porém, aqueles de quem melhor me lembro - por com eles ter lidado mais de perto - são:

- Fernando Fortes que era funcionário dos Correios em Bissau: tinha um irmão (Alfredo, salvo erro) que nos meus tempos de Farim (1953/55) era o Delegado Aduaneiro naquela localidade;

- João Rosa foi meu colega de trabalho na NOSOCO. Era o guarda-livros. Fui muitas vezes a casa dele no Chão Papel (...). Era muito meu amigo e fui visitá-lo ao hospital quando ali foi internado, já sob prisão da PIDE;

- João Vaz era o alfaiate dos serviços militares. A oficina era na Amura e era ele que fazia o fardamento para os recrutas e demais militares. Ainda tenho comigo um camuflado que ele me fez sob medida.(...)

Vd. também postes de:


segunda-feira, 2 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20700: Notas de leitura (1269): “Autópsia de um Mar de Ruínas”, por João de Melo, 9.ª edição reescrita pelo autor; Publicações Dom Quixote, 2017 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Fevereiro de 2017:

Queridos amigos,
São notórias as mudanças que João de Melo introduziu no seu romance dado à estampa em 1984. Onde, na primeira versão, dominavam as sequências da guerra à volta da qual se movia a exploração colonial numa atmosfera caótica de vida de sanzalas, agora há um confronto permanente entre o que se passa na guerra em geral no Norte e as suas incidências em Calambata, quartel e duas sanzalas. Nesta nova versão é o libelo anticolonial que triunfa, o destino da guerra tornara-se cada vez mais turvo.
É um livro duríssimo, a dimensão ideológica é muito mais saliente, por vontade do autor é um livro para ser amado ou detestado, a despeito dos inegáveis primores literários.

Um abraço do
Mário


Autópsia de um mar de ruínas, nova edição reescrita pelo autor (2)

Beja Santos

Importa recordar que este romance “Autópsia de um Mar de Ruínas”, de João de Melo, Publicações Dom Quixote, 2017, é uma versão reescrita daquele que foi dado à estampa em 1984. É mais encorpado e, como o autor justifica, potencia duas narrativas paralelas: “Uma centrada na ação dos militares portugueses no Norte de Angola, outra no quotidiano de medo e de miséria, na revolta silenciosa e fria, na vitimização de duas sanzalas. Numa delas vivem pessoas de distintas etnias que para ali foram desterradas sob suspeita de relação familiar ou cumplicidade com os guerrilheiros. A outra aldeia fundaram-na soldados que desertaram dos exércitos de libertação e se renderam à tropa, para com ela combater a guerrilha que se infiltrava em território angolano a partir da fronteira”.

Há que reconhecer que o texto que João de Melo reserva à atmosfera das sanzalas é muitíssimo bem elaborado, implica o leitor em ambiente africano que o autor estudou com apurado rigor: “Mamã Josefa zanga de repente. Berra para os miúdos que nada disso interessa nas pessoas que não podem ir na escola aprender as coisas que estão falar para aí. Calem-se a boca, já! Tou doente em minha cabeça. Tomara haja sempre comida para se comer e não venha a guerra na Calambata matar nas pessoas. Logo vem vavó Katuela se manifestar, com sua voz envinagrada: menino pequeno tem mesmo é de falar da boca para fora as coisas que vai aprendendo e que precisa nunca esquecer, pró bem da nossa terra e do nosso povo, ‘tá ouvir, Josefa? E fala sua infância distante, sempre na escuridão da ignorância, que nem mesmo pôde aprender nas letras do português dos brancos”.
Os meninos da sanzala vão até ao quartel na mira de arrecadar os restos do rancho, por vezes havia respostas cruéis, como a do primeiro-sargento que assolava os cães nas pernas dos cambutas, mas os meninos não desistiram: “Os miúdos iam saltar os muros baixos do refeitório, à espera dos restos da comida dos soldados. A fome que eles tinham, esses meninos! Xi, mesmo magoa o coração da gente. Barriga parecia que falava no lugar da boca, as tripas enroladas como jiboias enfurecidas. Se sobrava comida, cozinheiro Augusto, um bailundo, sipaio da tropa, procedia à distribuição: concha de sopa em cada um, uma batata, bocado de pão misturado nas latas velhas – onde que as mãos desses fulaninhos mergulhavam à pressa, pois a fome estava lhe esperar havia muitas horas”.

O furriel Gouveia percorre a cidade de São Salvador, encontrou alguém que lhe traz notícias da família, por ali deambula, e tem aqui lugar um episódio tocante:
“Sentiu à sua beira a presença de um menino perdido que o seguia e o fixava pelas costas. Devia querer pedir-lhe uma moeda. Procurou nos bolsos do dólman, e nada: não tinha trocos. Quando atentou melhor na criança, viu um rosto largo, salpicado de lama, com muito ranho no nariz. Enojado, pensou em enxotá-lo, mas suspendeu o gesto e disse-lhe:
- Tem dinheiro não, minino preto; paciência então, minino preto.
- Furrié, nosso furrié…
- Estou-te a ouvir ainda, minino preto. Diz logo.
- Não queres ir foder na minha mãe?
- Se você queres ir fodes na minha mãe, nosso furrié, vem então, que está te esperar ainda. Cinquenta escudos, é só.
- Nosso furrié, ouve ainda: se não queres mesmo ir na minha mãe, eu vou então te fazer punheta, vinte e cinco tostões o meu preço”.

