segunda-feira, 20 de maio de 2013

Guiné 63/74 - P11600: Notas de leitura (484): Os Portugueses nos Rios da Guiné (1500-1900), por António Carreira (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Fevereiro de 2013:

Queridos amigos,
Creio que a reedição desta obra era um facto cultural da maior importância para Portugal e Guiné-Bissau. António Carreira até hoje não foi contestado nas suas observações bem cruas sobre a presença portuguesa, a sua incapacidade para travar a presença francesa que culminou num acordo com a perda de um território que secularmente era ocupado pelos portugueses, mesmo que superficialmente – o Casamansa.
Ao exemplificar com a formação tardia do crioulo guineense como língua franca, Carreira destaca a precariedade da nossa ocupação, chefes tradicionais poderosos resistiram à potência colonial.
E como ele lembra, o PAIGC apostou fortemente no crioulo para procura unir os guineenses.

Um abraço do
Mário


Os portugueses nos rios da Guiné (1500-1900), por António Carreira (3)

Beja Santos

Se há título indispensável para conhecer, sob a forma de resumo, a presença portuguesa num território amplo, nos primeiros séculos, e progressivamente minguado até se ter chegado à Convenção Luso-Francesa de 1886 que no essencial consagrou as fronteiras atuais, é este livro de António Carreira. Carreira era já um investigador de créditos firmados quando se lançou nesta edição de autor, coisa estranha, parecia um testamento sobre a sua visão da Guiné, um olhar pessoalíssimo como atesta o que escreveu sobre a presença portuguesa no século XIX. Adiante se verificará como escreveu para a História.

Recorde-se que Carreira enfatiza as guerras e escaramuças entre grupos étnicos, no período entre 1840 a 1899, os portugueses a tudo assistiram impotentes, era impossível qualquer intervenção com tão magros efetivos nas praças, tal o armamento obsoleto e a falta de meios navais. Quem dessa impotência se aproveitou foram os franceses que visavam a consolidação do seu domínio nas chamadas rias do Sul e mesmo no Casamansa. Só depois de tudo perder é que Lisboa decidiu melhorar os efetivos para assegurar a integridade das praças de Geba e Buba, elas foram reforçadas com vista a garantir os direitos de ocupação de todo o território. Carreira reflete sobre este “pandemónio” de praticamente meio século observando que se deveu a múltiplos fatores que ele aliás regista cuidadosamente: a decisão dos Fulas-Pretos de se libertarem da escravização a que se encontravam submetidos pelos Fulas-Forros; a conquista do poder dominava os jovens, eles esforçaram-se pela expulsão dos velhos régulos, déspotas que governavam microsociedades sem nenhum desejo de mudança; e a imposição do islamismo aos povos animistas, em que o papel mais ativo foi desenvolvido pelos almanis do Futa-Djalon.

Dá-se, entretanto, nesse estado de deliquescência a separação do Governo da Guiné do de Cabo Verde, em 1879. Mas mesmo com a autonomização do Governo, não foi possível dominar a situação na periferia das praças, estas continuaram a ser atacadas com frequência. Como o autor regista, de 1864 a 1919, as diversas praças e presídios sofreram pelo menos 30 ataques das populações nativas. Parte das sublevações terminou com a assinatura de tratados em que os régulos e chefes tradicionais intervieram como se fossem entidades soberanas. Tem aqui todo o sentido respigar um texto do governador Correia Lança no seu relatório em 1888: “Nos tratados estabeleceram-se cláusulas que nunca se observaram e obrigações que não se cumpriram”. Aos poucos, cada praça foi equiparada a comando militar. Nos primeiros anos de 1900 tentou-se a instituição de um regime de administração civil denominado as Residências, substituindo os comandos militares. No ano que preludia as medidas efetivas de pacificação foram criadas as circunscrições civis.

Em 1913, o Governo, na convicção de que os Papéis não voltariam a atacar a praça de Bissau, deliberou a demolição das muralhas construídas à volta da fortaleza de S. José, a Amura. A partir de 1919, foram sendo criados centros fixos em locais de reconhecido interesse comercial e administrativo, era mais uma tentativa de ocupar território e de impor a lei portuguesa. E convém não esquecer que mesmo após a pacificação se viveu um período de grande intranquilidade nos anos de 1919 e 1920.

