(...) Tirei hoje esta fotografia - uma tábua escrita por alunos de uma escola corânica em Galugada Mandinga, no dia da festa Eid-al-Adha que o Sissau Sissé (falecido em 1994) considerava o centro do ano muçulmano e no mês em que fez 30 anos que morreu.
Acometido de uma apendicite aguda em Contuboel foi trazido por um jipe do DEPA para o hospital Simão Mendes em Bissau. Morreu durante a operação… tendo precisado de oxigénio… O hospital não tinha, sendo mais preciso: não havia oxigénio porque tinha sido desviado e possivelmente, como na época acontecia bastante, vendido no Senegal ou na Gâmbia. (...)

O Braima Sissé foi apresentado ao João Graça como sendo um estudioso corânico, filho de uma importante personalidade da região, amigo dos portugueses na época colonial [presume-se que fosse o próprio Fodé Irama Sissé].
Foto: © João Graça (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. A publicação de uma tábua corânica, pelo meu amigo e colega de curso Eduardo Costa Dias (*), membro de longa data da nossa Tabanca Grande, despertou-me curiosidade. Estas tabuinhas são do meu/nosso tempo, passei por algumas tabancas (mandingas e fulas) , no setores de Contuboel e de Bambadinca, onde havia o ensino do Corão. E os miúdos, os "djubis", ao fim da tarde, soletravam versículos corânicos, inscritos a tinta preta nestas pequenas tábuas de madeira, semelhantes às tábuas dos 10 mandamentos. Nos meses frios (dezembro / janeiro), era à volta de uma fogueira. Uma das imagenns mais fortes que algunms de nós trouxeram da Guiné.
- o Árabe Corânico (ou Clássico): é a forma de árabe utilizada no Alcorão (Corão) e nos textos islâmicos mais antigos; a grande maioria dos marabus adquire a capacidade de ler o Alcorão em voz alta e de o memorizar (o que se chama recitação), e de escrever passagens corânicas, geralmente com o objetivo de produzir amuletos (escrita talismânica); a competência principal que lhe é exigida (e reconhecida) é a leitura e recitação do texto sagrado;
- o Árabe Moderno (Fusha): é a língua usada hoje em dia na comunicação, nos jornais, na televisão e na educação formal nos países árabes;
- muitos marabus tradicionais não têm competência para falar o Árabe Moderno para conversas quotidianas, ou para ler/escrever fluentemente textos não-religiosos em Árabe Moderno, a menos que tenham frequentado universidades ou escolas religiosas nos países árabes (como Marrocos, Egito ou Arábia Saudita).
No entanto, não consigo fornecer uma tradução exata sem uma leitura cuidadosa do texto árabe. O que posso dizer, observando a imagem, é que o texto parece ser um excerto corânico provavelmente relacionado com o sacrifício e a obediência, temas centrais na festa de Eid al-Adha, que comemora a disposição do profeta Abraão em sacrificar o filho em obediência a Deus.
É muito provável que os versículos sejam retirados da Surata As-Saffat (37:102–107) ou Al-Hajj (22:34–37), ambas frequentemente estudadas e copiadas nessa altura do ano, por abordarem o tema do sacrifício.
Mas posso tentar fazer uma transliteração e tradução aproximada. Aqui vai:
Antes de tudo, deixo claro que o texto da tábua é em árabe corânico (e não árabe moderno), e, como é comum nas escolas tradicionais da Guiné-Bissau, a caligrafia pode variar ligeiramente da norma.
Segue uma tradução aproximada do conteúdo: Texto e tradução livre:
Estes versos são da Surata 37 — As-Saffat (Os que se colocam em fila), versículos 102 a 106.
Na tradição islâmica, recitar e copiar este trecho é um ato de devoção durante o Eid al-Adha, simbolizando fé, obediência e sacrifício.
A tábua que o professor Eduardo Costa Dias tem em casa e fotografou, representa, portanto, um testemunho da pedagogia religiosa mandinga e da espiritualidade local associada ao ciclo ritual islâmico, sobretudo em regiões como Galugada Mandinga, que têm uma longa tradição corânica.
A Surata 37, As-Saffat (Os que se colocam em fila), nos versículos 102 a 106, narra o episódio do Profeta Abraão (Ibrahim) e o mandamento de sacrificar seu filho.
Aqui está o resumo do que dizem esses versículos (baseado em traduções do Alcorão):
(i) Versículo 102: "E quando (o filho) chegou à idade de labutar com ele, (o pai) disse: "Ó filho meu, sonhei que te oferecia em sacrifício; que opinas? Respondeu-lhe: Ó meu pai, faze o que te foi ordenado! Encontrar-me-ás, se Deus quiser, entre os perseverantes!"
