1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Junho de 2013:
Queridos amigos,
Doravante temos que estar mais atentos a esta ainda titubeante literatura luso-guineense.
Tenho lido críticas severas a recentes manifestações da literatura da Guiné-Bissau, por ser uma manifestação de desalento e de servidão a esquemas clássicos da língua portuguesa. Esquecem esses doutos críticos que estes novos escritores não têm estímulo para editar e que o ambiente não favorece, dentro da confrontação de movimentos literários, a descoberta de um processo próprio para um escritor africano usar com absoluta liberdade a língua que foi trazida pelo colonizador, isto para já não falar na dor que exprimem pela deriva do país. O caso de Finhani é um outro lado do espelho.
Emílio Lima tirou as habilitações superiores em Portugal e pretende um produto novo, criativo no compromisso entre as suas culturas. Pode ser ainda muito ingénuo, mas sente-se que está determinado, merece a nossa atenção.
Um abraço do
Mário
Finhani, o vagabundo apaixonado
Beja Santos
A literatura luso-guineense está nos primeiros balbucios. Entende-se aqui por literatura luso-guineense aquela que é escrita por portugueses e ou bissau-guineenses sobre temáticas a que os dois países não são alheios, veiculando primordialmente a língua portuguesa e ou o crioulo da Guiné-Bissau. “Finhani, o vagabundo apaixonado”, por Emílio Lima, Chiado Editora, 2013, é uma dessas manifestações.
Emílio Tavares Lima nasceu em Canchungo, Guiné-Bissau, em 1974. É licenciado em Ciências da Comunicação e da Cultura, pela Lusófona. Venceu vários concursos de poesia em Bissau, e é atualmente mentor e coordenador do projeto Djorson Nobu, na publicação da antologia poética juvenil da Guiné-Bissau Traços no Tempo. Logo na capa não esconde a grande mensagem de Finhani: “Quem fecha as portas para uma emigração legal, abre, ao mesmo tempo, as portas para uma emigração clandestina”.
A obra abre com um sugestivo diálogo numa operação de rusga de rotina entre um funcionário do serviço de Estrangeiros e Fronteiras e Finhani Pansau Kam-mecé. Este é um conhecido vagabundo que passa os dias na Praça Duque de Saldanha e diz ser um homem de 70 namoradas, de várias nacionalidades, diferentes cores, religião e raças. Metia-se em todas as conversas e era um sonhador. O autor caracteriza-o assim: “Tinha pouco mais de um metro e setenta de altura, um corpo de atleta, nem tão magro nem muito gordo. Quem olhava para ele de certeza que imaginava que ele fora um grande atleta na juventude”. A polícia tinha tentado escorraçá-lo da Praça Duque de Saldanha, sem sucesso. Desprendido e apaixonado, proferia prédicas e tecia juízos moralistas. Imaginava as 70 namoradas, associava-as a países africanos de língua portuguesa.
E um dia saiu-lhe a sorte grande, melhor dito saiu a sorte grande à arquitetura da obra. Vamos ver como.
Passou pela praça Bernardo Gomes ou Nhu Bernal, pedreiro de mão cheia, tinha acabado de perder emprego, Finhani teve para com ele umas frases desagradáveis e Nhu Bernal surrou-o, bateu-lhe como se ele fosse o culpado de toda a desgraça que lhe caíra em cima, é que nesse dia fora informado que o seu filho Dino tinha sido atingido com dois tiros no peito, na sequência de um assalto a uma ourivesaria suburbana. O autor apresenta a mãe de Dino, Nha Filipa Gumis, uma moira de trabalho, vendedeira de peixe e trabalhadora nas limpezas de escritórios em Lisboa.
A orientação da escrita dirige-se agora para o tratamento hospitalar de Dino, um desvelado médico, Paulo Alves opera-o com êxito. Por puro acaso Paulo Alves é filho do ourives Sr. Alves, que fora assaltado por Dino. Este explica a razão da tentativa de furto: estava apaixonado por uma rapariga da escola que nem olhava para ele mas só para os colegas que levavam grande telemóveis ou ténis de marca, assim começou a roubar para poder mostrar o seu poder de compra a Vanessa, menina do seu coração. Paulo Alves propõe aos pais de Dino que este passe a viver consigo, queria colaborar na sua educação e incutir-lhe valores.