É um romance em que não se dá tréguas à brutalidade: emboscadas com muitos mortos e feridos, agonizantes, muito trabalho forçado, a exploração dos preços do café, um alferes a passear-se em Luanda com um colar de orelhas ao pescoço, a destruição de sanzalas, medida punitiva, um exemplo para que os guerrilheiros não se esqueçam de que morrem homens, mulheres e crianças nos locais que os acolhem. Os guerrilheiros aparecem sobredimensionados, agressivos, fulminantes:  
“A nova ofensiva chegou na manhã do dia seguinte, à entrada para a ponte do rio Luvo. Um sopro de aço explodiu e ergueu no ar a pesadíssima ferragem da Berliet, obrigando-a a sair da picada para a orla do capim, com a dianteira destruída. Aconteceu algo de idêntico a uma coluna da Luvaca, dias depois: viajam ao encontro de um fim de semana na cidade de São Salvador, quando de novo uma mina de alta potência explodiu, destroçando uma segunda Berliet. Seguiram-se os ataques, numa só noite, aos quartéis do Luvo, do M’Pozo e da Mama Rosa. Todo o Norte se encheu de sons, estouros e desvarios. Voaram casernas desfeitas pelas balas de canhão, telhados, placas de zinco, trens de cozinha, bidões crivados pelo tiro a tiro das espingardas e de outras armas ligeiras. Os cães do quartel a uivar à morte”.

Calambata irá sofrer as consequências, mais patrulhamentos e interrogatórios nas sanzalas. Iremos assistir a nova onda de violência, os guerrilheiros estão manifestamente próximos, a polícia política entra em campo. João de Melo encaminha o desfecho final para um martírio que deixa uma mensagem de esperança. O herói chama-se Romeu, andava desaparecido, o alferes Alexandrino ameaça com uma terrível repressão, Romeu aparece, sabe que vai ser executado para não haver mais imolações. O alferes Alexandrino parece o demónio à solta:  
“Morde os lábios, puxa o bigode. Terá de enfurecer-se. É o que esperam dele: uma fúria a fim de repor a normalidade. Fecha os punhos, dá alguns passos em frente, sopra a sua ira na cara do outro. E larga-lhe um pontapé que lhe acerta em cheio no baixo-ventre. Romeu enrolha sobre a barriga, fica de joelhos. Alexandrino, que ainda não cumpriu o seu papel, despede-lhe um murro na nuca, o qual soa na noite como uma marretada. Ainda assim, Romeu não se defende, não grita nem geme. A sua dor é também a dos outros”.
Está sentenciado o martírio, falta a execução:
“Dois soldados erguem-no pelas axilas e levam-no de rastos, semiconsciente. Ajudam-no a subir para o carro. O povo assiste ao endireitar do busto e à altivez da cabeça levantada, a escorrer sangue como um Cristo coroado de espinhos. Os carros afastam-se, ganham a subida da rampa até à porta do quartel e à pista dos helicópteros. Só então o silêncio do povo se rasga de alto a baixo. Ficam para trás os gritos, os prantos, as raivas loucas que as pessoas guardam dentro de si, no sítio que os missionários estrangeiros do Sul falavam outrora se chama alma, mas não é nada. A alma é o coração em sangue. O que nos dá e o que nos tira a vida, mais a razão e a luz perpétua da nossa única estrela”.

O romance reescrito de João de Melo toma novos revérberos, assume novo peso literário nesta mudança, é mais um retrato de uma tropa exangue e um libelo anticolonial onde no passado sobressaía um indiscutível romance da literatura de guerra, a sua primeiríssima narrativa, que agora fica sujeita à esperança o dia da independência de Angola.
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Notas do editor

Poste anterior de 24 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20681: Notas de leitura (1267): “Autópsia de um Mar de Ruínas”, por João de Melo, 9.ª edição reescrita pelo autor; Publicações Dom Quixote, 2017 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 28 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20691: Notas de leitura (1268): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (47) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20699: In Memoriam: Os 47 oficiais oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar mortos na guerra do ultramar (1961-75) (cor art ref António Carlos Morais da Silva) - Parte XXXVI: Jaime Anselmo Alvim Faria Afonso, cap cav (Lisboa, 1932 - Moçambique, 1970)

Cor art ref Morais da Silva
1. Continuação da publicação da série respeitante à biografia (breve) de cada um dos 47 Oficiais, oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar que morreram em combate no período 1961-1975, na guerra do ultramar ou guerra colonial (em África e na Ásia). (*)

Trabalho de pesquisa do cor art ref António Carlos Morais da Silva [, foto atual à esquerda], membro da nossa Tabanca Grande [, tendo sido, no CTIG, instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga, adjunto do COP 6, em Mansabá, e comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael, entre 1970 e 1972 ]




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Guiné 61/74 - P20698: (D)o outro lado do combate (55): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte II (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)



Guiné > Bisssau > Filial do BNU - Banco Nacional Ultramariono > Ofício para o Governador, na sede, em Lisboa, datado de 16 de março de 1962, em que se noticia a detenção pela PIDE, entre outros,  do funcionário,  "contínuo" do Banco,  Inácio Soares de Carvalho, por alegadamente pertencer ao clandestino  PAIGC. Cortesia do nosso colaborador permanente Mário Beja Santos (*).




Capa e contracapa do livro "Memórias da Luta Clandestina", de Inácio Soares de Carvalho. Foto: cortesia de Expesso das Ilhas, 30/1/2020. (**)

1. O  livro "Memórias da Luta Clandestina" foi lançado, no passado dia 30 de janeiro, na Praia, capital de Cabo Verde, na Biblioteca Nacional.  Dois meses antes, um dos filhos, Carlos de Carvalho, arqueólogo e historiador, que coordenou o projeto editorial, pediu-nos autorização para reproduzir uma foto do administrador Guerra Ribeiro, da autoria de Paulo Santiago (***). Autorizou-nos, ao mesmo tempo, a reproduzir alguns excertos da obra, em fase final de acabamento.

