quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21557: Historiografia da presença portuguesa em África (239): Uma viagem à Ilha de Orango em 1879, um magnífico relato de viagens no Boletim n.º 1, 6.ª Série de 1886, da Sociedade de Geografia de Lisboa (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos, 

É bem interessante a analogia usada com outros povos imperialistas que se serviram do comércio para ir ocupando posições, preparar o terreno para ocupações efetivas. Foi assim que trabalharam os alemães e os holandeses. Os franceses não escaparam à tentação de se assenhorear da costa ocidental, só tinham receio de entrar em conflito com os ingleses, presentes na Gâmbia e na Serra Leoa. Tentarão dominar o coração do continente, nessa altura o governo de Londres irá humilhá-los, obrigando-os a retirar de toda a região do Nilo. 

Max Astrié, a fazer fé neste relato, é o primeira branco a ir à Ilha de Orango. Não terá sido o primeiro, houvera pouco tempo antes um naufrágio de um navio austríaco, tudo terá acabado num certo morticínio e roubo, como se verá no próximo texto. 

É uma peça finíssima de literatura de viagens, com o maior dos interesses para as literaturas portuguesa e guineense. Peço imensa desculpa por quaisquer erros de tradução, sinto-me feliz por fazer reaparecer este belo documento que refere acontecimentos passados em 1879. 

Na década seguinte, com a Convenção Luso-Francesa, nenhum outro Max Astrié poderia voltar a escrever um relato como este, seria entendido como pura ingerência numa colónia oficialmente portuguesa.

Um abraço do
Mário



Uma viagem à Ilha de Orango em 1879, um magnífico relato de viagens (2)

Beja Santos

Confesso a minha total surpresa e satisfação em descobrir este documento digno de emparceirar no que há de melhor da literatura de viagens à Guiné. Max Astrié assina como vice-cônsul da Turquia em Bolama e Bissau e a sua insólita viagem à Ilha de Orango, carregada de peripécias e dos maiores riscos, foi publicada no Boletim da Sociedade de Geografia, 6.º Série, N.º1, 1886. 

Atenda-se que a viagem ocorreu na década anterior, a França, de modo sub-reptício, ensaiava todas as diligências para se instalar para cima do rio Nuno, estreitando o campo de manobra da presença portuguesa na Senegâmbia. 

Como se viu no texto anterior, a convite do visconde de Sanderval, e seguramente sob os auspícios do governo francês, Max Astrié é convidado a viajar até à ilha de Orango, a maior dos Bijagós, onde até então não chegara a influência dos portugueses. Desembarca e é apresentado ao rei, um verdadeiro déspota, um tirano sanguinário. Propõe-lhe um contrato comercial, o rei exige a prática de um sacrifício, degolar uma galinha e perceber da bondade desse mesmo contrato, a galinha a estrebuchar deveria cair aos pés do francês, seria uma boa sina. É neste ponto que retomamos o relato.

Enquanto se preparava o sacrifício, escreve Max Astrié:

"Trouxeram de todos os lados laranjas, ananases e vinho de palma. Reparei na presteza com que uma jovem negra depusera a meus pés dois soberbos ananases e colocou-se atrás de mim e com as pontas dos dedos procurou tocar no meu pescoço. Ela completou esta pantomima manifestando-me o desejo de me ver o peito. Cedi à sua curiosidade e abri a camisa e o colete de flanela. A multidão, atenta a todos os meus movimentos, deixou escapar um imenso clamor devido sem dúvida ao espanto que lhe causava a brancura da minha pele. Eu também não quis ficar sem resposta.

É uso e costume em algumas tribos da costa africana manifestar a galantaria diante das mulheres afagando com delicadeza os seios e a extremidade superior do fémur e o maior elogio que se poderá fazer à beleza da mulher acariciada é exprimir a admiração que causa a firmeza destas partes do corpo. 

Nós, parisienses, ficaremos certamente surpreendidos que se proceda de tal modo. Aproximei-me da negra e senti-me no dever de corresponder à sua delicadeza. Entretanto, o rei Oumpâné apareceu no limiar da porta da sua casa e lançou-me um olhar que não tinha nada de convidativo…

Tudo se aprestou para o sacrifício. A uma centena de metros do telheiro onde fôramos recebidos estendia-se uma espécie de lugar público cercado de bananeiras e laranjeiras. Tinham trazido todos os ídolos da ilha. Eram estátuas grotescas em madeira, grosseiramente esculpidas e que tinham no alto um género de cartola, que é o emblema do poder real. Quanto às divindades secundárias, tinham a representação de grandes senhoras negras que ostentavam em cima dois cornos de cabra. Como se vê, todos os povos têm uma inclinação para pôr cornos nos seres sobrenaturais.

O povo formava um imenso círculo à volta destes ídolos e esperava com impaciência a chegada do rei que devia presidir ao sacrifício. E o rei apareceu.

Colocou-se a meu lado, sempre acompanhado por dois ministros. Ao sinal do rei, o grande sacerdote, após alguns salamaleques, apresentou um galo que segurava vigorosamente pela cabeça e o ministro da justiça pelas patas. Uma faca caiu sobre o pescoço do galo, que tombou decapitado e caiu por terra nas convulsões da agonia. O rei explicou-me através do intérprete que se o corpo do animal que se debatia se aproximasse de mim o sacrifício tinha agradado aos deuses. Pelo contrário, se o animal tomasse a direcção oposta, os deuses não me seriam favoráveis. Por fatalidade, o galo afastou-se de mim, a assistência parecia ter ficado em estado de choque e o rei levantou-se e foi para sua casa, sem proferir palavra.

