Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
Pesquisar neste blogue
domingo, 22 de junho de 2025
Guiné 61/74 - P26946: Parabéns a você (2389): Cor Art Ref António José Pereira da Costa, ex-Alf Art da CART 1692/BART 1914 (Sangonhá e Cameconde, 1968/69) - ex-Cap Art, CMDT da CART 3494/BART 3873 e CART 3567 (Xime, Mansambo e Mansabá, 1972/74) e João Crisóstomo, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé e Fá Mandinga, 1965/67)
_____________
Nota do editor
Último post da série de 20 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26939: Parabéns a você (2388): Cherno Baldé, Amigo Grã-Tabanqueiro, Gestor de Projectos na Guiné-Bissau
sábado, 21 de junho de 2025
Guiné 61/74 – P26945: Memórias de Gabú (José Saúde) (431): Pássaros que esvoaçavam os céus da Guiné (José Saúde)
1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego -Gabu) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem rebuscada nas suas memórias.
Pássaros que esvoaçavam os céus da Guiné
Guiné/Bissau e as suas histórias
O passageiro de além
Rapazes simples, fardados com um camuflado
em pleno palco de guerra, mas, sendo que na partida para terras de além-mar as
vestes que envergavam eram as de primeira propriedade. O momento passava por
uma cerimónia “vil” por parte dos senhores da Nação. As famílias na Cais de
Alcântara, ou no Conde de Óbitos, ou no aeroporto do Figo Maduro, em Lisboa,
fechavam-se em rosto que transmitiam dor. Aliás, uma dor que lhes vinha do
interior das entranhas, ou não fosse o momento deveras doloroso.
Os “miúdos” lá seguiam em grandes barcos
que enfrentavam ventos e marés rumo ao seu destino. As viagens, algumas mais
extensas, beneficiavam uma aproximação a um camarada que, entretanto,
aparentava desespero. Entretinham-se, nesses longos instantes, ao jogo da
lepra, ou, ainda, a outros passatempos ocasionais. Por vezes, a noiva, o seu
grande amor, já guardava no ventre um pequeno ser humano fecundado com afeto. A
mãe, sim aquela que o pariu, ficava desfeita e começa um “luto” com a ida do
seu filho para a guerra.
Depois, lá vinham os aerogramas onde o
militar, algures no mais incomum lugar das então províncias ultramarinas,
recomendava calma à família e amigos, dado que tudo seguia à sonoridade de
ventos sopravam (des) favoráveis. Nada de alarmismos. O rapaz, alguns com a barba
ainda a rebentar no seu jovial rosto, com as borbulhas a indicar jovialidade,
mandava fotografias para o pessoal descansar.
Lá longe, em Angola, Moçambique e Guiné,
os “putos” lá se iam defendendo, entrementes, de uma guerra que não dava
tréguas. Matar para não morrer era o slogan que todos, ou quase todos,
partilhavam, todavia, alguns encontravam infelicidade pelo caminho e a morte,
ou a incapacidade corporal, fora o fatídico selo que lhes impôs destinos
impiedosos.
Em Gabu, o passageiro do além, vislumbrava
que aquela guerrilha nefasta era tida como desigual. Não importava o bélico
contagiante das nossas tropas, cerca de 40 mil, na altura, que lutava com um
inimigo, PAIGC, ao que se comentava que tinham cerca de 10 mil. Outros motivos
explicavam tal razão. O contexto generalizado da guerra ditava fatores que
impunham ordens para um IN, sempre hábil, que aparentava superioridade nos
campos de batalha. Porém, nem sempre assim o era.
Por outro lado, nos céus da Guiné existia um rol de pássaros que eram imunes
aos conflitos no terreno. No mato viam-se diversas espécies de passarada, ou
animais, tipo macacos, lebres, de entre outras, que encantava camaradas com os
seus lindos chilreares.
Debruço-me, hoje, sobre a realidade dos abutres.
Abutres
Numa breve reflexão sobre a passarada
guineense, que era e é enorme, detenho-me perante uma veracidade que me fora
conhecida, ousando trazer à estampa o universo dos abutres, pássaros necrófagos
que proliferavam em todo o solo e que amiúde observava com algum interesse. O
seu aspeto atirava para um horripilante semblante e o habitat natural passava
pela procura sistemática de restos de cadáveres.