Carreira lembra as diferenças abissais nas culturas guineenses e cabo-verdiana. Na Guiné, as sete escolas primárias oficiais que funcionaram no ano letivo 1899-1900 com 303 alunos destinavam-se a filhos dos colonos, dos funcionários, filhos dos cristãos e grumetes já fora das suas comunidades de origem. Nesse mesmo ano letivo funcionavam nas ilhas de Cabo Verde 42 escolas primárias oficiais com 4275 alunos, além das escolas particulares. Isto serve para compreender como é que a massa esmagadora dos cabo-verdianos usavam na plenitude o crioulo como língua materna e na Guiné, no final do século XIX, o crioulo estava circunscrito aos escassos 7000 cristãos e grumetes residentes nas praças e presídios.

Então, Carreira desenvolve a sua tese observando que parece lícito afirmar que até à segunda metade do século XIX a evolução do processo histórico da Guiné mostra que o território viveu quase fechado a culturas estranhas, com a sua economia de subsistência, esta auxiliada pela comercialização, em modesta escala, de couros, cera, algum marfim, panos e bandas de algodão de confeção local, e pouco mais. Evidentemente, o tráfico de escravos foi, até à sua extinção, uma notável fonte de rendimento dos régulos e seus guerreiros.

A moeda praticamente não funcionava no comércio. Terá sido a introdução do cultivo do amendoim a primeira tentativa positiva de viragem económica. Mas as guerras tribais tudo dificultavam. O mil reis português, em prata, e a moeda divisionária em prata ou em cobre mal circulavam. As moedas verdadeiramente importantes eram a pataca espanhola, o peso mexicano, o peso boliviano, o franco francês (conhecido por peso) e a libra.

Urgindo concluir, estão apontadas as dificuldades que se depararam à fixação dos portugueses na costa africana, elas ajudam a entender como era difícil a formação de um crioulo que pudesse ultrapassar as exíguas áreas que os régulos arrendavam para a implantação das praças e presídios. Tudo contrariou à aceitação do crioulo, os chefes sentiram que esta língua franca faria perigar o seu poder e os modos de vida. E Carreira opina que não se criou nenhum crioulo na área conhecida por Guiné, o que se deu foi a difusão dos rios da Guiné do crioulo nado nas ilhas de Cabo Verde, difusão essa feita pelos lançados crioulófonos para ali enviados a partir dos primeiros anos para o resgate de escravos.

Outra razão que levou à dificuldade em formar-se o crioulo da Guiné foram os dois grandes grupos linguísticos, a língua sudanesa (mandingas e fulas) definido pelo uso de sufixos plurativos e o grupo étnico-linguístico classificado de Semi-Banta, de línguas aglutinantes (balanta, papel, manjaco, felupe, banhum…). São dois grupos que não possuem grandes afinidades com o crioulo. O crioulo guineense, com o andar dos tempos, tornou-se permeável à influência destes dois grupos. A partir de 1900, e depois com a Pax Lusitana, a situação alterou-se. Os próprios negociantes tiveram um papel fundamental na divulgação do crioulo, ele entrou em expansão nas décadas de 1920 e 1930. E Carreira observa que a luta pela independência foi outro dínamo para acelerar a aprendizagem do crioulo.

António Carreira junta um apenso documental do maior interesse para a compreensão da presença dos portugueses e das múltiplas dificuldades que se puseram à sua fixação, inclusive demonstra como o processo da missionação falhou rotundamente, impedindo a cristianização maciça dos guineenses.
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Notas do editor:

Vd. postes anteriores de:

13 DE MAIO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11562: Notas de leitura (480): Os Portugueses nos Rios da Guiné (1500-1900), por António Carreira (1) (Mário Beja Santos)
e
17 de Maio de 2013 > Guiné 63/74 - P11581: Notas de leitura (481): Os Portugueses nos Rios da Guiné (1500-1900), por António Carreira (2) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 19 DE MAIO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11597: Notas de leitura (483): Soronda - Revista de Estudos Guineenses - Dezembro de 2000 (2) (Francisco Henriques da Silva)

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