Os deuses tinham-me abandonado! O ministro da guerra enviado por Sua Majestade Oumpâné informou-me que eu estava detido. Ao mesmo tempo, uma centena de Bijagós dirigiu-se para a minha embarcação e em menos de uma hora desembarcaram tudo o que nela vinha.
Fiquei aterrado.

Não sabendo o que me ia acontecer, deplorei a funesta temeridade que me tinha levado a estas costas tão hostis. A ideia de resistir assaltou-me o espírito. Mas em presença de tanta população servindo às ordens deste déspota, compreendi que qualquer tentativa desse género acabaria terrivelmente mal, quer para mim quer para a minha tripulação.


O meu cozinheiro preparou a galinha com arroz tradicional. A minha refeição foi interrompida com a chegada de um grupo de nativos que traziam um touro que foi degolado na minha presença. Foi esquartejado sem ser esfolado e o ministro da guerra veio anunciar-me que o rei mandara matar o touro em minha honra e contava com a minha generosidade para lhe oferecer um quarto do animal.

Respondi prontamente que sim, e ofereci também 38 litros de aguardente. Oumpâné ficou tão satisfeito que me veio agradecer pessoalmente. Através do meu intérprete, deu-me a saber que eu era livre de percorrer toda a ilha e que em minha honra autorizara festejos públicos.

Sentia-me totalmente confuso. Um rei que me mantinha prisioneiro e que ao mesmo tempo me oferecia presentes e festejos públicos era a coisa mais incompreensível do mundo.
Floresta guineense, imagem do site Algarve Selvagem, com a devida vénia
Vista geral da Ilha de Orango

No dia seguinte, dirigi-me para o interior da ilha. Após ter atravessado muitos milheirais, campos de inhames e de batatas, entrámos numa floresta que cobria uma grande parte da ponta oeste de Orango. É-me difícil traduzir em palavras a impressão que me causou. Já tinha visto muitas florestas e lido numerosas descrições; mas em parte alguma vi algo que me desse a ideia de semelhante natureza.

Encontrávamo-nos debaixo de uma abóbada imensa, formada principalmente por árvores de bombax [procurei em vários dicionários, surfei no Google, estou em crer que Max Astrié está a falar de poilões gigantescos, é a maior de todas as árvores, na Guiné], uma das árvores gigantes da costa africana cujo tronco serve para fazer as pirogas. Lianas com as formas mais bizarras e variadas enrolavam-se à volta dos troncos vigorosos, subindo muitas vezes até às copas. Estas árvores, cuja altura ultrapassa os carvalhos, são coroladas por uma folhagem de tal modo espessa que os raios de sol não a conseguem atravessar. À sua volta reina uma sombra eterna; daí a ausência de toda a vegetação sobre o solo. Andávamos através de uma clareira que me parecia interminável e que tinha ao alto uma vasta cúpula de verdura onde ressoavam os gritos, os cantos, os miados e os uivos na mais variada fauna.

De longe em longe, numa nesga de luz, apareciam goiabeiras curvadas sob o peso dos frutos maduros [tenho sérias dúvidas que se tratava de goiabas, mas sim de mangas]. Estes frutos, da grossura de batatas, têm um gosto saboroso que dá ao vinho um perfume requintado [a frase parece-me desconexa, mas é o que Max Astrié escreveu].

Via-se a esmo o caju [impossível, o caju chegou à Guiné na década de 40 do século XX, talvez ele se refira ao amendoim], o bambu e a palmeira. Sobre esta última, observarei que não há nada de mais útil para mil usos possíveis; com as suas folhas os negros fabricam vestuário e cordoaria; do seu tronco extrai-se o vinho de palma e do seu fruto retira-se o óleo de palma e nas plantas da palmeira temos uma noz de um gosto agradável designada por palmiste. O ruído dos nossos passos e as nossas vozes punham toda aquela fauna em movimento, gritando e fugindo nas ramagens".

(continua)
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Nota do editor:

Último poste da série de 11 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21532: Historiografia da presença portuguesa em África (238): Uma viagem à Ilha de Orango em 1879, um magnífico relato de viagens no Boletim n.º 1, 6.ª Série de 1886, da Sociedade de Geografia de Lisboa (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21556: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (12): A cobra e o seu matador....



Guiné > Região de Quínara > Buba > Foto de Boaventura Alves Videira, enfermeiro,  
CCS/BCAÇ 1861 (Buba, 1965/67), com um cobra pitão (ou "irã-cego"), enviada através do endereço do nosso camarada Júlio César [membro da nossa Tabanca Grande desde Julho de 2007, ex-1º Cabo, CCAÇ 2659 / BCAÇ 2905, Cacheu, 1970/71]. Como comentámos na altura, parece tratar-se de uma cobra pitão africana, uma Phyton sebae, popularmemte conhecida como "irã cego". na Guiné-Bissau... 

Pode atingir os 6 metros de comprimentos, não é venenosa e não constitui um perigo real para os seres humanos... A nossa malta na Guiné chamava-lhe erradamente jibóia... (As jiboias só existem no Novo Mundo, ou seja, na América Central e na América do Sul).

Foto (e legenda): © Boaventura Alves Videira (2013). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Mais uma pequena história do Carlos Barros:

(i) é um de "Os Mais de Nova Sintra", 2ª  C/BART 6520/72 (Bolama, Bissau, Tite, Nova Sintra, Gampará, 1972/74), os últimos a ocupar o aquartelamento de Nova Sintra antes da sua transferência para o PAIGC em 17/7/1974; 

(ii) membro da Tabanca Grande nº 815, tem 15 referências no nosso blogue; vive em Esposende, é professor reformado.