Não vacilo, porém, recordar Hitchcock na
sua análise psicanalítica sobre um filme onde o tema era, obviamente, “Os
Pássaros”. Os conteúdos do emaranhado de imagens remetiam-nos para o ataque dos
pássaros aos seres humanos. Um filme que se estreou nas telas cinematográficas
mundiais no ano de 1963 e que bom dinheiro rendeu à produção, sobrando as
inúmeras interpretações feitas pelos amantes do cinema que assumiam presumíveis
traduções que esbarravam em análises científicas.
Mas demos um passo em frente, ouçamos
abstratamente o clarinete e apresentemos armas numa infindável parada, falando
nos abutres conhecidos numa Guiné em tempo de guerra e não numa outra espécie
de “aves de rapina” que se multiplicavam na metrópole lusitana. Estes rapazes
de então, bem ou malvestidos de acordo com as circunstâncias propostas,
pareciam “bandos de pardais à solta” que esmiuçavam vidas e citavam, com
ênfase, a provável falsificada ideologia de um patriotismo entendido, por eles,
como inigualável.
Simultaneamente ao evoluir das desgraças
conhecidas onde a morte de camaradas se amontoavam nas frentes de combate, lá
vinham os senhores de gravatas acetinadas e fatos à príncipe de “Gales” que na
hora da despedida no cais portuário de Alcântara, incentivarem um contingente
de jovens mergulhados em porões de navios cuja etiqueta transportada era,
tão-somente, o pregão ao dito popular que a encomenda que seguia a bordo
registava “carne para canhão”.
Passemos licitamente à vanguarda porque esses fatídicos tempos foram maus de mais para ser verdade. Com efeito, concentremos atenções no respetivo pássaro e observemos que o abutre é uma ave accipitriforme e originária da família chamada de accipitridae. Refletindo em pormenor sobre estes necrófagos, diz-se que as aves são também conhecidas como abutres do velho mundo. A sua longevidade chega a atingir os 30 anos, sobretudo quando se encontram em cativeiro.
A hierarquia
dos abutres a devorarem uma carcaça (foto retirada via internet)
Conheci o seu esvoaçar num horizonte
interminável e os seus impulsos animalescos na procura de um lugar para
pernoitar. Conheci, também, a obstinada azáfama na procura de alimentos.
Conheci, ainda, as suas visitas quotidianas às proximidades do barracão do
Seidi, “magarefe-dia” onde o nosso quartel angariava carne de vaca fresca para
uma pontual refeição mais abastada, sendo que este rapaz, de etnia fula,
matava, esfolava e dividia a carcaça do animal de acordo com os pedidos
previamente feitos.
Lembro, e foram muitas vezes a que
assisti, o Seidi, após a trabalheira da matança lançar para o bando de abutres
pequenas dádivas para os pássaros se deliciarem com primor.
Recordo, simultaneamente, as lutas
desenfreadas travadas entre eles pelo melhor naco, ou, as guerras para limparem
parte das ossadas do animal, ficando a certeza que no grupo havia regras que os
mais desenfreados comilões, sempre de bico “afiado”, assumiam por inteiro,
tendo em conta o posto hierárquico emanado pelo bando.
Claro que as lutas dos pássaros desenhavam
ávidos momentos em que a prioridade era o encher o papo. Noutros lugares
existiam sequiosos “abutres”, mas estes literalmente curvados ao faustoso e
recheado prato que lhe fora colocado na mesa. A nutritiva refeição era tão-só
uma pausa pontual ao arroz com salsichas.
Para outros, pássaros de rapina imbuídos
num minucioso calculismo, a tal vaca morta e desmanchada pelo Seidi tinha os
seus dividendos. Restava a certeza que a mão “milagrosa” do Seidi jamais
recusou atirar para os abutres as sobras da carcaça que, por razões evidentes,
“não iam à mesa do rei”.