Inácio Soares de Carvalho (ISC) trabalhou no BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, até ser detido pela PIDE em 15/3/1962. Vamos continuar a publicar alguns excertos das suas memórias políticas, até há pouco inéditas, com a devida autorização do seu filho, Carlos de Carvalho.

Nasceu na Praia em 1916,  foi em criança para a Guiné com os pais. Envolveu-se na luta política, filiando-se em 1956 no  MLG – Movimento para Libertação da Guiné, e mais tarde no PAI (futuro PAIGC),  por influência do seu compadre e colega de Abílio Duarte.

Seria preso pela primeira vez em 15/3/1962. É então deportado, com outros "suspeitos",  para o Tarrafal, donde regressa em 1965. É depois colocado na ilha das Galinhas. Em 1967, é solto,  pela primeira vez. Em 1972, é de novo preso e encarcerado na 2.ª Esquadra de Bissau, sendo solto, 3 meses depois, sempre sem culpa formada. Em 1973, é de novo preso, para conhecer a liberdade definitiva com o 25 de Abril de 1974.  Nos finais de setenta, regressa a sua terra natal, Cabo Verde e afasta-se praticamente da vida política activa. Faleceu em 1994. O seu nome de guerra era "Naci Camará", mas nunca andou no mato, fazia parte do "back office" do PAIGC.

"Após incessantes insistências dos filhos, ISC resolve escrever suas 'Memorias', tendo-as dado por concluídas em 1992. Nelas o autor narra factos novos, desconhecidos da maioria dos militantes, pois, infelizmente, poucos foram os combatentes da clandestinidade, sobretudo na Guiné, que deixaram escritos sobre essa vertente da luta protagonizada pelo PAIGC." (Informações biográficas fornecidas pelo filho, Carlos de Carvalho, nascido na Guiné)


2. Excertos do livro  - Parte II

(...) Em 1956, o Sr. Abílio Duarte, que trabalhava, como eu, no Banco Ultramarino em Bissau [1], foi à minha casa levando um volume contendo uns documentos que me entregou e pediu-me que os guardasse num sítio muito seguro e com muito cuidado, porque "tem uns papéis de muita responsabilidade".

Mas, não me explicou do que se tratava. Dado ser pessoa de minha grande confiança, tomei e guardei no sítio onde penso que era um lugar bem seguro. De vez em quando, ele ia à minha casa pedir tal volume e eu o dava; puxava de uma cadeira e sentava à mesa, fazia as suas consultas e depois amarrava de novo como estava e entregava-me outra vez; eu punha de novo no lugar do costume. 

Naquela altura, eu e o Abílio já éramos compadres, porque baptizara meu filho Celso; isso foi pouco tempo antes de me ter entregado tais documentos. O Abílio de vez em quando dizia-me:

– Compadre, tenho uma coisa muito importante para lhe dizer. 

Dizia-me isso sempre no Banco porque, além de trabalharmos juntos, trabalhávamos na mesma secção. Ele era Chefe de Secção de Correspondência e eu, naquela altura, era encarregado do Arquivo. Não sei se não sentia coragem para me dizer o que queria, mas, o que é certo, repetia-me isso várias vezes. Um belo dia, após ter-me dito a mesma coisa, voltei para ele e disse-lhe:

–  Compadre,  não sente receio de me dizer nada, tanto para o bem ou para o mal, porque além de sermos compadres, o compadre já me conhece muito bem, conhece a minha maneira de ser.

Ao tempo, éramos todos novos, embora sendo eu muito mais velho do que ele.

Quando resolveu abrir comigo e contar-me o que se passava, convidou-me um dia para irmos passar uma tarde no seu quarto. Foi um sábado. Voltei para ele e disse-lhe:

 – Está bem compadre, mas tem que me esperar ir à casa almoçar e dizer a minha mulher que tenho assunto muito urgente a tratar no Banco; e então compadre espera por mim, porque se eu não chegar à casa na hora do costume, ela fica muito preocupada, porque não é hábito chegar fora de hora, sem antes lhe ter avisado.

E  assim ficamos combinados. 

Depois do almoço, descansei-me como era de costume, e depois fui ao Banco ter com ele no seu quarto. Dali então começamos a nossa conversa que foi muito prolongada, e no fim disse-me.

 – Pois,  compadre, fica a saber que existe cá, em Bissau, um movimento muito importante que é para a Independência da Guiné e Cabo Verde. O inicial deste movimento é MLGC – Movimento para Libertação da Guiné e Cabo Verde [, confusão do Naci Camará: na época era o MLG - Movimento para a Libertação da Guiné, "tout court", (LG].

Mas, na altura, não me citou nomes dos responsáveis do Movimento. E depois disse-me que é uma grande responsabilidade para todos aqueles que aderirem ao referido Movimento. E disse-me ainda mais:

 –  Compadre,  deve pensar muito bem antes de tomar a decisão que entender, porque é de muita responsabilidade, e requer grande cuidado.

Naquela altura, eu era pai de 4 filhos,  todos menores. A mais velha, que era Fátima, tinha apenas 8 anos de idade. E realmente pensei muito bem e então decidi aceitar o convite. Isso foi em 1957.

O MLGC [, ou melhor, MLG,]  foi fundado por um grupo de alguns Guineenses e Cabo-verdianos, mobilizados por Amílcar Cabral, em 1956. Mais à frente encontra-se nomes de alguns daqueles fundadores.

Quando aceitei o convite, ele disse-me que agora devo ter muito mais cuidado ainda com tais documentos. Falamos muito naquela tarde, e eu então fiquei muito entusiasmado com tudo o que ele me falou sobre a Independência da Guiné e Cabo Verde, e de mais colónias que estão sob domínio português.