A cobra e o soldado António Cruz… 

por Carlos Barros (*)


Nova Sintra, um destacamento desterrado no sector do Quínara, com uma população escassa, apenas algumas “cubatas” ladeavam, interiormente,  o nosso aquartelamento militar.

Todas as manhãs, por escala, grupos de militares deslocavam-se a um poço para trazer água nuns bidões geralmente para a cozinha,  embora houvesse um outro poço, protegido em cimento armado e com um tampo em cimento, para tapar a abertura do mesmo, perto do aquartelamento,  que era para a população se reabastecer..

Numa manhã, pelas 10 horas, o furriel Barros, acompanhado de quatro soldados, deslocaram-se num Unimog com quatro bidões para se reabastecerem no poço..

Chegados ao local, em direcção à estrada de Lala, a viatura parou e algo nos apareceu à nossa frente: Nada mais, nada menos, que uma cobra com quase quatro metros de comprimento. Era comprida mas bastante estreita. 

Foi um pânico momentâneo e o ofídio abriu a boca, tentando atacar, ou melhor, ameaçar! O soldado António Cruz, num ápice, pega na G3 e dispara quatro tiros, a pequena distância,  tendo dois deles, atingido a coluna do bicho e um outro perto da barriga. Com a boca ferida, escorrendo sangue, a cobra ficou paralisada e nós acabamos por matá-la.

Enchemos os bidões de água, pegamos na cobra já morta e trouxemos para o aquartelamento, onde os nossos companheiros nos esperavam porque a notícia já tinha chegado…Era o regresso a pé. À frente da viatura.

Foi o espanto geral quando, no aquartelamento, mostrámos o nosso “troféu”. E lá contámos a história, sendo o herói o soldado Cruz,  do 3º grupo de combate, que revelara uma afinada pontaria…

A cobra foi mostrada em procissão, a todos os militares e até o Capitão Cirne se revelou espantado com a rapidez e coragem do Cruz, soldado muito alegre e sempre bem humorado, com ele presente nunca havendo tristezas.

O primeiro sargento “Rasteiro” soube da notícia, mas não saiu da secretaria,  talvez tivesse medo da cobra morta…

Passados vinte minutos, fizemos uma cova funda, no meio do capim, e enterrámos a cobra que, penso,  não chegou a beber a água onde nós nos abastecemos….

O furriel Barros levou os soldados para a cantina e pagou umas cervejas e umas "fantas", servidas pelo simpático Gonçalves, o “cantineiro” de Nova Sintra.

Para ilustrar a história para os nossos vindouros, tirámos uma fotografia,  numa máquina fotográfica Olimpus Pen F que nos foi emprestada. 

Em Bissau, o rolo foi revelado e concretizou-se assim o registo desta história,  bem real,  e que poderá ser testemunhada por alguns militares que foram protagonistas nesta situação, com um desfecho natural porque foi em legítima defesa, numa contexto em que era necessária uma intervenção rápida e eficaz.

Esta história poderia ter outro desfecho?

Naturalmente que poderia,  contudo, ao vermos aquele enorme ofídio em posição de ataque, houve a natural resposta que terminou com a morte trágica do animal.

Nova Sintra, 1973 
 Carlos M. Lima Barros,
 ex-furriel miliciano

2. Comentário do editor LG:

O autor da série não nos mandou a foto da tal cobra com "quase quatro metros de comprimento". Pelo comprimento poderia ser uma cobra pitão-real (Python regius), um das mais pequenas dos pitões... Mas não costuma ultrapassar os dois metros... (lê-se no portal do Jardim Zoológico). Provavelmente, seria um exemplar, juvenil, do "irã-cego" (ou pitão africano), da qual temos, no nosso blogue, várias  estórias...
 
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Nota do editor:

Último poste da série > 11 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21533: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (11): O morcego e a cria, ou um "desastre.. da caça"

Guiné 61/74 - P21555: Parabéns a você (1895): António Mateus, ex-1.º Cabo At Inf da CCAÇ 12 (Guiné, 1969/71)

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Nota do editor

Último poste da série de 16 de Novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21548: Parabéns a você (1894): José António Viegas, ex-Fur Mil Art do Pel Caç Nat 54 (Guiné, 1966/68) e TCor Art Ref José Francisco Robalo Borrego, ex-Fur Art QP do 9.º PelArt (Guiné, 1970/72)

terça-feira, 17 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21554: Casos: a verdade sobre... (17): o mistério do "berço da nacionalidade": Madina do Boé? Lugajole? Vendu Leidi? Lela ou Malanta, já na Guiné-Conacri, na Estrada Nacional n.º 23, permitindo uma fácil (e segura) ligação à base de Boké?... (C. Martins / António Martins de Matos )

(...)

Texto da proclamação do Estado da Guiné-Bissau, pelo PAIGC, em 24 de setembro de 1973, documento datilografado, de 4 folhas, em formato  A4... Em parte alguma do texto há uma referência ao local, a não ser  "Região do Boé" (p. 4) ou "Região Libertada do Boé" (p. 2). 

Hoje há indícios crescentes de que a cerimónia, com a presença de alguns (poucos) observadores estrangeiros, se realizou no território da vizinha República da Guiné, nalguma localidade fazendo fronteira com a região do Boé mas servida pela Estrada Nacional nº 23, como era o caso de Lélaa e de Malanta, e portanto com fácil ligação à base de Boké, mais a sul.

Citação:
(1973), "Proclamação do Estado da Guiné-Bissau", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral - Iva Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40019 (2020-11-17) (com a devida vénia...)