Hoje, ao lembrar as memórias de Gabu
detenho-me perante as minhas vulgares idas ao matadouro do Seidi. A sua azáfama
era de todo interessante. A túnica, veste que usualmente transportava no seu
corpo e que aparentava alguma sagacidade, estava normalmente manchada de
sangue, tal como as mãos que reproduziam um trabalho que ele próprio assumia com
dignidade. Era, aliás, dessa árdua faina constante que o nosso amigo recolhia
proveitos monetários para alimentar a família.
Retalhos de vidas que em tempo de guerra
abasteciam tabancas de gentes que faziam do momento imponderáveis desejos de
uma existência vergada pelos horripilantes sons vindos de outras batalhas
campais que ocorriam ali por perto.
Lá longe, muito longe, os arautos do
despotismo debitavam discursos, qual abutres esvoaçando sobre negros
horizontes, dizendo às massas que os militares portugueses lutavam nos palcos
de guerra com honra e dignidade.
Na verdade, nós jovens lutávamos como
heróis visando a essencial salvaguarda da nossa “carcaça”, mas numa guerra que
não era decididamente nossa. Os defuntos “abutres” que num limiar de cautas
razões que na época ostentavam, levantem-se dos sepulcros, escutem o julgamento
final e defendam a triste tese que certamente não transitará em julgado.
Histórias avulsas de incautos cenários onde fomos meros “pássaros” andantes de uma imigração obrigatória em território alheio.
Um
abraço, camaradas
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
___________
Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
12 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 – P26146: (Ex)citações (430): Habitações palacianas de Gabu (José Saúde)
Guiné 61/74 - P26944: Os nossos seres, saberes e lazeres (686): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (209): Algures, na Renânia-Palatinado, em Idstein, perto de Frankfurt – 9 (Mário Beja Santos)

Queridos amigos,
É o derradeiro dia desta viagem que teve imperativos lutuosos, mas cujos familiares de uma grande amiga entenderam que se devia converter no conhecimento de lugares esplendentes, como procurei revelar em Idstein, Limburgo ou agora no Mosteiro de Eberbach, isto para já não falar nas escapadelas a lugares de algum modo bem conhecidos em Frankfurt. Despeço-me mostrando algumas imagens do mosteiro fundado no século XII, veremos a transição do românico para o gótico, da severidade iremos ver que se evoluiu da arte gótica até se chegar ao barroco. Na Idade Média, estes monges cisterciense meteram-se na cultura do vinho e reza a história que se tornaram nos mercadores mais influentes da Europa Central dos século XVI para o século XVIII. E na visita às suas instalações vê-se que a viniviticultura é a primordial riqueza do mosteiro. Acabou-se a festa, sou levado ao Aeroporto Internacional de Frankfurt, não escondo o meu pesar. Felizmente que os anfitriões deixaram a porta aberta. Qualquer dia dou-vos notícia do meu regresso.
Um abraço do
Mário
Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (209):
Algures, na Renânia-Palatinado, em Idstein, perto de Frankfurt – 9
Mário Beja Santos
Encaminho-me para o Mosteiro de Eberbach, também no Estado de Hesse, com dissimulada tristeza, já trago a trouxa feita, aqui se passará a manhã, almoça-se, serei depois transportado para o Aeroporto Internacional de Frankfurt, tem uma dimensão desmesurada, à frente só Heathrow. À porta lê-se uma divisa: Porta Patet, Cor Magis, isto é a nossa porta está aberta e ainda mais o nosso coração! O visitante é assim calorosamente recebido nesta muito abadia cisterciense. Foi fundada em 1136, Bernardo de Claraval enviou um punhado de monges que aqui viviam em ascese e muito trabalho. Graças a uma eficaz gestão económica, o mosteiro transformou-se rapidamente na Idade Média numa empresa próspera, graças à cultura da vinha, importada da Borgonha; no fim da era medieval o mosteiro ganhara a reputação de ser o mais importante negociante de vinho da Europa Central. O mosteiro albergava duas comunidades especialmente separadas: os monges de que alguns eram sacerdotes e o grupo dos irmãos laicos ditos irmão conversos. Rezar e trabalhar era o seu mandamento maior. Monges e irmãos eram maioritariamente originários das camadas pobres.