Dali então continuamos a trabalhar no sentido de mobilizar pessoas, o povo para a luta pela liberdade.

Depois da sua saída, então o Sr. Rosendo, que era também empregado do Banco, entrou em contacto comigo e dali então começamos a falar muito do nosso Movimento e começou a dar-me nomes de alguns responsáveis que fazem parte do referido Movimento, como: Srs. Fernando Fortes, de S. Vicente, Inácio Semedo, de Bissau, Aristides Pereira, de Boavista, Elisé Turpin, de Bissau, João Rosa, de Bissau, Ladislau Justado Lopes, de Bolama, Epifânio Souto Amado, de Tarrafal, Júlio Almeida, de S. Vicente, José Francisco, de Calequice, Alfredo Menezes d’Alva, de S. Tomé, Rafael Barbosa, de Bissau, Luís Cabral, nascido em Bissau, mas saiu daqui muito criança, mas toda a gente o conhece, e ainda o nome do próprio fundador do nosso Movimento, Sr. Amílcar Cabral, de Geba [2]. E há muito mais que já não me lembro dos nomes.

Dali então o Sr. Rosendo deu-me a responsabilidade de mobilizar todos os meus amigos e conhecidos, mas de minha grande confiança, lembrando-me sempre da grande responsabilidade que vou assumir no seio do nosso Movimento.

O massacre de Pidjiguiti e o inicio da luta

A 3 de Agosto de 1959, aconteceu o massacre de Pidjiguiti.

O 3 de Agosto foi organizado por responsáveis do nosso Movimento, a fim de, por um lado, chamar à atenção do povo para a luta contra o colonialismo e, por outro, chamar à atenção do mundo para o facto de que os povos da Guiné e de Cabo Verde estarem sob o domínio colonial e de não aceitarem pacificamente essa condição. É nessa perspectiva que os militantes do nosso Movimento organizaram a greve e a manifestação que desembocou no grande massacre de Pidjiguiti.

[...] Com o acontecimento de 3 de Agosto, muitos guineenses e cabo-verdianos descobriram que alguma coisa estranha estava a acontecer na Guiné, o que muito nos encorajou e motivou a trabalhar com mais dedicação.

A fundação do PAIGC

No fim do mês de Setembro a Outubro de 1960, o nosso grande líder, Amílcar Cabral, decidiu mudar a denominação do Movimento de MLGC – Movimento para Libertação da Guiné e Cabo Verde,  para PAIGC  – Partido Africano para Independência da Guine e Cabo Verde. E para o efeito, mandou pedir que fosse à Dakar um dos principais responsáveis do Movimento a fim de contactar com ele, para poder trazer de lá um esclarecimento do motivo que lhe obrigou a fazer tal mudança do nome Movimento para Partido.

Para a designação do responsável que devia seguir para Dakar cumprir a missão, realizamos uma reunião de grande escala. A reunião, como não podia deixar de ser, foi presidida pelo Fernando Fortes visto ser ele o responsável máximo do Movimento que se encontrava dentro do território da Guiné-Portuguesa. Depois do Fortes ter esclarecido o motivo da reunião, ficou-se a espera da pessoa que se disponibilizaria para realizar a missão que era seguramente muito espinhosa. Depois de um largo silêncio, ninguém se oferecendo, o Rafael Barbosa levantou o braço e ofereceu-se como voluntário para ir contactar com o nosso grande líder em Dakar.

Naquele momento, todos os presentes ficaram muito contentes com o gesto do Rafael. A pedido do líder, todos deviam quotizar, conforme a possibilidade de cada um, para as despesas do Rafael na viagem à Dakar. Cumprindo as instruções de Cabral, tomamos todos o compromisso de cuidar da família do Rafael já que ele não tinha meios suficientes para manutenção da família, sendo ele um simples capataz e com um salário mísero que mal dava para aguentar a família.

Foi assim que se preparou a saída do Rafael e ele conseguiu ir à Dakar contactar com o líder do nosso Movimento.

(Continua)
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Notas de Carlos de Carvalho:

[1] ISC ingressa no BNU (Banco Nacional Ultramarino) em 1939. ISC tinha, na altura, 34 anos de idade. O BNU era das mais importantes instituições nas colónias portuguesas.

[2] As pessoas aqui referenciadas constituíram o núcleo inicial dos responsáveis do Movimento, MLGC.
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 7 de dezembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19264: Notas de leitura (1128): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (63) (Mário Beja Santos)

(**) Último poste da série 29 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20695: (D)o outro lado do combate (54): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte I (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)

(***) Vd. postes de:

16 de janeiro de  2020 > Guiné 61/74 - P20563: O mundo é pequeno e a nossa Tabanca...é Grande (112): Vamos publicar, com a devida autorização da família, um excerto das memórias, ainda inéditas, de Inácio Soares de Carvalho, um nacionalista da primeira hora, militante do PAIGC, pai do nosso leitor (e futuro grã-tabanqueiro), o historiador e arqueólogo Carlos de Carvalho, cabo-verdiano, de origem guineense

15 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20559: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (67): pedido de autorização para uso de fotos de Guerra Ribeiro, em livro de memórias do "tarrafalista" Inácio Soares de Carvalho (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, Cabo Verde)

domingo, 1 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20697: Blogues da nossa blogosfera (124): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (39): Palavras e poesia


Blogue Jardim das Delícias, do Dr. Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com a devida vénia, reproduzimos esta publicação da sua autoria.

