quarta-feira, 22 de maio de 2013

Guiné 63/74 - P11608: Os nossos médicos (46): Dá-me os meus olhos! Homenagem ao Oftalmologista, Dr. José Luís Bettencourt Botelho de Melo (Mário Beja Santos)

Ponta Delgada, 11 de Maio de 2013 - Mário Beja Santos com o Oftalmologista José Luís Bettencourt Botelho de Melo

Dá-me os meus olhos!

Beja Santos

Em 16 de Outubro de 1969, passava das seis horas da tarde, uma mina anticarro despedaçou o Unimog em que vínhamos de Finete, carregado de bidons de gasóleo e petróleo, sacas de arroz, algum material de construção civil, cartuchame e granadas de mão.

A total responsabilidade daquele desastre coube-me, era impróprio viajar ao fim do dia, baixei as guardas, perdi o condutor, Manuel Guerreiro Jorge, da CCS/BCAÇ 2852, e tivemos sete feridos, alguns com gravidade, caso de Cherno Suane (duplo traumatismo craniano) e o comandante da milícia de Missirá, Albino Mamadu Baldé, com ambas as pernas fraturadas. Este infausto evento aparece descrito a páginas 278 em diante em "A Viagem do Tangomau".

Com a cara queimada, os óculos volatizados com a explosão que me atirou ao ar, com a visão perturbada pela carga dos ácidos, segui para Bissau, urgia ser visto por um oftalmologista. Começou aí uma grande amizade, como o Tangomau relatou: "Na manhã seguinte, lá vai para a primeira consulta, os olhos têm prioridade, não são as queimaduras que o preocupam, é o ardor permanente no olho direito. Já tinha passado a hora do almoço quando foi chamado para a consulta, foi recebido por um calmeirão aí de 40 anos, tonitruante, procede ao exame, tece um diagnóstico tranquilizador, prescreve uma receita com a graduação das lentes, recomenda o oculista. Tem um acento irrecusável de São Miguel, começam os dois a falar da ilha, nunca mais se calam, o outro militar ali presente, servente de bata branca, chama a atenção para a fila que há para atender, o açoriano não se cala, já descobriram imensos amigos comuns, faz-lhe uma proposta para uma janta conjunta, prontamente o Tangomau acedeu".

Jantaram no Grande Hotel, em 20 de Outubro, tinha nascido uma amizade inquebrantável, sempre que se visitam os Açores, previamente se telefona para o consultório do José Luís Bettencourt Botelho de Melo, a caminho dos 85 anos, ninguém o tira do trabalho. E combina-se encontro, pois claro, para as recordações da Guiné não falha a disponibilidade, arredam-se compromissos, a camaradagem tem sempre precedência.

Fui até às Flores, acordou-se que passaria por Ponta Delgada no sábado, 11 de Maio. O José Luís lá estava, acompanhado pela filha. E fomos comer filetes de peixe porco e de abrótea, com arroz e açorda, num restaurante aprazível na praia do Pópulo, nos arredores de Ponta Delgada. No final, houve fotografia, de braço dado e uma alegria sem igual. E fica-nos sempre aquela sensação de que a guerra muda tudo, engendra mecanismos silenciosos da relação fraterna que escapam à erosão do tempo.

Enquanto almoçava, não me saia da cabeça como este oftalmologista, o único da Guiné, salvou olhos, fez prodígios, evitou dramas para todo o sempre. Recordava mesmo um dos nossos últimos jantares em que ele praticamente dormia em pé, houvera durante o dia a chegada de gente em estado calamitoso, ao que me recordo explosões de fornilhos que atingiram muita gente, estivera mais de 12 horas seguida no bloco operatório.

Destes heróis não se fala, tudo aquilo era trabalho de bastidores, inclusive ele saia do HM 241, comia umas coisas e entrava no hospital de Bissau, os civis também contavam. O José Luís sente-se confortado pelo dever cumprido. Ofereci-lhe "A Viagem do Tangomau", com profunda gratidão e estima. Há profissionais de saúde que nos restituem a saúde mental, o andar ou a alegria na visão plena. Depois a vida prossegue, mas aqueles atos nobres, obscuros, inenarráveis, perduram. No nosso caso, para todo o sempre. E já estou ansioso por voltar aos Açores. Temos tanta coisa para conversar!
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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE DEZEMBRO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10801: Os nossos médicos (45): O dr. Soares Oliveira na Tabanca de Matosinhos com o João Rebola (Armando Pires)

2 comentários:

Henrique Cerqueira disse...

Mário Beja Santos
Li com muita atenção esta homenagem feita ao Dr.José Luís Bettencourt.
Não deixei de me emocionar também com as suas palavras quando reconhece a responsabilidade do "desastre" por ter baixado a guarda segundo as suas palavras...Como seria bom lermos aqui mais vezes esses reconhecimentos de responsabilidade.
Em relação aos médicos que trabalhavam nos "bastidores",eu conheci um grande médico cardiologista no hospital militar de Bissau que me disse estas palavras durante uma consulta.-« Vocês podem entrar neste hospital todos partidos e esfarrapados,mas enquanto tiverem um sopro de vida faremos tudo para vos salvar» .Eu fui testemunha real que vi esses médicos e enfermeiros tudo fazer para salvar tanto militares das nossas tropas como combatentes e população do inimigo quando capturados por nós.
Um abraço Beija Santos e Parabéns
Henrique Cerqueira

Luís Graça disse...

Mário, acabas de trazer o ex-alf mil médico Botelho de Melo até à Tabanca Grande. Bonito, esse reencontro. (Foste duplamenet sortudo, pro sair vivo daquela traiçoeira mina e teres em Bissau um bom oftalmologista...).

Tens agora de arranjar maneira de o sentar aqui, no bentém, à volta do nosso poilão... Ele tem fotos e recordações do tempo de Guiné e do HM 241, que gostará por certo de partilhar com os seus antigos camaradas... Talvez a filha possa tratar disso...

Aquele abraço. LG