Que edifícios iremos ver? Temos aqui os tempos primitivos, é patente a reforma cisterciense, nada de embelezamento artístico e ornamental, a imagem da igreja dá-nos exatamente essa perceção. Iremos ver o traçado românico e depois o gótico em salas tal como dormitório dos monges, a sala do capítulo, a construção nova do claustro e até nas capelas funerárias. Até muito tarde, estes monges resistiram aos caprichos do embelezamento, mas deixaram-se depois inspirar pelos esplendores barrocos, como veremos nas últimas imagens.
Arrumada a viatura, avista-se num plano superior a dimensão imponente deste mosteiro com as suas cúpulas bolbosas, impressiona desde logo o bom estado de manutenção.
À direita, Adolfo II de Nassau, à esquerda o arcebispo Gerlach de Nassau.
Estamos agora na parede esquerda e temos os túmulos de um religioso proeminentes e de Adolfo II de Nassau. O primitivo túmulo deste arcebispo foi considerado um dos mais monumentos funerários da Idade Média na Alemanha.
O passeio prosseguiu até aos locais de vendas, daqui se partiu para uma refeição ligeira, guardei no meu caderninho de viagem que no século XII era uma vida severíssima, 150 monges e 300 irmãos, do século XIII ao século XVI reduziram-se as restrições e começou a cultura da vinha, que se tornou prodigiosa; o século XVIII é marcado pela prosperidade; no século XIX assiste-se à secularização, dissolve-se o mosteiro por ordem do príncipe Frederico Augusto von Nassau-Usingen, na década de 1860 este ducado de Nassau é anexado ao reino da Prússia, em 1946 torna-se propriedade do Estado de Hesse, a partir de 1998 surgiu uma fundação. E acabou-se a viagem, bem triste foi a razão que me trouxe a este rincão da Alemanha, mas não posso esconder que os meus anfitriões me asseguraram uma esplêndida estadia, como procurei registar nestas notas de itinerância.
Até à próxima!
_____________
Nota do editor
Último post da série de 14 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26920: Os nossos seres, saberes e lazeres (685): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (208): Algures, na Renânia-Palatinado, em Idstein, perto de Frankfurt – 8 (Mário Beja Santos)
sexta-feira, 20 de junho de 2025
Guiné 61/74 - P26943: Notas de leitura (1810): A presença portuguesa no Gabu, a relação colonial com os Fulas, por José Mendes Moreira (Mário Beja Santos)

Queridos amigos,
Este artigos de divulgação escrito pelo antigo administrador que produziu uma monografia sobre os Fulas do Gabu, elucida-nos de como nos apropriamos tão recentemente de cerca de um sexto de território da atual Guiné-Bissau, como se desenvolveu um relacionamento amigável entre as etnias Fulas e a administração portuguesa que, em parte, nos leva a compreender como, iniciada a luta armada, a esmagadora maioria das etnias Fulas se puseram automaticamente do lado da soberania portuguesa, e até ao fim do período colonial, oferecendo-lhe todo o apoio militar. Releva também do trabalho de Mendes Moreira a figura do régulo Monjur, que aparecerá por várias vezes ao lado das tropas portuguesas, em campanhas de pacificação. Esta revista Império, de 1951, era-me totalmente desconhecida, este artigo surge nos primeiros números, vou ler o que ainda falta, pode ser que tenha ainda mais uma agradável surpresa.
Um abraço do
Mário
A presença portuguesa no Gabu, a relação colonial com os Fulas, por José Mendes Moreira
Mário Beja Santos
O administrador José Mendes Moreira escreveu em 1948 uma monografia sobre os Fulas do Gabu, ainda hoje trabalho referencial. Encontrei há dias uma revista intitulada Império, teve curta existência, mas teve um arranque prometedor, em 1951. No número desse ano de setembro/outubro José Mendes Moreira ocupava-se do Gabu, vale a pena citá-lo:
“Gabu, o antigo Cabo, tão bem conhecido dos nossos exploradores do século XVI, não passava ainda de uma nebulosa no quadro da ocupação efetiva da província (século XIX, entenda-se). Fomos absolutamente estranhos às sanguinolentas lutas entre Mandingas e Fulas que culminaram pela conquista da supremacia por parte dos últimos. Ao contrário do que afirmam algumas crónicas e relatos orais dos nativos, a região nunca foi desabitada mesmo recuando no tempo até à Pré-História. A recente descoberta da estação de Nhampassaré, atesta a existência de homens pré-históricos, embora de proveniência e raça ignoradas.