1. Comentários ao poste P21539 (ª):
 
(i) C. Martins [, médico, ex-cooperante da AMI, na Guiné-Bissau, em 1998; ex-alf mil art, 23º Pel Art, Gandembel, 1973/74; profundo conhecedor da Guiné-Bissau e com informantes privilegiados no território tem mais de 3 dezenas de referências no nosso blogue; não integra a nossa Tabanca Grande por razões de deontologia profissional]:

Caro Rosinha,  esse médico não sou eu.

Estive em 98 durante a guerra civil como voluntário da AMI [, Assistência Médica Internacional], sediado em Canjufa , fazendo uma cobertura sanitária de toda a região de Gabú.

Sobre o tema supra já dei para este peditório.

Conheço a região do Boé, na época seca é quase desértico com caraterísticas de savana, e na época das chuvas cresce muito arvoredo junto às linhas de água e é praticamente intransitável.

Conheço a tabanca de Lugajole onde a AMI teve uma missão durante vários anos desde finais de 80 e principios dos 90.

Quem contactou com ex-guerrilheiros desde os de mais elevada hierarquia até aos de base, sabe perfeitamente qual é o tipo de comportamento: quando fala a orgãos de comunicação ou similares, o PAIGC segue a escola soviética (vidé Maria Turra ), mas quando em contacto meramente pessoal é pessoal muito simpáticos e não tem problema nenhum em dizer a verdade.

Têm muito respeito por nós, ex-combatentes, inclusive não têm problema nenhum em dizer que, se Portugal quisesse voltar novamente a administrar a Guiné,  eles não voltariam a revoltar-se contra nós.
Cada um que tire as suas conclusões.

PS - É evdienten que o PAIGC ao proclamar a independência [em 24 de setembro de 1973] tinha que dizer qie foi em território [libertado] da Guiné.
 


António Martins de Matos


(ii) António Martins Matos (ten gen pilav refor, ex-ten pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74]


Factos e Opiniões

Vamos aos factos: Nunca saberemos onde aconteceu a Declaração de Independência.

A razão de tal desconhecimento é ser um assunto sigiloso, do tipo Segredo de Estado. A República da Guiné-Bissau não pode reconhecer publicamente que a referida Declaração tenha sido feita fora do seu território.

Primeiro foi Madina do Boé, mais tarde agarrou-se a Lugajole [ou Lugadjole].

O filme sobre o evento, feito por uma equipa sueca, mostra viaturas a desfilar ao longo de uma estrada, debaixo de uma mata cerrada. Diz o presente post, “ainda hoje é quase impossível chegar a Lugadjole por estrada”.
 

Capa e contracapa da livro do António Martins de Matos, 
"Voando sobre um ninho de Strelas", 2ª edição, revista e aumentada 
(Lisboa, Sítio do Livro, 2020, 456 pp.)


Vamos às opiniões:

Para mim, que, por causa do livro sobre os Strelas, andei a esgravatar este assunto, encontrei variadas soluções, a terceira mais falada… Vendu Leidi.

A minha opinião é outra: 

Léla, a duzentos e vinte quilómetros de Bissalanca, fora do alcance dos Fiat-G 91 e apenas a três quilómetros da fronteira, já no território da Guiné-Conacri. Tem tudo o que aparece no filme: estrada, mata frondosa, segurança.

Quanto àquela historieta de terem levado as rampas dos Strelas mas se terem esquecido dos sistemas de pontaria…,  a história do capuchinho vermelho é mais credível.

Que os Strelas nem tinham rampas de lançamento!

(iii) C. Martins:

Caro A.M. Matos:

Quase no alvo... grande Pilav!

E.N. [Estrada Nacional]n.º 23 [, Guiné-Conacri],  mais a sul: localidade... não digo porque posso ser processado, e não tenho provas materiais.


(iv) Comentário do editor LG:

Já gastámos  "muita tinta" (neste caso, muitos Kbytes), à volta da toponímia associadas ao "berço" da Nação Guineense: durante anos aceitaram-se, acriticamente, em Portugal, na Guiné-Bissau e no resto do mundo, algumas "lendas e narrativas" do PAIGC à volta desta questão... Ainda hoje há trabalhos académicos (até da Academia Militar!) em que se refere o topónimo Madina do Boé como o local da declaração de independência unilateral (DUI) da Guiné-Bissau...

Pelo menos desde 2009 que nós aqui, nosso blogue, temos debatido esta questão que não é de lana caprina: "a verdade a que temos direito", não é só para alguns, é para todos... (**)

E vamos continuar a debater, sem intuitos polémicos, com serenidade, com assertividade, porque a guerra já acabou há muito e não há mais inimigos... Mas a História, essa, vai-se fazendo e refazendo... Daí que este e outros dossiês sobre a "história da Guiné, 1961/74" não chegarão ao fim, tão cedo, pelo menos nos tempos mais próximos... 

Infelizmente, os que protagonizaram a guerra,  de um e do outro lado,  estão a envelhecer, a adoecer e a morrer...  Do lado do PAIGC, já haverá muito pouca gente viva (e credível) que possa trazer algo de novo sobre a questão  do "berço da Nação"...

