Já lá iam quase dois anos de estadia no aquartelamento, já conhecia muita da população nos arredores, convivia com ela, falava um pouco de crioulo, quando falava com essa população, poucas ou quase nenhumas vezes usava as palavras, “que”, “se”, “a”, “o”, “eu”, “por”, “esta”, “toma”, “lá”, “de”, “ou”, “tu”, “para”, “não”, “sim”, “mesmo”, “qualquer”, “um”, “meu”, “teu”, “aquele”, “vai”, “quero” ou outras palavras que eram o complemento de frases. A sua linguagem, talvez derivado à convivência com o Curvas, alto e refilão, continha mais de dez por cento das ditas palavras “obscenas”, e quanto mais mal falasse português, mais bem o compreendiam, embora tivesse que ouvir as repreensões constantes do Mister Hóstia, que a todo o momento lhe dizia, olhando o firmamento, mas com cara de mau:
- Jesus Cristo, lá no céu, tenha compaixão de vocês! É só “Tabanca”, bajudas, bajudas, fumar, beber. Vai ser a vossa perdição, as vossas almas vão um dia arder no fogo do inferno!
- A minha alma, se é que existe, e eu ainda a tenha, desconfio que não, pois perdi-a quando a minha mãe me abandonou quando era criança, vai arder qualquer dia, mas é numa emboscada, crivada de balas, ou na explosão duma granada!
Trazia sempre no bolso, a garrafita da “coca-cola”, com tudo, menos coca-cola.
Alguns seus companheiros, diziam mesmo:
- Já não és da europa, já és “Balanta”, já és “Guinéu”!
Mas vamos continuar, pois já estávamos a ir por outro rumo, que não o de falar mal português. As unhas andavam grandes e sujas, a roupa às vezes rota, pelo menos no local dos bolsos, talvez derivado ao isqueiro e ao maço de cigarros ou talvez à garrafita da coca-cola, e sem alguns botões, o cabelo comprido, e um grande bigode, que lhe encobria os dentes escuros e sujos, e um pouco amarelados do fumo do tabaco, os dedos com uma marca amarela do cigarro, só a barba é que fazia de três em três dias, às vezes de dois em dois dias, pois tinha algum contacto com o comandante, e não queria, que num dia de mau humor, ele o mandasse rapar o cabelo e o bigode, então aí, iria sofrer, e ser motivo para alguns companheiros passarem um bom bocado, rindo-se dele. Andava sempre sem camisa, pois havia uma no centro cripto, que era a chamada “camisa da comunidade”, que todos usavam, especialmente quando iam entregar as mensagens ao comandante, trazia sempre o “quico enfiado nos cornos”, que era como o Curvas, alto e refilão, dizia, que lhe encobria parte do cabelo.
Este era o aspecto do Cifra, que está na foto em baixo, com algumas bajudas, que andavam na idade de quatorze ou quinze anos. O Cifra sempre respeitou a dignidade dos naturais, por tal motivo era sempre bem recebido, não só pelas bajudas, como pelas crianças e pelos “Homens Grandes”, mas segundo o parecer dos “Homens Grandes”, estas bajudas estavam na idade de parir. Não era o Cifra que dizia, eram eles, com toda a sua sabedoria, e já com muitas “chuvas” no seu corpo.
Alguns “homens grandes” já o convidavam quando algum membro da sua numerosa família, fazia “chuvas”, que eram anos, ou em outros dias festivos. O Cifra levava pão do aquartelamento, comida que o sargento da messe lhe arranjava, alguma bebida, e ia. Algumas vezes levava o Setúbal, o Trinta e Seis e o Curvas, alto e refilão, que quase sempre ficava com a “cabeça grande”, e sempre fazia asneira, pois, depois de um copo de aguardente de palma, queria outro, e começava a dizer aquelas palavras obscenas em crioulo, que quase todos os militares sabiam, se não lhe davam outro copo. O Trinta e Seis andava por perto e controlava-o, enfim, era bom e fiel companheiro, pelo menos para aqueles que considerava a sua família. Duma coisa, estava o Cifra certo, quanto mais sujo e mais mal vestido andasse, mais as crianças, em especial as bajudas e os habitantes da tal aldeia que existia perto do aquartelamento, se aproximavam dele e com ele queriam conversar, ficando por vezes horas seguidas, juntos, contando segredos e não só, como se de uma família se tratasse.
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Nota do editor
Último poste da série de 21 DE MAIO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11607: Bom ou mau tempo na bolanha (10): A família junta-se (Tony Borié)
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