Já nos tempos históricos, teriam por aqui passado algumas tribos, hoje acantonadas no litoral da província: os Bagas, os Banhuns ou Cassangas, os Felupes, os Bâmbaras e os Biafadas, tendo estes últimos sido desalojados pelos Mandingas Soninqueses, a partir do século XIII. Posteriormente, atravessaram a região os Fulas de Coli Tenguela, verdadeira tromba humana de que André Álvares de Almada nos conservou a memória.
Na primeira metade do século XIX, são ainda os Soninqueses os denominadores do Cabo (de Kabu – guerra) de onde o nome de “kabunkas” por que ainda hoje são designados pelos seus irmãos de além-Geba e Farim, por sua vez designados de “braçunkas” (de Braço – rio Farim ou Cacheu).
Contra o animismo turbulento dos kabunkas ia surgir em breve uma ameaça: o proselitismo religioso, fanático e avassalador, dos Fulas-muçulmanos do Futa-Jalom, já senhores de um império que atingia a Gâmbia pelo norte, a Serra Leoa pelo sul e se estendia para o oriente, quase até à curva do Alto Níger. É inevitável o choque entre as duas ideologias adversas e as crónicas relatam porfiadas lutas que terminam na epopeia sangrenta de Cam-Salá, numa guerra de extermínio entre duas raças e dois credos opostos.
Venceram os Futa-Fulas embora a vitória representasse um golpe profundo no seu poderio militar, golpe de que nunca mais se recompuseram, pois os franceses avançavam já com passos seguros por todo o seu domínio, enquanto os Fulas-Pretos de Alfá Moló e Mussá Moló, de vitória em vitória, completavam numa guerra de libertação a queda do carcomido tronco da poderosa monarquia religiosa e feudal do Futa-Djalon.
Alfá Bácar Guidáli completava a ocupação de Gabu pelos Fula-Forros, os Mandingas homiziavam-se para Farim e Casamansa, e o forte militar de Geba pairava já como sombra fatídica sobre o imenso território.
Entretanto, celebra-se a Convenção de 12 de maio de 1886 e todo aquele território correspondendo ao Gabu é considerado esfera de influência dos portugueses. Os franceses estavam persuadidos de que a Convenção de 1886 deixava na zona francesa os territórios do Forreá e Pachisse, incluindo Kadé e Canquelifá, mas brevemente reconheceram o erro. De facto, Kadé, inegavelmente sobre a influência francesa ficava a 20 km para o ocidente do meridiano 16ºW de Paris. Após intermináveis discussões, recomeçaram-se os trabalhos de 1898 concluidos em 1903, conduzindo à assinatura de um processo verbal que deixava à França os territórios de Kadé e Binane e a Portugal o Forreá e a parte ocidental de Pachisse, incluindo Canquelifá. Como compensação, foi-nos atribuído ao Sul uma extensão igual de território. Tudo decorreu sem quaisquer atritos.
Foi assim que Gabu entrou na órbita da ocupação portuguesa.
De 1905 a 1919, Gabu não tem qualquer autonomia administrativa. Faz parte da antiga circunscrição civil de Geba. Porém, Geba, antigo baluarte militar, foco de um intenso e profícuo missionarismo, sentinela vigilante da soberania e da civilização na parte oriental da província e centro comercial de primeira categoria, entra em decadência. É que, na margem esquerda do rio a que dera o nome começa a surgir, numa promessa de grande prosperidade, um novo foco de civilização – Bafatá. Situada na confluência dos rios Geba e Colufe, em breve destrona a velha e gloriosa povoação afortalezada. Em 1912, já é sede de circunscrição, que ainda se domina circunscrição civil de Geba. É Bafatá a porta de saída dos produtos naturais da região. É Bafatá que arrecada o imposto de soberania e todos os rendimentos públicos. No Gabu impera, quase soberanamente, o prestigioso régulo Monjur Embaló, filho do fundador do regulado, Alfá Bacar Guidáli, sucessor de Seilú Coiada, o régulo que acompanhara os trabalhos de delimitação de fronteiras.