Começam as lições do pai adotivo, fala assim a propósito de trabalho e dinheiro: “É ótimo poderes ganhar o teu próprio dinheiro. Mas trabalhar só depender do teu desempenho naquela que de hoje em diante passará a ser a tua atividade principal: estudar, estudar e estudar”. E vai apontando exemplos de jovens que singram ou se afundam no trabalho precário.
Nhu Bernal procura refazer a vida e vai trabalhar para Espanha em condições mais que duvidosas. Acabará num autêntico campo de concentração, vê-se rodeado de gente desesperada sobretudo provenientes da Europa de Leste. Sabe que está dentro de uma quinta onde é sujeito a todas as torturas e aos tratamentos mais desumanos. Tentará fugir, é suposto, de acordo com a trama do livro, que não voltará para Portugal, nunca mais dará notícias a Nha Filipa Gumis. Paulo Alves é tão bondoso que leva a senhora e os filhos lá para casa. As autoridades luso-espanholas procuram em vão o paradeiro de Nhu Bernal, em vão. A vida de Nha Filipa Gumis e seus três filhos mudou completamente. Paulo Alves é tão bondoso que até lhe financiou a abertura da sua própria empresa de limpezas. Paulo Alves está pelo beicinho e declara-se a Nha Filipa Gumis: “Só sei que quero passar a dormir e a acordar ao teu lado, sentir o teu cheiro, olhar para essa tua cara de boneca de porcelana, esses olhos cor de mel, contemplar a ternura desses teus lábios carnudos. Quero continuar a sentir o meu coração a dar saltos novamente, depois de cinco anos sozinho desde que me separei da minha namorada. Nunca pensei que alguém pudesse ressuscitar a paixão adormecida neste meu frágil peito”. Dez meses depois, o casal tinha uma filha morena.
É altura de ressuscitar Finhani, um sem-abrigo a dormir na Avenida Defensor de Chaves, em cima de papelões estendidos na varanda de um prédio abandonado. Finhani é levado pelo 115 até ao Dr. Paulo Alves. Nesta altura o Dino já é médico. Finhani conta a sua história a Paulo Alves, andou fugido durante a guerra civil que devastou o seu país, presumimos que está a falar do conflito que devastou a Guiné-Bissau entre 1998 e 1999. Fugiu para o Senegal, onde trabalhou na criação de gado. E depois veio clandestino até chegar a Portugal. Mas nunca conseguiu passar da cepa torta.
Paulo Alves ouve este pungente relato e oferece para emprestar dinheiro a Finhani para investir no seu próprio país. Somos então confrontados com as técnicas de corrupção da administração bissau-guineense, Finhani reage e denuncia as pressões mais escabrosas. Finhani tornou-se um empresário de renome, é este o final feliz.
Ainda é muito cedo para se fazer qualquer avaliação destas manifestações literárias luso-guineenses. A literatura da Guiné-Bissau tem duas linhas de força: a primeira centrou-se no ideal da libertação e no sonho do país independente; a segunda acusa em permanência a profunda tristeza desses ideais traídos, é um constante suspiro pela retoma dos sonhos num país que ainda não foi capaz de proceder à catarse da sua própria reconciliação depois de tanta zanga e tanto fuzilamento. A nova expressão da literatura luso-guineense revela indecisões no estilo, um certo atabalhoamento no tratamento dos personagens, o recurso a soluções socialmente impensáveis. Tudo se desculpa, porque a criança gatinha e faz mais estardalhaço do que os observadores desejavam. É provável que tenha de ser assim, durante algum tempo, um Paulo Alves improvável, um Finhani onírico que se transformará num bem-sucedido homem de negócios, é preciso mostrar em literatura que o mal nem sempre dura e que os determinados podem chegar longe. E pelo meio somos confrontados com a delinquência destes jovens que não estão nem na Europa nem em África, com os grupos mafiosos e traficantes e até com a escravatura moderna que pretendemos ignorar.
Vamos esperar por mais obras de Emílio Lima, alguém que se pode transformar num nome a ter em conta na literatura luso-guineense
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Nota do editor
Último poste da série de 25 DE OUTUBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12199: Notas de leitura (528): "Os Roncos de Farim - 1966-1972", por Carlos Silva (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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