[Revisão e fixação de texto para efeitos de publicação neste blogue: LG]

(**) Vd., por exemplo, postes de:


20 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3920: Dossiê Madina do Boé e o 24 de Setembro (2): Opção inicial, uma tabanca algures no sul, segundo Luís Cabral (Nelson Herbert)

1 de março de  2009 > Guiné 63/74 - P3955: Dossiê Madina do Boé e o 24 de Setembro (3): O local estava minado e o PAIGC sabia-o (Jorge Félix)

17 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4042: Dossiê Madina do Boé e o 24 de Setembro (4): Ajudas de memória (Abreu dos Santos)

9 de outubro de  2009 > Guiné 63/74 - P5079: Dossiê Madina do Boé e o 24 de Setembro (5): Lugajole, disse ele (Luís Graça)

Guiné 61/74 - P21553: Agenda cultural (764): Exposição a não perder: As moranças da Guiné-Bissau, Museu Nacional de História Natural e da Ciência, até ao fim do ano (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Novembro de 2020:

Queridos amigos,
Andara desleixado, até que alguém advertiu que a exposição sobre as moranças guineenses estava patente até ao final do ano. Fiquei assombrado com a seleção de imagens, a doação do Arquiteto Fernando Schiappa de Campos parece ter uma dimensão impressionante, foi incansável a registar mais do que as moranças, usos e costumes, museograficamente é um atrativo para os olhos, obriga a refletir e para nós que lá vivemos é uma tremenda sacudidela na nostalgia, percorremos estas atmosferas e até colhemos bonitos sorrisos deste povo que não se ensaia pela belicosidade e que, no entanto, é dos mais afáveis do mundo. Não percam a exposição, até porque com o mesmo bilhete têm acesso ao valiosíssimo património do museu e visita ao esplendoroso jardim botânico.
Quando disse à minha neta que havia lá uma sala de dinossauros, entusiasmada, lá fomos. Depois contarei como foi.

Um abraço do
Mário


Exposição a não perder: As moranças da Guiné-Bissau,
Museu Nacional de História Natural e da Ciência, até ao fim do ano


Mário Beja Santos

Depois da aula de ginástica, quatro reformados acordaram em ir visitar a exposição sobre as moranças guineenses, supostamente já fechada ao público, descobriu-se que é possível visitá-la no majestoso edifício que foi o Colégio dos Nobres, depois Escola Politécnica e agora Museu Nacional, toca a preparar uma visita-guiada, com antropólogo e tudo. Muito está estudado sobre o habitat guineense. Teixeira da Mota, quando trabalhou como Adjunto do Governador Sarmento Rodrigues, pôs de pé um conjunto de estruturas culturais que marcaram indelevelmente o conhecimento antropológico, etnólogo e etnológico das suas populações. O oficial de Marinha convocava os administradores para produzirem estudos monográficos que vieram a ser publicados no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, as investigações mais curtas e parcelares ficaram dispersas no valioso Boletim Cultural da Guiné Portuguesa. Sobretudo no final da década de 1940, por toda a década de 1950 e também com algum dinamismo ao longo da década seguinte, foram aparecendo trabalhos que deram conta da completa integração da morança do quadro da tabanca, o uso de materiais, a construção permitia espaços sombrios e frescos, as arrecadações, as construções de querentim permitiam a privacidade do agregado familiar, a posição estratégica da mesquita, a produção de adobe, o corte dos cibes, a lógica de pinturas, especialmente na cultura Bijagó. A Junta de Investigações do Ultramar enviou dois arquitetos e um sociólogo no fim da década de 1950 para aprofundar esse conhecimento. É do trabalho dessa missão que esta magnífica exposição revela que o investigador foi acicatado pela curiosidade e cedeu ao feitiço africano. Todas estas imagens falam de um encontro de alguém que seguramente tinha conhecimentos dos locais que visitava, mas foi tão intenso o encontro que o fotógrafo se perdeu de amores. Consta mesmo que o arquiteto Fernando Schiappa de Campos guardou esta revelação até morrer, fora deslumbramento inextinguível.
Para saber mais, quem vai visitar esta exposição pode consultar o seguinte site: https://museus.ulisboa.pt/sites/default/files/Folheto%20Moran%C3%A7as%20site.pdf
Enquanto o grupo espera a chegada do mestre de cerimónias, um tanto à sorrelfa vou até à zona do museu onde se situa o velho Laboratório de Química, que liga com o anfiteatro muitíssimo bem conservado. Nestas balaustradas, os alunos viam professores fazer as experiências que deviam ser comentadas em voz alta, os alunos nesta geral deviam ir pondo questões. Tudo obra do passado, ainda bem que estas relíquias estão primorosamente conservadas. E agora vamos começar a visita propriamente dita.
Aqui ficam as imagens de quem por lá andou e os dois aparelhos fotográficos que pertenceram a Schiappa de Campos. O nome deste arquiteto era muito conhecido, quando andei a pesquisar a história do BNU da Guiné, ele foi chamado a apresentar um projeto para a construção da nova delegação do banco em Bissau, não retive se também fora convidado para apresentar o projeto da delegação de Bafatá, prevista em 1974. Era portanto um conhecedor da Guiné, mas estas imagens não são as de um repórter seduzido, é alguém que entrou na intimidade de diferentes facetas culturais, dir-se-á hoje que procedeu inclusivo, despido de preconceitos, deixando as imagens exprimir formas de resposta àquilo que alguém designou por Babel negra.
Quem visitar a exposição registará que o fotógrafo colheu diferentes imagens deste dançarino Bijagó, ele aparece a remoinhar, aquela ráfia se sacode vertiginosamente, é uma dança que vai afrontar, pode ser um tubarão-martelo, pode ser os espíritos endemoninhados que precisam de ser aplacados pelo vigor do movimento e dos sons. E repare-se como a vida continua na proximidade, aquele toque de quotidiano que nos é dado pelo arco com que o menino brinca.
E temos a luta, um desporto com regras, não é para bater nem massacrar, é para coroar a agilidade, há lutadores com o corpo bem oleado, há quem faça das mãos e da postura o engenho que leva ao desequilíbrio do contendor, veja-se a simetria das posições, até parece que há ali um árbitro que confere as regras da equidade, para ver quem primeiro bate com os costados no chão.
Atenda-se ao pormenor, o que interessa ao fotógrafo é revelar os adornos dentro de uma certa elegância corporal e nada mais, o que prova que não são necessárias braceletes de ouro ou prata, o cordame é mais do que suficiente para decorar e chamar a atenção, em todas as culturas o corpo é vitrina, os adornos são chamariz, é o que dita a imagem.
Temos aqui o transporte de mel, há quem esteja esquecido que foi sempre uma riqueza e produto de troca, há milénios. Há diferenças nas etnias quanto à forma de afugentar as abelhas e retirar os favos preciosos. Como nunca vira este comércio, pensei que se tratasse de uma imagem deslocada, até me pareceu um transporte asiático, mas não, o que está ali é mel e da Guiné.
Temos agora a derradeira fotografia, Schiappa de Campos talvez tenha organizado encenação, uma pose quase de estúdio. Veja-se a seriedade da mulher, o olhar dos dois jovens vai ficar gelificado para a eternidade e aquele sorriso é de quem ama a vida, gostou de acolher o visitante e quer que saibam, para todo o sempre, que tirar uma fotografia é sempre um tiro para a posteridade, como aqui aconteceu, guarda-se a nobreza dos povos e acende-se o rastilho desse feitiço de ver tão belas imagens e ter uma infinita saudade de gente tão acolhedora, tão cruelmente fustigada pelos desatinos do destino.
Não percam esta exposição, é gente que conhecemos e que jamais esquecemos, pelo que a vida nos ensinou.
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Nota do editor