Mais para o ocidente, o gentio insubmisso reclamava o emprego das nossas armas enquanto Monjur, nosso amigo e colaborador em campanhas, cobrava os impostos que vertia no todo ou em parte nos cofres da Fazenda, guerreava os potentados vizinhos do território francês e cercava-se de uma auréola de fastígio e de poder e granjearam o ser reconhecido como o maior de todos entre os régulos que ainda imperavam dos dois lados da fronteira.
Os centros comerciais de Oco, Piche, Sonaco e Canquelifá esboçavam ainda timidamente os primeiros passos. Um português de nome Lança abrira o primeiro estabelecimento comercial em Oco. Em 1912, começa a infiltração de comerciantes sírios e libaneses. São eles que efetivam a ocupação comercial da região.
Com as fulgurantes vitórias de Teixeira Pinto, a província foi completamente pacificada. Da ocupação militar passa-se à ocupação administrativa. Em junho de 1919, o território do Gabu é desanexado da circunscrição civil de Bafatá, constituindo a décima circunscrição civil. O administrado Alberto Gomes Pimentel vem instalar em Oco a sede dos serviços da nova circunscrição. O tenente Adolfo de Jesus Leopoldo transfere a administração para Lenquerim, na margem esquerda do Colufe mas, a breve trecho, reconhece que Gabu-Sara, povoação fronteira na margem direita, oferece melhores perspetivas ao desenvolvimento de um centro urbano comercial que combina os comerciantes libaneses de Oco a transferência do centro comercial para Gabu-Sara, onde, em 1921, já se encontram em funcionamento os primeiras estabelecimentos comerciais e iniciada a constrição do edifício da administração.
Monjur é ainda o maior de todos, mas com a velhice as intrigas dos próprios irmãos começam a minar-lhe o poderio. Respeitado e temido por todos, não faz concessões, as nossas autoridades administrativas, recentemente instaladas, não dão conta dos trabalhos que se lhes levantam debaixo dos pés e cometem erros de gravidade por desconhecerem a índole da população e o espírito intrigante do Fula. Monjur luta sempre, indomável, contra as intrigas dos seus irmãos de raça e de sangue e contra a incompreensão do branco outrora tão seu amigo. É sucessivamente destituído e reposto no cargo, vê o seu território esfacelado e de novo unificado sob a sua égide.
Quando uma nova divisão estava iminente, Monjur vai a Bolama pedir justiça, que é feita e, no regresso, morre pouco tempo depois em Coiada, donde o seu cadáver é processionalmente transferido para Oco perante incontáveis multidões de gente vindas de todos os pontos da Guiné e do vizinho território francês.
Estamos em 1929. De então, até 1935, Gabu atravessa um período crítico em que a confusão reina soberanamente e despovoa-se de tal forma que, de 30 mil impostos que se arrecadavam nos tempos áureos de Monjur, desce para 11 mil e pouco em 1934. Contudo, nunca foi necessária a força armada para restabelecer a ordem. Em 1936, repartiu-se o território pelos chefes dos diferentes ramos da família Embalocunda, a dinastia reinante, voltou a tranquilidade. Hoje a população nativa anda à volta dos 60 mil quando em 1934 mal aflorava aos 30 mil. Fulas-Forros, Futa-Fulas e Fulas-Pretos vivem em paredes meias com Mandingas, Jacancas, Saracolés. Sossos, Torancas e outros grupos étnicos, sem atritos de qualquer natureza.”
José Mendes Moreira dá-nos depois a relação das benfeitorias desde a assistência sanitária, a assistência agrícola, a construção de edifícios, um bairro cívico em Sonaco, novos edifícios para a administração, uma central elétrica em Nova Lamego, melhoria das estradas, etc.
Nota do editor
Último post da série de 16 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26925: Notas de leitura (1809): Guiné - Os Oficiais Milicianos e o 25 de Abril; Âncora Editora, 2024 (1) (Mário Beja Santos)
Guiné 61/74 - P26942: As nossas geografias emocionais (534): Arábia Saudita, Mar Vermelho, Jeddah, "a porta de Meca", 2023 (António Graça de Abreu, Cascais)
(...) Gidá se chama o porto aonde o trato / De todo o Roxo Mar mais florescia, / De que tinha proveito grande e grato / O Soldão que esse Reino possuía. / Daqui aos Malabares, por contrato / Dos Infiéis, fermosa companhia / De grandes naus, pelo Índico Oceano, / Especiaria vem buscar cada ano. (...)