TODOS SOMOS FEITOS DE CORDAS

ADÃO CRUZ

© ADÃO CRUZ


Todos somos feitos de cordas
qual cérebro qual coração!
Cordas de violino
cordas de guitarra
cordas de enforcar
cordas daquelas que amarram cruelmente os barcos ao cais
e os fazem soluçar.
Já viram coisa mais triste do que os barcos a soluçar
presos às argolas do cais?
Felizes os que têm por amarra
as cordas de um violino
ou as cordas de uma guitarra.
Lá para os lados da evasão
no caminho de Santiago
em dias de vibração
uma floresta de cordas
uma floresta de sons
explode em fogo de artifício
nos dedos de Uriarte
e as cordas que nos prendem
por mais duras que sejam
tocam sempre uma canção.
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Nota do editor

Último poste da série de 23 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20677: Blogues da nossa blogosfera (122): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (38): Palavras e poesia

Guiné 61/74 - P20696: Blogpoesia (662): "Lírios à borda da estrada", "Para minha defesa..." e "Planeta Terra", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados, entre outros, ao nosso blogue durante a semana, que continuamos a publicar com prazer:


Lírios à borda da estrada

Estão à janela, vendo quem passa,
nas bordas da estrada.
Arautos alegres, saúdam e apelam à calma.
A vida é tão breve.
Não adianta correr.
Hinos de paz.
Bandeiras bailantes.
O sol os acaricia.
Bailam ao vento.
Orlas de cor.
Pintadas de fresco.
Não cobram serviço.
Só pedem respeito.
Irradiam alegria.
Harmonia perfeita.
À chuva e ao sol,
Regalam os olhos.
Quem dera, a vida
Do pobre e do rico,
Batida de agruras,
Regada de pranto,
Seguisse o exemplo
dos lírios à da borda da estrada.

Bar “Caracol” arredores de Mafra, 28 de Fevereiro de 2020
9h25m
Jlmg

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Para minha defesa…

Cuido de minha sanidade mental.
Para não dar em maluco.
O descalabro é tão grande na comunicação social.
Carece o bom senso.
Alardeia-se o banal.
Omite-se o importante.
Há erros de escrita.
Merecem castigo.
Gastam o tempo repetindo o já dito.
Uma televisão acesa encharca o café.
Rouba a paciência.
Os pivôs fazem caretas.
Dão cambalhotas.
Parecem macacos.
O que dizer dum jornal.
A verdade não conta.
O que importa é confundir.
Pró partido ou para a seita.
Alienantes.
Só lhes vale o papel.
Acende a lareira
E embrulha as castanhas.
Ao que a gente chegou!...

Mafra, 28 de Fevereiro de 2020
15h51m
Jlmg

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Planeta Terra

Terra, planeta rugoso e desatinado,
Pelas mãos de quem o povoa,
Rompeu a sua órbita,
Todo impante.
Escravizado pelo dinheiro e sujidade,
Quer ser o que não é.
Por mais milénios que já tenha,
Nunca terá a eternidade.
Fragmento anódino, perdido no universo.
Um dia, deixará de ser.
Nem a história o contará.
Envolta em guerras sanguinolentas.
Por causa do deus capital,
Esqueceu que é, apenas, terra e mar
Que o sol queima e o vento seca.
Nem a lama, a cinza ou pó.
Quanto mais o planeta eterno que quereria ser…

Ouvindo Holst- planetas
Bar “Castelão” 26 de Fevereiro de 2020
10h1m
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de 23 de Fevreiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20676: Blogpoesia (661): "Outra forma de amar...", "O sol a pino" e "As duas faces...", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

sábado, 29 de fevereiro de 2020

Guiné 61/74 - P20695: (D)o outro lado do combate (54): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte I (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)


Capa e contracapa do livro "Memórias da Luta Clandestina", de Inácio Soares de Carvalho. Foto: cortesia de Expesso das Ilhas, 30/1/2020.


1. As memórias de Inácio Soares de Carvalho já não são inéditas nesta data... O livro "Memórias da Luta Clandestina" já foi lançado, no passado dia 30 de janeiro, na Praia, capital de Cabo Verde, na Biblioteca Nacional.  

Dois meses antes, um dos filhos, Carlos de Carvalho, arqueólogo e historiador, que coordenou o projeto editorial, pediu-nos autorização para reproduzir uma foto do administrador Guerra Ribeiro, da autoria de Paulo Santiago (*). Autorizou-nos, ao mesmo tempo, a reproduzir alguns excertos daobra

Aqui vão alguns excertos das suas mensagens:


(i) sexta, 22/11/2019, 13:37


Exmo. Senhor Luís Graça

Antes de mais meus melhores cumprimentos.

Sou Carlos de Carvalho, natural da Guiné, de nacionalidade cabo-verdiana.

Estou concluindo as Memórias de nosso falecido pai, um Combatente de Liberdade da Pátria, Inácio Soares de Carvalho, de nome de luta Naci Camara, várias vezes preso pela PIDE durante o tempo que durou a luta pela independência.

As Memorias narram a vida politica dele desde 1956 a 1974.  (...)

(ii) sexta, 22/11/2019, 19:13

Caro Sr. Luís Graça,

Boa tarde.

Confesso ter ficado surpreso com sua pronta resposta. Pensava que levaria dias a me responder. Confesso também ter ficado surpreso, claro pela positiva, com o conteúdo de seu email.

É verdade que é um dever de memória resgatar parte de nossa história comum. É o que faremos publicando a obra de nosso velho.(...)

Envio em anexo, extractos do Livro para sua apreciação e com autorização de o publicar no seu/nosso blogue se assim entender. Será uma forma de divulgação do que será o livro.