Último poste da série de 16 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21550: Agenda cultural (763): "A batalha do Quitafine: a contraguerrilha antiaérea na Guiné e a fantasia das áreas libertadas", de José Francisco Nico, 2ª edição, a sair no final de novembro de 2020 (António Mimoso e Carvalho)

Guiné 61/74 - P21552: História da 3ª Companhia de Comandos (1966/68) (João Borges, 1943-2005) - Parte I: "A minha história"


Capa da História da 3ª Companhia de Comandos (Lamgo e Guiné, 1966/68), documento mimeografado, de cerca de 4 dezenas de páginas, da autoria de João Borges, ex-fur nil comando. Exemplar oferecido ao seu amigo José Lino Oliveira, com a seguinte dedicatória: "Quanto mais falamos na guerra, mais desejamso a paz. Do amigo João Borges"



Transcrição da mensagem manuscrita que o José Lino Oliveira nos mandou, pelo correio, com um exemplar mimeografado deste documento.  

[A 3ª Companhia de Comandos não tinha, até agora, qualquer referência no nosso blogue, com exceção da história da incrível história do  soldado Dionísio [Silva] Cunha, contada pelo nosso escritor José Ferreira da Silva, em "Outras memórias da minha guerra" (*).

Sobre esta unidade, a 3ª CCmds, ver também, no blogue de Alberto Helder, um poste de 1 de setembro de 2020.]

 

Paramos [, Espinho], 06-10.2020

Companheiro Luís Graça,

Conforme prometido envido a história da 3ª Companhia de Comandos, 1966/68, que actuou na Guiné.

Foi escrita pelo ex-furriel mil comando José João Marques Borges, 1943-2005.

Espero que lhe dê o melhor seguimento,

[assinatura ilegível]



1. Mensagem do José Lino Oliveira, com data de 2 de outubro passado:


José Lino [Padrão de] Oliveira, ex-fur mil amanuense, CCS/BCAÇ 4612/74, Mansoa, Cumeré e Brá, 12-7-1974 / 15-10-1974, a mesma unidade a que pertenceu o nosso coeditor Eduardo Magalhães Ribeiro; membro da nossa Tabanca Grande desde 31/12/2012; tem dezena e meia de referências no nosso blogue: vive em Paramos, Espinho]


Bom dia, Companheiro

Já tinha dado por perdida mas finalmente encontrei a História completa da 3ª Companhia de Comandos, escrita por um ex-fur. mil Comando,  João Borges.

Suponho que foi a primeira a entrar em acção na Guiné.

Quero enviar ao Blog,mas como não tenho scaner para digitalizar, agradecia uma morada para enviar esta importante documentação para fazer parte do arquivo do blog.

Um abraço

José Lino
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Ficha de Unidade > 3.a Companhia de Comandos
Identificação 3.a CCrnds
Unidade Mob: RAL 1 - Lisboa
Cmdt: Cap Mil Inf Cmd Álvaro Manuel Alves Cardoso
Partida: Embarque em 24Jun66; desembarque em 30Jun66
Regresso: Embarque em 29Abr68

Síntese da Actividade Operacional

Após o desembarque, instalou-se em Brá (Bissau), onde inicialmente se edicou à construção dos alojamentos próprios e, simultaneamente, a realizar uma instrução de aperfeiçoamento e adaptação nas regiões de Prábis e Nhacra.

Em princípios de Ag066, iniciou a fase de treino operacional, que incluiu a realização de operações nas regiões de Nova Sintra- Tite-Jabadá e Jugudul-Ponta Bará e que culminou com a entrega das insígnias de "comando" em 02Nov66.

Em virtude dos efectivos da subunidade se terem sucessivamente reduzido devido ao desgaste sofrido, foi formado novo pessoal de recompletamento, com entrega das insígnias em 28Mar67.

Com a sua sede em Bissau, como subunidade de intervenção e reserva do Comando-Chefe, actuou em diversas áreas com efectivos de I a 4 pelotões, algumas vezes por helitransporte e em coordenação com a Força Aérea, ou em situação de reforço a diversos batalhões. 