![]() |
1. Mais um "postal" enviado pelo nosso incansável, (e)terno viajante António Graça de Abreu (aqui na foto à direita com a sua Hay Yuan),.
Na esteira das palavras de Claude Roy (1915-1997), grande senhor das letras francesas, concluo que já viajei por tantos países que sou capaz de falar estrangeiro na perfeição.
Nesta passagem por Jeddah, segunda maior cidade da Arábia Saudita com quase cinco milhões de habitantes, centro económico e logístico deste país, vou conversar com quem, em que língua, eu que do árabe tenho na memória uns lampejos de meia dúzia de palavras?
![]() |
Posição relativa de Jeddah no Mar Vermelho. Fonte: Wikipedia (com a devida vénia...) |
A importância de Jeddah está assim intimamente ligada a esse caminho terrestre, às estradas que daqui abrem para Meca. Todos os anos, todos os meses, todos os dias, milhões, centenas de milhares, milhares de muçulmanos procuram a divina Meca, a Kaaba, o imponente edifício no centro de Meca a rodear em marcha apressada ou mais lenta por sete vezes, circundar o cubo em pedra negra erigido em outras eras que se crê ter sido inicialmente levantado pelo profeta Abraão há três mil e oitocentos anos atrás, restaurado por Maomé no século VII e casa sagrada, desde sempre, onde reside o espírito de Alá, o Deus Supremo.
Hoje, o acesso a Meca está proibido a todos quantos não são muçulmanos.
Depois Jeddah espraia-se por quilómetros e quilómetros, a cidade cresceu aos poucos em cima da areia dos desertos, tendo hoje por horizonte, bem mais para leste, os 142 poços de petróleo que fazem destas terras inóspitas, abrasadas em calor, lugares onde vicejam algumas das maiores fortunas da terra.
António Graça de Abreu
________________
Guiné 61/74 - P26941: In memoriam (551): J. L. Pio Abreu (Santarém, 1944 - Coimbra, 2025): ex-alf médico, CCS/BCAÇ 3863 (Teixeira Pinto, 1971/73): quatro referências no "Diário da Guiné" (2007), de António Graça de Abreu
José Luís Pio Abreu é psiquiatra clínico.
Fez o Doutoramento em 1984, com uma tese ligada à Psiquiatria Biológica, e a Agregação em 1996, com uma lição sobre perturbações de ansiedade.
Foi médico no Centro Hospitalar da Universidade de Coimbra (CHUC) e professor associado da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra , sendo ainda membro do Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa (CFCUL).
Ao longo dos 50 anos da sua actividade profissional tem desenvolvido e orientado investigação nas áreas da Psicopatologia e psicoterapias, com centenas de artigos publicados em revistas científicas e conferências. Também se tem empenhado nas psicoterapias, tendo sido Presidente da Sociedade Portuguesa de Psicodrama (SPP).
Publicou doze livros em Portugal (alguns destes foram também publicados no Brasil, em Espanha, na América Latina e Itália) e orientou a tradução de um livro de Neurofisiologia. Três deles foram premiados em Portugal e Itália.
O mais conhecido é: "Como Tornar-se Doente Mental". Nos seus escritos, dedica-se também a uma reflexão crítica da Psiquiatria e tenta abordar o enigma da Mente a partir das suas patologias.

Nessa data, há no "Diário da Guiné" uma referência à atuação do alf mil médico Pio Abreu, na tentativa de salvar a vida a um fuzileiro do PAIGC, atingido por estilhaços de uma bala de helicanhão.
Os dois médicos são gente interessante, inteligentes, cabeças abertas para o mundo. Conversámos sobre a guerra, sobre as nossas vidas.
Nenhum tem hoje qualquer actividade política nem de contestação do regime, mas carneiros não somos. É pena para mim – não para eles -, estarem em fim de comissão, só mais dois meses para o Bagulho.
São ótimos médicos, segundo a opinião de toda a gente. Dão consulta à população, com intérprete, tratam das milhentas doenças que afligem este povo manjaco e são os médicos militares, cuidam da tropa aqui estacionada e prestam assistência aos feridos em combate que chegam a Canchungo vindos diretamente do mato.
Têm uma casa grande apenas habitada por eles, fora do quartel, na avenida principal em frente ao hospital. Uma casa bonita com uma sala de estar confortável, com móveis e tudo. (pp. 31/32)
Hoje, o resultado das brincadeiras com as armas. Ouvi um tiro e gritos na caserna dos soldados do Batalhão [BCAÇ 3863], aqui diante do meu quarto, a uns quarenta metros.
Em Bafatá, caiu um das avionetas DO ao levantar voo, parece que por acidente, descuido do piloto, um alferes que eu não conhecia. Morreram o piloto e um cabo mecânico. (pp. 43/44).
(…) Quando acontecem estas coisas, pedem-se logo os helicópteros de Bissau para a evacuação dos feridos e vem também o helicanhão que faz fogo sobre os itinerários de retirada do IN.
Ver viver, ver morrer, três homens mortos, sete feridos graves, quatro ligeiros. A causa próxima foi um desafio de futebol, a causa remota foi o destino e o facto de estarmos numa guerra.
Esta tarde houve um jogo de futebol entre o pessoal branco do Batalhão, CCS/BCAÇ 3863, e a tropa branca e negra do aquartelamento do Bachile [CCAÇ 16, constituida sobretudo por militares manjacos, do recrutamento local.
Cerca das oito da noite, foi recebida aqui uma comunicação rádio do capitão branco do Bachile, a braços com uma insubordinação dos militares negros. Quarenta africanos armados haviam saído do aquartelamento e marchavam a pé para Canchungo, a fim de tirarem da prisão os seus dois camaradas detidos.
Na ponte Alferes Nunes, já próximo do Bachile, os Comandos ficaram e o coronel avançou sozinho, no jipe, ao encontro dos soldados africanos. Graças à sua coragem, ao respeito que impõe a toda a gente - é o “homem grande” branco -, à promessa de libertar os presos, os soldados negros regressaram pacatamente ao Bachile.
Aqui em Teixeira Pinto estávamos na expectativa, não sabíamos o que ia acontecer. Em frente do edifício do CAOP, eu conversava com o major Malaquias, com um alferes da 38ª [CCmds] e outro do Batalhão quando ouvimos um grande rebentamento muito próximo.
No regresso dos comandos, à entrada da vila, rebentara uma caixa cheia de dilagramas – granadas disparadas pelas G 3 com um dispositivo especial – em cima de um Unimog onde vinham catorze homens. Dois mortos de imediato, os restantes feridos vinham a caminho. Corremos para o hospital. Os comandos chegaram.
Como vinham, meu Deus! Um furriel morria na sala de operações. As suas últimas palavras para o Pio [Abreu], o médico, foram: “Doutor, cuide dos outros, eu estou bem.”
Era preciso evacuar os feridos para o hospital de Bissau. Onze horas da noite, iluminámos a pista com os faróis das viaturas e com as mechas acesas em muitas garrafas de cerveja cheias com petróleo, distribuídas aí de dez em dez metros ao longo do campo de aviação. Aterraram quatro DO. Ajudei a transportar feridos entre o hospital e as avionetas, num dos nossos Unimog. Dois deles iam muito mal, cravados de estilhaços, em estado de choque ou coma, não sei se escaparão.
O condutor do Unimog em cima do qual as granadas rebentaram é um dos meus soldados, do CAOP 1, Loureiro de seu nome, com apenas oito dias de Guiné. Ia a conduzir, não sofreu uma beliscadura. Trouxeram-no cambaleando, o espanto, incapaz de falar. Evacuados os feridos, fui buscá-lo, abracei-o, sentei-o na minha cadeira na secretaria, animei-o, bebemos quatro águas Castelo.
Não sei que horas são, deve ser tarde, não tenho ponta de sono. Já ouço os galos cantar. Um novo dia nasce. (...) (pãg. 70).