Meus / nossos (da família) antecipados agradecimentos.
Carlos de Carvalho

(iii) segunda, 25/11/2019, 19:12

(...) Aceito com muito gosto fazer parte da “rede de memórias” que conseguiram criar, sem remorsos, sem ressentimentos. O passado nosso, quer queiramos quer não, foi comum. Tive a felicidade de ter estudado com muitos colegas portugueses que hoje não sei por onde andam mas que na altura éramos amigos, jogávamos à bola juntos, sem perguntarmos donde cada um vinha e quem eram nossos pais. (...)

Eu vivo na Praia, Cabo Verde, V, e sou historiador e arqueólogo de profissão. Trabalho no Instituto do Património Cultural de que fui Presidente largos anos. Faço mais é investigação no domínio da preservação do património e agora estou também me enveredando pela temática da luta de libertação. (...)


2. Na altura, escrevemos o seguinte:

Inácio Soares de Carvalho trabalhou no BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau,  até ser detido pela PIDE em 15/3/1962. Vamos publicar, em breve, um excerto das suas memórias políticas, até há pouco inédita,  com a devida autorização do seu filho, Carlos de Carvalho. 

Nasceu na Praia, foi em criança para a Guiné com os pais. Envolveu-se na luta política, filiando-se no PAIGC. Era compadre e colega de Abílio Duarte. Foi preso pela primeira vez em 1962. É deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na ilha das Galinhas. Em 1967, é liberto pela primeira vez. Em 1972, é de novo preso e encarcerado na 2.ª Esquadra de Bissau, sendo solto, 3 meses depois, sem culpa formada. Em 1973, é de novo preso, para conhecer a liberdade definitiva com o 25 de Abril de 1974, em Portugal. Nos finais de setenta, regressa a sua terra natal, Cabo Verde e afasta-se praticamente da vida política activa. Já faleceu. (Informações biográficas fornecidas pelo filho, Carlos de Carvalho).

Ficamos, em dois ou três, a sinopse do livro e alguns excertos.


3. Excertos do livro - Parte I

Sinopse

As « Memórias », que se traz a público, constitui o testemunho, em primeira pessoa, do combatente de Liberdade da Pátria, Inácio Soares de Carvalho (ISC),  que consagrou toda sua vida ao desígnio de ver livre suas duas pátrias, a Guiné e Cabo Verde.

Tendo nascido na cidade da Praia, foi, ainda criança, levado pelos pais para a Guiné, onde viveu quase toda sua vida.

Inácio Soares de Carvalho foi dos militantes da primeira hora da gesta libertadora dos povos da Guiné e Cabo Verde.

Milita no MLGC em 1957, Movimento que se transforma, segundo o próprio autor, nos inícios dos anos sessenta no PAIGC.

Conta que foi mobilizado, em 1956, pelo amigo e compadre Abílio Duarte, seu colega de trabalho no antigo Banco Nacional Ultramarino, na Guiné-Portuguesa.

É preso pela primeira vez em 1962.

Conheceu todas as prisões do regime salazarista na Guiné-Portuguesa: as de Bissau, Mansoa e Ilha das Galinhas.

Em 1962, é deportado para a Colónia Penal do Tarrafal.

Em 1965, regressa a Guiné e segue preso, com mais cinco companheiros, para a Ilha das Galinhas.

Em 1967, é liberto pela primeira vez.

Em 1972, é de novo preso e encarcerado na 2`ª Esquadra de Bissau. Porém, 3 meses depois é liberto.

Em 1973, é de novo preso para conhecer a liberdade definitiva com o Golpe de Estado de 25 de Abril de 1974, em Portugal.

Nos finais de setenta, regressa a sua terra natal, Cabo Verde, e afasta-se praticamente da vida política activa.

Após incessantes insistências dos filhos, ISC  resolve escrever suas “Memorias”, tendo-as dado por concluídas em 1992. Nelas o autor narra factos novos, desconhecidos da maioria dos militantes, pois, infelizmente, poucos foram os combatentes da clandestinidade, sobretudo na Guiné, que deixaram escritos sobre essa vertente da luta protagonizada pelo PAIGC.

A vida, em si, de ISC, do nascimento à morte, é também, como se poderá constatar lendo esta obra, o espelho da história dos povos da Guiné e de Cabo Verde.

O autor morre em Dezembro de 1994, sem ver suas “Memórias” serem do conhecimento daqueles para quem deu grande parte de sua vida.

No intuito de enriquecer a obra e melhor compreender a personalidade do homem e do político que ISC foi, os filhos decidiram publicar a obra introduzindo alguns capítulos. Assim, a obra final apresenta a seguinte estrutura: uma Nota Introdutória, onde se explica toda a história da obra; um Prefácio; os agradecimentos; um 1° capítulo, designado de Pré-luta; o 2° que constitui as “Memórias” propriamente ditas do autor; um 3°, designado de Pós-luta; um 4° capítulo denominado Depoimentos, onde são apresentados testemunhos de companheiros de luta de ISC ainda vivos e contactáveis e de pessoas que, de uma forma ou de outra, lidaram com o autor na sua vida normal e nas “coisas da luta” [1].
Índice:

i) Nota Introdutória ................................................................3-6

ii) Prefácio ..............................................................................7-8

iii) Agradecimentos ...............................................................9-11

iv) Pré-luta ...........................................................................12-23

v) Memorias de ISC ...........................................................24-185

vi) Pós-luta ........................................................................186-254

vii) Depoimentos ...............................................................255-290

viii) Anexos .......................................................................291-300

viii) Bibliografia consultada ..............................................301-302


Nota Introdutória

As « Memórias », que se traz a público, constituem a história da vida política de Inacio Soares de Carvalho, que a consagrou inteiramente ao desígnio de ver livre suas duas pátrias, a Guiné e Cabo Verde [2].

A vida, em si, de ISC, do nascimento à morte, é também, como se poderá constatar lendo esta obra, o espelho da história dos dois povos.