Efectuou diversas operações nas regiões de Susana, Flaque Cibe (Jabadá), Bissilão (Tite), Insumeté (Bula), Choquemone (Bula) Catió-Cufar, Tiligi (Bula), Cabedú, Jol (Teixeira Pinto), Oio (Mansabá), S. Domingos, Locher (Mansoa), Poidom (Xime), Canjambari, Bambadinca, Binar-Bula, Salancaur (Guileje) e outras. 

Pelos resultados obtidos e efectivos envolvidos, destacam-se as operações "Vodka", "Nortada", "Xerez",
"Bom Sucesso", "Yungfrau" e "Rolls-Royce", entre outras, tendo capturado 4 metralhadoras pesadas, 2 metralhadoras ligeiras, 15 pistolas-metralhadora, 57 espingardas, 2 lança-granadas foguete e cerca de 9.000 munições de armas ligeiras.

A partir de 08Abr68, cessou a sua actividade operacional, a fim de aguardar o embarque de regresso.

Observações
Tem História da Unidade (Caixa n." 83 - 2.a Div/4." Sec, do AHM)

Fonte. CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 7.º Volume - Fichas de unidade: Tomo II - Guiné - (1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2002), p.529.

3ª Companhia de Comandos 
(Guiné, 1966/68) / João Borges

Parte I (pp. 1-5)








(Continua)
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Nota do editor:

(*) Vd. poste de 18 de março de 2013 > Guiné 63/74 - P11273: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (16): É guerra é guerra... (será?)

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21551: Notas de leitura (1323): "A Armadilha da Guerra, Um exercício de ficção, em retrospetiva”, por António de Jesus Bispo; DG edições, 2017 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Fevereiro de 2018:

Queridos amigos,
O Tenente-General Piloto Aviador António Bispo produziu um relato que intitula “Um exercício de ficção, em retrospetiva”. Nele existem longos diálogos, vão aparecer Salazar e Amílcar Cabral. Tudo colimará, como veremos mais tarde, num encontro de amigos onde se decide escrever a guerra de África, contadas pelos protagonistas. Lá no grupo haverá mesmo quem resmungue sobre a bibliografia em língua inglesa sobre esta guerra que dá vómitos, e outro acrescenta que tudo o que se tem publicado até agora tem sido lixo, inverdade e propaganda ideológica. Como os protagonistas estão na fase final da vida era preciso contar a verdade, sem sofismas.
No final da conversa dir-se-á que houve aquela guerra porque se constituíram partes em oposição que se deixaram cair na armadilha. Daí este exercício de ficção.

Um abraço do
Mário


Colonialismo e descolonização num espelho estilhaçado (1)

Beja Santos

O colonialismo, em termos históricos, foi condenado pelos vencedores da II Guerra Mundial e a descolonização entrou em marcha ainda na década de 1940, a independência da Índia foi o pontapé de saída. Todo este processo de análise tem merecido investigações de todas as proveniências, e do rigor histórico disseminou-se para a literatura. No caso português, tem dado azo a trabalhos de primeira água como a obra de consagração de Valentim Alexandre, “Contra o Vento”, Círculo de Leitores, 2017 e o romance de Pedro Rosa Mendes, “Baia dos Tigres”, Dom Quixote, 1999. Tema naturalmente polémico, que conjuga com atrição por força da ideologia. No caso português, o MFA afirma-se alegando que o poder político derrubado fora incapaz de encontrar soluções políticas após um prolongado conflito armado em três frentes, numa delas existia já um Estado reconhecido por mais de oitenta nações. Recrudesceram tomadas de posição, da extrema-esquerda à extrema-direita. Esta, alega que continua de pé, como narrativa dominante, a versão dos vencedores. E mantém um percurso incansável de acusações que vão desde a demissão das Forças Armadas perante valores inalienáveis até a um persistente discurso de que toda a nossa História recente é resultado de um processo manipulador, tanto na interpretação do colonialismo português como no que intitulam o desastre da descolonização.

Foi recentemente publicado o livro “A Armadilha da Guerra, um exercício de ficção, em retrospectiva”, por António de Jesus Bispo, DG edições, 2017. Não é romance histórico, não é ensaio histórico nem documento memorial, a obra não assume nenhuma destas facetas. É uma crónica que se inicia à volta de uma tertúlia que tivera lugar, nos anos 1960, na Pastelaria Mexicana, um capitão piloto-aviador, Victor Silveira, conversa com um estudante cabo-verdiano de nome Amílcar, afilhado de Amílcar Cabral. Tecem amizade, fala-se da luta armada que lavra na Guiné. Por decisão do autor, o diálogo é manifestamente desequilibrado, ao jovem cabe o papel de colar as frases da farta oratória que cabe ao protagonista, um convicto de que aquela guerra é justa e de que o adversário é dirigido por um narcisista marioneta de Moscovo. É um oficial convicto com uma capacidade discursiva entre Silva Cunha e Venâncio Deslandes, mas arroga-se à livre crítica, está inquieto com os problemas da comunicação da guerra na Metrópole, há muita mentira internacional, racismo há nos EUA, “Um verdadeiro racismo que discrimina pela cor da pele. Na minha estadia na Guiné não vi agressões das autoridades, abusos de poder, faltas de respeito, atentados à dignidade das pessoas e outros actos do mesmo género.” A luta pela independência, segundo o oficial narrador, teve uma consequência positiva, “porque nos estimou a criarmos condições para um maior desenvolvimento e a interiorizar uma ideia de multiculturalismo, de comunidade multirracial ligada por um conjunto de valores e pelo respeito pelas diferenças”. Fala-se aqui e acolá da Guiné, o colonialismo merece um discurso benevolente, fala-se do modo de ser português nas parcelas do Império, opressores a sério têm sido os norte-americanos e até os soviéticos, a causa portuguesa tem legitimidade à face do Direito, o discurso, aqui e acolá, também aparece pintalgado de aberturas ao diálogo, até se admite uma consulta popular, no caso da Guiné era importante alterar o paradigma das Forças Armadas, adotar uma espécie de estado de sítio, alargar as suas missões. Um outro caminho passa pela emigração, pois “muitos dos nossos emigrantes em África são autênticos missionários da solidariedade”.