Este versículo descreve o diálogo entre Abraão e seu filho (geralmente identificado como Ismael), onde Abraão revela a visão de seu sonho e o filho demonstra total submissão e paciência à ordem de Deus
(ii) Versículo 103: m ostra o momento da submissão total de pai e filho, prontos para cumprir o que Deus havia ordenado. "E quando ambos aceitaram o desígnio (de Deus) e (Abraão) preparava (seu filho) para o sacrifício."
(iii) Versículo 104: "Então o chamamos: Ó Abraão!"
Neste ponto, Deus intervém no sacrifício.
(iv) Versículo 105: "Já realizaste a visão! Em verdade, assim recompensamos os benfeitores."
Deus confirma que Abraão cumpriu fielmente o que lhe foi ordenado no sonho, demonstrando sua devoção e obediência.
(v) Versículo 106: "Certamente que esta foi a verdadeira prova."
Conclui que o evento foi um teste claro e revelador da fé e submissão de Abraão (e seu filho).
Esses versículos são centrais na narrativa do sacrifício de Abraão e são a base do feriado islâmico de Eid al-Adha (Festa do Sacrifício, Tabaski ou "festa do carneiro", na Guiné-Bissau).
4. Já agora ficamos saber, o que é bom para a nossa cultura ecuménica, o que dizem os restantes versículos (de 107 a 111), da Surata 37, As-Saffat
Os versículos 107 a 111 da Surata As-Saffat (Os que se colocam em fila) concluem o episódio do sacrifício de Abraão, destacando a graça, a recompensa e a honra que Deus lhe concedeu após a prova de fé. Aqui está o significado desses versículos:
(i) O Fim da Prova e a Recompensa: Versículo 107: "E o resgatamos com outro sacrifício importante."
Este versículo descreve a intervenção divina final. Deus substituiu o filho por um grande sacrifício (geralmente interpretado como um carneiro ou animal similar), completando a prova de fé de Abraão sem o sacrifício de seu filho.
(ii) Versículo 108: "E o fizemos (Abraão) passar para a posteridade."
Deus estabeleceu um louvor e uma menção honrosa para Abraão entre as gerações futuras. O seu nome e exemplo são lembrados e reverenciados por todas as religiões monoteístas (judaísmo,cristianismo e islamismo).
(iii) Versículo 109: "Que a paz esteja com Abraão!" (Saudações a Abraão).
Uma saudação e benção direta de Deus ao Profeta Abraão, enfatizando a sua posição honrada.
(iv) Versículo 110: "Assim, recompensamos os benfeitores."
Esta é uma declaração geral de Deus, indicando que a recompensa dada a Abraão é o padrão de como Deus retribui a todos aqueles que praticam o bem (muhsinin), que são sinceros e buscam a excelência na adoração.
(v) Versículo 111: "Porque foi um dos Nossos servos fiéis."
Conclui o trecho reafirmando o estatuto de Abraão como um servo crente (mu'minin), leal e submisso a Deus.
Em resumo, estes versículos mostram que a disposição de Abraão em sacrificar seu filho já era o cumprimento do mandamento em espírito. Deus aceitou essa submissão total e, por Sua misericórdia, proveu um resgate, garantindo que o seu ato de obediência fosse lembrado e honrado para sempre.
5. Ficamos também a saber o que é Surata ( às vezes confundida com o próprio Alcorão):
Surata (ou Sura, do árabe sūrah - سورة) é o nome dado a cada um dos capítulos do Alcorão, o livro sagrado do Islão:
- o Alcorão Sagrado é composto por um total de 114 Suratas ( capítulos);
- cada Surata é, por sua vez, subdividida em versículos, chamados Ayat (ou Ayyat);
- as Suratas variam muito em extensão; a mais curta tem apenas 3 versículos (Surata An-Nasr), e a mais longa tem 286 versículos (Surata Al-Baqarah);
- no total o Coro tem maos de 6,1 mil versículos (a Bíblia tem 5 vezes mais).
- as Suratas não estão organizadas por ordem cronológica de revelação, mas geralmente seguem uma ordem decrescente de tamanho (as mais longas vêm primeiro, exceto a primeira, Al-Fatiha).
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Notas do editor LG:
(*) Vd. poste de 13 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27418: Em memória de Sissau Sissé, que me acompanhou durante muitos anos no meu trabalho de terreno em Contuboel (Eduardo Costa Dias)

