O autor deu por concluídas as “Memórias” em 1992.

Nelas, ele relata seu engajamento político, ainda de forma não oficial no MLGC, em 1956, através de seu compadre Abílio Duarte, até o dia 29 de Abril de 1974, dia em que os presos políticos, na Ilha das Galinhas - Guiné Bissau, receberam a notícia do golpe de estado havido em Portugal, à 25 de Abril desse mesmo ano, golpe que pôs fim ao longo período do império colonial português.

Terminada a escrita, ISC as dá aos filhos para leitura e preparação da sua publicação. Porém, estes lendo-as ficam algo “decepcionados”, pois, constataram que ISC omitiu episódios interessantes do período da militância clandestina mas, sobretudo, da sua vida política no período pós-independências da Guiné e Cabo Verde. Essa omissão não caiu no agrado dos filhos. Estes consideravam que, procedendo dessa maneira, o autor estaria, por um lado, “retirando” páginas interessantes de sua própria história e da história da luta no seu todo, o que, por sua vez, “roubaria” importância e objectivo à obra. Essa pretensão dos filhos encontrou acérrima e firme oposição do autor, aliás, espelho de seu carácter.

Mesmo vivendo já amargurado com seus companheiros de luta, opôs-se determinantemente às constantes “provocações” dos filhos, tendo ficado unicamente pelo relato dos factos vividos até a libertação das terras pelas quais lutou. Não acrescentou nem mais uma única página à história.

A posição de pai e dos filhos não se concilia. O impasse entre a contínua insistência dos filhos em fazer o autor das “Memórias” esquecer mágoas e “segredus di luta” e contar sua vida política completa, por um lado, e, por outro, a feroz resistência deste em fazê-lo, foi adiando a publicação do livro até que...ISC adoece e a degradação de sua saúde foi tão rápida que não resiste [3].

O autor morre a 26 de Dezembro de 1995/96, sem ver suas “Memórias” serem do conhecimento daqueles para quem deu grande parte de sua vida.

Com o desaparecimento do autor, o dilema continua. Ou os filhos acatam a decisão do pai e publicam as “Memórias” tal como escritas ou a obra ficava sem publicar.

Após algum período de indecisão, os filhos decidem por uma outra via alternativa, cumprindo, porém, o desígnio do pai. Decidindo publicar a obra, resolvem introduzir, em capítulos separados, os episódios vividos e não narrados pelo autor, mas que eram/são do conhecimento da família.

Toda esta situação explica o longo intervalo entre a conclusão das “Memórias” e a sua publicação.

Assim concertados e na expectativa de enriquecer a obra, se decidiu pela sua publicação com a estrutura que apresenta: uma Nota Introdutória, onde se explica toda a história da obra; um Prefácio; um 1° capítulo, designado de Pré-luta; o 2° que constitui as “Memórias” propriamente ditas do autor; um 3°, designado de Pós-luta e um 4° capítulo denominado Depoimentos, onde são apresentados testemunhos de companheiros de luta de ISC ainda vivos e contactáveis e de pessoas que, de uma forma ou de outra, lidaram com o autor nas “coisas da luta”[4].

Não tendo sido escritos pelo autor, impõe-se clarificar porque foram introduzidos o 1°, mas sobretudo o 3° capítulo do livro.

Em relação ao 1° capítulo, entendeu a família que o conhecimento da vida de ISC no “Pré-luta” faria todo o sentido, pois, as peripécias por que passou, nesse período, teriam contribuído certamente para a formação do carácter do “Homem”, o que, por sua vez, ajuda a entender sua postura na política. Assim, no capítulo, se retratou, resumidamente, a difícil vida de ISC, do nascimento até se tornar homem, ingressar no funcionalismo público ultramarino e constituir família.

Com a introdução do «Pós-luta», 3° capítulo, a família quis trazer a público parte dos episódios que ISC recusou narrar, escudando-se, como dito anteriormente, no “respeitável” “segredus di luta”. Os “segredus di luta” constituem normalmente o refúgio da grande maioria dos combatentes que resolvem deixar suas “Memórias”; este “escudo” serve, na essência, para evitar abordar episódios sensíveis passados durante a luta, para não “beliscar” ou “afrontar” camaradas, sobretudo quando estes ainda se encontram em vida.

Interessante seria se ISC contasse, nas Memorias, as inúmeras conversas tidas com os dirigentes máximos do Partido e com RB, no período pós-independência. Contadas essas conversas seriam, com certeza, um importante contributo para o conhecimento de vários episódios “obscuros” da história da luta, tais como o discurso de RB no Palácio, diante do Governador-General Spínola; o assassinato de Amílcar Cabral ou e sobretudo os desvios comportamentais do Partido, no pós-luta.

É essa “falha” que se quis colmatar, introduzindo o 3° capítulo.

O conteúdo do “Pré-luta” e do “Pós-luta” resulta das estórias contadas pelo autor e seus camaradas de luta, no seio familiar, e ao testemunho da mulher, Maria Rosa de Carvalho, companheira de todos os tempos e todas as lutas, mãe dos nove filhos de ISC.

Do ponto de vista estético, tentou-se que o livro, no seu todo, tivesse a linguagem simples que as “Memorias” propriamente ditas apresentam. De se referir que o nível académico do autor era o básico (4a classe ou 2° grau, como também era designado) que a maioria dos cidadãos guineenses podia alcançar na época.

Ao longo das narrações, o autor recorreu à constantes chamadas de atenção ao leitor para o facto de a luta de libertação não ter sido obra fácil e ter exigido muito sacrifício daqueles que nele participaram.

Em relação à este aspecto, a família decidiu não retirar as repetições precisamente para poder realçar o que o autor mesmo quis, procedendo dessa forma.

Recorrentes chamadas de atenção também foram dirigidas aos militantes de 1a hora. Estas últimas foram uma espécie de grito de desespero àqueles que “vieram do mato” no sentido de não se esquecerem de que o avanço da luta até a vitória final só foi possível devido aos enormes esforços consentidos e o inabalável empenho dos companheiros de luta na clandestinidade.

Com largos anos de atraso, eis que se cumpre o desígnio de um dos protagonistas principais da luta clandestina que foi dar (ver) a conhecer, através destas “Memórias”, o contributo duns e doutros fornecendo/disponibilizando mais elementos para o conhecimento de parte da história da luta de libertação dos povos da Guiné e de Cabo Verde.

É entendimento dos familiares que estas Memorias ou este pequeno livro, como lhe designa o próprio autor, constitui um marco, pois, crê-se ser o primeiro testemunho de quem viveu e relatou, em/na primeira pessoa, os diferentes episódios da luta clandestina do PAIGC, na Guiné, desde os seus primórdios até ao 29 de Abril de 1974, quando conheceram a liberdade os prisioneiros políticos encarcerados na Ilha das Galinhas. Os factos históricos narrados, as personagens elencadas ao longo das páginas que enformam o livro deixam pistas para uma melhor aprofundamento dos estudos da luta de libertação nacional protagonizada pelo PAIGC.

Com este “testemunho” fica o desafio à outros “testemunhos” dos protagonistas da “saga da independência”, nas diferentes frentes de luta, e à estudos mais aprofundados dos estudiosos do “processo” da independência dos povos da Guiné e de Cabo Verde. Como sabiamente afirma o autor destas “Memorias” a história da luta só seria completa com o testemunho dos que estiveram nas três frentes da luta: 1) os da clandestinidade, tanto na Guiné como em Cabo Verde; 2) os que estiveram nas frentes da luta armada nas matas da Guiné e 3) os que estiveram na sede do PAIGC, em Conakry. Só cruzando as histórias das três frentes de luta se poderia ter a verdadeira “História da Luta de Libertação da Guiné e Cabo Verde”.

(Continua)
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Notas de Carlos de Carvalho:

[1] O 1º e º 3º capítulo constituem recolhas e pesquisas efectuadas pela família junto de determinadas fontes, algumas já fora do mundo dos vivos, e das próprias vivências familiares que, querendo ou não, são partes integrantes das Memórias do autor.

No processo de recolha de Depoimentos, 4° capítulo, constatou-se que os mais velhos companheiros de luta de ISC, na clandestinidade, já não se encontram no mundo dos vivos; constatou-se ainda e com grande mágoa que a História quase que deles se esqueceu. Por isso, os entrevistados foram os que, na altura dos acontecimentos narrados, eram todos jovens: António Cabral, Brigido de Barros, Carlos (Carlitos) Barros, Constantino Costa, Mário Soares, Noberto (Kote) de Carvalho, Wladimir Brito, entre outros.

[2] Doravante encontrar-se-á também ISC, Inácio ou Carvalho,  para se referir ao autor.

[3] A família de ISC é “longevo” e ele sempre foi extremamente resistente pelo que os filhos nunca imaginaram que a doença o levaria assim tão cedo, apesar de saber das imensas torturas que sofrera nas mãos da PIDE. Terão sido, aliás, essas torturas físicas e psíquicas, sofridas nas constantes prisões, ao longo dos 12 anos de luta, que levaram ao seu “precoce” desaparecimento.

[4] O 1º e º 3º capítulo constituem recolhas e pesquisas efectuadas pela família junto de pessoas, companheiros de luta de ISC. A maioria dessas fontes não se encontra no mundo dos vivos. Foram também “recolhas” resultantes das próprias vivências / estórias passadas no seio da família.

Os Depoimentos, 4° capítulo, constituem, so por si, uma fonte importante da luta clandestina de libertação nacional.

No processo de recolha de Depoimentos, constatou-se que os mais velhos companheiros de luta de ISC, na clandestinidade, já não se encontram no mundo dos vivos. Por isso, os entrevistados foram os que, na altura dos acontecimentos narrados, eram todos jovens (António Cabral, Brigido de Barros, Caramo Sanha, Carlos (Carlitos) Barros, Constantino (Tino) Costa, Mário Soares, Noberto (Kote) de Carvalho, Wladimir Brito, entre outros). Constatou-se ainda e com grande mágoa que a História quase que deles se esqueceu.
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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

16 de janeiro de  2020 > Guiné 61/74 - P20563: O mundo é pequeno e a nossa Tabanca...é Grande (112): Vamos publicar, com a devida autorização da família, um excerto das memórias, ainda inéditas, de Inácio Soares de Carvalho, um nacionalista da primeira hora, militante do PAIGC, pai do nosso leitor (e futuro grã-tabanqueiro), o historiador e arqueólogo Carlos de Carvalho, cabo-verdiano, de origem guineense

15 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20559: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (67): pedido de autorização para uso de fotos de Guerra Ribeiro, em livro de memórias do "tarrafalista" Inácio Soares de Carvalho (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, Cabo Verde)

(**) Último poste da série >  29 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20396: (D)o outro lado do combate (53): Quando um comando das FARP, da Frente Nhacra / Morés, destruiu, em 6 de maio de 1972, o centro emissor regional de Nhacra...(Comunicado do PAIGC, em francês, assinado por Amílcar Cabral)... Afinal, a propaganda era uma arma, tão ou mais eficaz que as minas A/C, a Kalash, a "costureirinha", o morteiro 120 ou o RPG 7... Nesse aspeto, a "Maria Turra" ganhava ao "Pifas"...