É uma conversa longuíssima, o capitão não gosta dos sinais de indiferença que apresenta a sociedade civil, urge encontrar um dispositivo militar ágil que enfrente resolutamente os guerrilheiros, e discreteia sobre o significado da vitória política: “Podemos dizer: quando houver livre circulação das pessoas a guerra estará ganha; então vamos trabalhar nesse sentido, sabendo obviamente que isso envolverá muitos riscos em certas zonas. Saber assumi-los é uma condição primeira para se agir; às vezes, estando passivos também corremos riscos e é bom que se tenha consciência deste diferencial. Teremos de estar dentro do Oio, à vontade. O Oio é uma região entre Mansoa, Bula, Bissorã e Olossato, é um refúgio permanente da guerrilha. Teremos de fazer como eles fazem, com forças muito ágeis. Nós temos de lá estar, com prazos aleatórios, entramos, ficamos uns tempos, vamos à fala com a população. Não podemos fazer uma ocupação plena, como é óbvio, mas devemos criar uma grande insegurança ao inimigo e desconstruir o seu trabalho de doutrinação”.

Se todo este debate já excede a pura ficção e a verdade dos factos históricos, o que se segue aproxima-se do burlesco: Amílcar foi convidado para uma festa íntima dada por Salazar e leva o amigo, o protocolo é de que tudo o que ali se disser jamais em tempo algum poderá circular na via pública. E vamos ter, na magnitude, um frente-a-frente entre Salazar e o capitão piloto-aviador. Salazar é pedagógico, fala da Carta do Atlântico, da incapacidade do Ocidente em resistir à ofensiva soviética, de dedo em riste recorda que o domínio europeu em África constituiria um dique contra o comunismo, o que se passa na ONU é lamentável, o capitão, neste debate, tem o mesmo papel que Amílcar teve no debate anterior, cola as frases, a peroração arrasta-se, temos aqui o Salazar como ele foi, o nosso capitão insiste com o Chefe do Estado Novo de que é absolutamente necessário militarizar a Guiné e avança com a proposta de que se devia aceitar um processo de negociação com os terroristas, para os integrar num novo processo civilizacional, Salazar encrespa-se, o capitão clarifica o que queria dizer com negociação: “Era simplesmente mandar-lhe mensagens para ir enquadrando os termos de uma situação final e publicitar os factos que mostrassem, de forma inequívoca, que os objectivos da cidadania, do desenvolvimento, estavam a ser atingidos” e quando pergunta a Salazar se os terroristas decidissem cessar as hostilidades, o dirigente responde perentoriamente: “Seriam julgados por traição à Pátria, e por todos os crimes praticados sob sua direcção. Esses senhores são cidadãos portugueses, muitos deles com passaportes portugueses, ainda sem forma de os fazer caducar, que decidiram fugir do País, sublevar pessoas, incitar à violência, pegar em armas e lutar contra a autoridade legítima”.

Assim foi o encontro com Salazar, o ardoroso capitão saiu do almoço de convívio ciente de que seria muito difícil sair desta guerra, as posições estavam extremadas. E se o improvável deste encontro assim decorreu não menos improvável é um encontro que vai ter lugar em Paris entre Victor Silveira e Amílcar Cabral.

Como explica que o autor é tenente-general piloto aviador na reforma, vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Geografia e com longo currículo na Guiné. Na contracapa escreve algo de enigmático face ao conteúdo do livro, tal qual: “A obra pretende transmitir a mensagem de que os decisores políticos, as sociedades, os estados, podem colocar-se em determinadas situações onde a guerra se apresenta como possibilidade, num quadro de valores e interesses, de risco e também de capacidades. Por outro lado, a paz ‘conquista-se’ em permanência, pela detecção, análise e neutralização das armadilhas que a interacção pode suscitar, com a utilização do poder de persuasão e de influência, no pressuposto de que a guerra pode ser evitável”.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 9 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21528: Notas de leitura (1322): "Biambe e os Biambenses", por Manuel Costa Lobo; 5livros.pt, 2019 - Um levantamento ímpar: toda a história de Biambe (1966/1974), sítio de coragem e martírio (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21550: Agenda cultural (763): "A batalha do Quitafine: a contraguerrilha antiaérea na Guiné e a fantasia das áreas libertadas", de José Francisco Nico, 2ª edição, a sair no final de novembro de 2020 (António Mimoso e Carvalho)



 






1. Mensagem de Antonio Carvalho:

Date: sábado, 14/11/2020 à(s) 13:07
Subject: BATALHA DO QUITAFINE

Exmo Senhor 

Professor Luís Graça

Em nome do Tenente-general José Fernandes Nico, por indisponibilidade de contacto deste, agradeço a seu apoio para a divulgação no Blogue da segunda edição da obra "A Batalha do Quitafine", que terá lugar na última semana do corrente mês,  pelo que junto um Flyer publicitário em que se incluíram alguns comentários recebidos. 

Apesar de alguns já terem sido apresentados anteriormente no Blogue pensamos que justificam a celeridade com que a primeira edição se esgotou e reforçam este novo esforço do autor em divulgar, o mais amplamente possível, as ações da Força Aérea no cumprimento da sua Missão durante a Guerra de África, concretamente na Guiné. 

Mais uma vez obrigado
António Mimoso e Carvalho 
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Nota do editor: