Na Páscoa estávamos todos. Agora já não, vamos morrendo, hoje uma, amanhã outro. E será que os filhos e netos vão-nos ajudar e recuperar o saldo demográfico? Oxalá, Enxalé, Insh' Allah!
Não, não havia Páscoa, sem os foguetes, nem alegria estampada na cara e irradiando do coração das gentes de Entre Douro e Minho...
Não, não havia Páscoa, sem a famosa freima que se apoderava das gentes cá do Norte, na véspera dos pequenos grandes acontecimentos, como os trabalhos coletivos (a vindima, as serviçadas...), ou os festejos (o casório dos filhos, o Natal, a festa da Senhora do Socorro ou a do Castelinho...).
Antes da pandemia, antes da era covid-19, com a crise ou sem ela, e até mesmo depois da proibição do lançamento de foguetes de cana... Ó vai ou racha, rapazes!, que na Quaresma engordava-se o anho para a grande matança da Páscoa...
Tudo isto, quando o Natal tinha o seu pinhão, e a Páscoa o seu tição, e a salgadeira estava atulhada com o porquinho que era o governinho da casa mas também uma das causas principais dos ACV que matava a gente...
Depois veio a maldita covid, e passaste a ter a triste Páscoa do confinamento, do "take away", e das grandes superfícies, com filas à porta, e a malta toda mascarada, guardando a devida distância uns dos outros... Mais a autoestrada que te levava ao Norte, vazia e rigorosamente vigiada. E a GNR a cavalo a patrulhar as praias, as praças e os jardins e o ajuntamento do povo que precisava de apanhar sol como o lagarto
Em 2009, ainda te lembras, cada dúzia de foguetes custava a módica quantia de 30 euros. Mas no domingo de Páscoa (ou na segunda, que no antigo concelho de Bem Viver, a Páscoa eram dois dias e o carnaval no Rio eram três, jurava o brasileiro de torna-viagem), e por ocasião da visita do compasso, o povo perdia a cabeça e armava-se em fino e em rico para provar à Casa do Fidalgo quem tinha porra e cagança...
O raio da covid não olhava a senhorios e rendeiros, os ricos e os pobres de antigamente, e, aliada da morte, estava à espreita mas não esperava. Não poupava novos e velhos.
Quando o compasso chegava a uma casa, o fogueteiro sinalizava a sua presença... Os vizinhos, mais à frente, a 100, 200 ou 300 metros, nesta região de povoamento disperso, preparavam-se, com grande excitação, freima, para a cerimónia...
Já as portas estavam abertas de par em par, a mesa posta com a melhor toalha de linho do bragal, e o caminho de cabras atapetado de urze e pétalas de flores bravias.... Aleluia, aleluia, Cristo ressuscitou!
Todos, mal-enjorcados nos seus fatos domingueiros, os camponeses do Norte, as mãos, calejadas, sem jeito, erguidas ao céu quando era preciso rezar a um deus maior.
Já não importava se a Páscoa era no domingo depois da primeira lua cheia do equinócio da primavera, que tu, em passando a covid-19, perdeste a conta aos dias e aos meses e anos do calendário.
2025, o "annus horribilis" de 2025, como o tempo passa! Como passou o de 2020, e este também há de passar, figas,canhoto!
Tradição rica de significado socioantropológico, hoje em vias de desaparecer, a tua Páscoa nortenha que adotaste, há meio século. Cristo ressuscitou, aleluia, aleluia!, estamos vivos e bem de vida, dizia o da casa, abrindo as portas aos vizinhos, parentes e amigos. Bebam e comam qualquer coisinha, carago, que a casa é cheia e farta, há doce da Teixeira e pão de ló dos Lenteirões. E uma cachão de anho e arroz, se a alguém do compasso já der a fraqueza a esta hora da manhã!...
Domingo da Ressurreição, carne no prato, farinha na mão, que na Santa Feira Santa comia-se o sável do rio Douro. Acabava-se o jejum e a abstinência, para os pobres que não tinham bula. Burla, resmungava o o padre Mário, expulso da Guiné como capelão. Não sejais tolos, que dos pobres será o Reino dos Céus.
Eram, afinal, dias de festa, os últimos da Semana Santa, dias de comes e bebes e foguetório, tudo misturado com a religiosidade pagã e cristã, que durante séculos formatara corpos e almas.
Folgai, meus filhos, enquanto puderdes, que noutra hora deveis chorar, lembrava o padre Agostinho.
À noite, do terraço da varanda de Candoz, assistia-se, de borla,
ao espectáculo único da largada de fogo de artifício, quando o compasso recolhia, cansado e suado, depois de andar por montes e vales, estradões e socalcos, pontões e ribeiros, o homem da cruz à frente, e a seu lado o puto, de sobrepeliz, a tocar a sineta, já meio rachada. E a canalha atrás, para apanhar as canas dos foguetes e as sobras das mesas, os rebuçados dos pobres e as amêndoas dos ricos.
Depois da visita do compasso, e bem arrotado o arroz de anho assado no forno, era o espetáculo talvez mais aguardado do ano, a disputa em fogo de foguetório entre cada uma das freguesias circunvizinhas ali em frente, naquele cenário de presépio. Saúde e pouca vida, que Deus não dava tudo, resignava-se o abade.
Olhai, Paredes de Viadores, olhai, Passos de Gaiolo, que eram do Marco!... E já os de Mesquinhata se adiantavam e agigantavam, mais os de Santa Leocádia, Grilo e Ribadouro, ali em frente, mas já do concelho de Baião, que a linha do caminho de ferro do Douro separava...
Todos, afinal, a competir pelas luzes da ribalta do céu, e a mostrarem-se mais cristãos e mais valentes do que no ano anterior. E com um sorriso matreiro, e uma pontinha de vaidade, bem mostrados aos que se sentavam na plateia deste vale de lágrimas que sempre fora aquela terra de camponeses, rendeiros e cabaneiros, jornaleiros, trolhas, carpinteiros, ramadeiros, trabalhadores do milho, da vinha e do centeio... A natural vaidade humana de quem conseguira sair do círculo da pobreza, e que este ano já se chegara para a frente, com uma nota de conto.
Deus fizera o mundo e as quatro estações de Vivaldi, e os solstícios do inverno e do verão, e os equinócios da primavera e do outono, só não mandara anjos para ajudar a plantar, regar e mondar o milho e a dar de comer ao tourinho, que era metade do patrão (que, ele, "mandjor da tropa", coitado, também lá andava a mourejar por terras de África na defesa da Pátria.)
Havia palpites, críticas, comentários, exclamações... sobre a quantidade e a qualidade do fogo de cada freguesia. E no final Paços de Gaiolo era o vencedor...
Alguém tinha que ser o vencedor, garantia o padre Agostinho, que no céu, meus filhos, a seleção sempre fora, desde os primórdios, mui apertada, e nem todos poderiam ficar à direita de Deus Pai, nem ter uma anjo à sua cabeceira. Havia filhos e enteados, o mundo já nascera assim, torto e aleijado, mas porquê não mo pergunteis, que eu não sou papa, nem bispo, apenas um humilde servidor, um pobre pároco de aldeia.
Era a vida que, afinal, na Páscoa, triunfava sobre a morte, naquelas terras de camponeses do vale do Sousa e do Tâmega, que chegaram a alimentar um milhão de portugueses durante séculos e a ajudar a dilatar a fé e o império, sem saber ler nem escrever, e muito menos o latinório aldrabado do padre Agostinho.
Na era da covid-19, deixou de haver Páscoa, compasso, fogo, forno. Só o fogo do inferno, que esse continuava a arder, por mor dos pecadores, para seu exemplo e temor.
Nem abraços nem chicorações, só quando muito "abracelos... Uma tristeza, as casas fechadas, mortos os velhos, cheios de mazelas os menos velhos, tristes e desamparadas as viúvas, desconsolados os órfãos, famílias de desvairadas gentes espalhadas pelas diásporas.
No passado, ao almoço, não podia faltar o arroz de forno, que, em cada ano que passava, estava sempre melhor do que o do ano anterior. Davam-se gabadelas às cozinheiras cuja arte e engenho a idade ia apurando.
Ou então era tudo devido simplesmente à saudade destes sabores da infância e da tradição. E a conversa girava, no fim do repasto, sobre o anho e o arroz dos idos anos em que a gente era canalha de pé descalço, no tempo em que se vendiam os ovos aos da cidade para comprar a sardinha para três. E o osso era disputado à mesa. Oh meu pai, chuche-o e dê-mo!
Depois até o raio da covid-19, diziam, tirava o olfacto e o paladar às cozinheiras...O tal segredo, o dedo pró cozinho!... E já o pito não era pito, era frango de aviário, desconsolado, diziam-os homens, matreiros e galhofeiros.
Podia chover, que em abril águas mil, mas a água que brotava das minas e da levada do Quartão, e que regava os campos de milho, não apagava o fogo da paixão da vida, nem estragava o gosto pelo folgar dos corpos, e o rebolar na cama de palha de centeio, o forno aceso, o folar para os afilhados, sua benção, padrinho!, o pão de ló dos Lenteirões, o doce da Teixeira, a aletria, os foguetes a estalar no ar, alto e longe, a caneca de porcelana, que luxo!, por onde se emborcava o vinho, verde tinto, da Carreira Chã, com o travo adstringente do jaqué.
Os parentes e os amigos, alguns vindo de longe, da terra dos mouros, o vinho verde novo que jorrava da pipa e alegrava os corações, a canalha numa correria para apanhar as canas dos foguetes...
E os cães a ladrar!...
Mas até os cães havia morrido. Tal como o padre Agostinho. E as velhas casas de granito se cobriram de musgo e as janelas de teias de aranha.
O compasso era tradição minhota e duriense, diziam-te. Tenderá a acabar, há muito profetizavam os sociólogos da desgraça e da mudança.
A sua origem remontaria à época dos jacobinos, mata-frades,
à desarmotização dos bens de mão-morta que não poupou os passais, provocando a pobreza do senhor abade, que, sendo filho de Deus, também tinha de comer... e "boer". E se ele comia e bebia, que nem um abade!... Bem pregava, afinal, frei Tomás, fazei o que ele diz, não o que ele faz.
O compasso pascal seria a forma expedita de compensar a perda de rendimentos do pároco. As parcas esmolas que as famílias punham no saco do compasso, no final da visita, revertiam originalmente para o pé-de-meia do padre...
Ah!, mas até os padres e as freiras morriam, em tempo de peste e de covid-19, lia-se na gazeta de Lisboa. E o teu vizinho da porta da frente, que vivia na Paris dos portugueses, coitado, também lá se foi, telefonou-te, chorosa, a viúva. E mais o fulano e o sicrano. E mais este e aquele outro.
Reuniam-se a desoras no Tasco do Alto, entrando furtivamente pela porta traseira. Para uma partida de dominó, um petisco e uns tintóis. Que um home dava em doido trancado em casa, ou a trabalhar sozinho no campo, dias e dias sem trocar uma palavra com ninguém, nem com a cara-metade, que só chorava e rezava por mor dos filhos, lá longe, pró Porto, Lisboa, Suíça.
Já nada era como dantes, desde que o mundo que tu conheceras, começara a soçobrar.
A visita pascal era um pretexto também para a afirmação social, o exibicionismo dos vizinhos e parentes mais ricos, alguns que haviam retornado de França, se não ricos, remediados, pensionistas, e que eram capazes de gastar uns bons contos de réis em foguetório...
Já não havia contos de réis, é verdade, nem lendas e narrativas de brasileiros que haviam feito fortuna no Novo Mundo.
Naquele ano da desgraça de 2020 restava-te a saudade, a ti e à famelga!... E as fotografias e os vídeos de antanho que se partilhava pelas redes sociais... Valeram-nos, ao menos, o Zoom e o Skype e outras plataformas que ajudaram a gente a iludir a solidão... em plena covid-19 que nos confinava e nos emboscava a todos.
Mas também valeu-nos a esperança de que, no fim, iríamos, coletivamente, de mãos juntas, triunfar sobre aquela maldita pandemia, como triunfámos, dolorosamente embora, sobre a a lepra, a varíola, a cólera, o tifo, a pneumónica...e a peste de que Deus nos livre!...
E como triunfámos e triunfaremos sobre todas as ditaduras impostas em nome de Deus, e do Diabo, pelos seus alegados representantes na terra.
© Luis Graça (2021). Revisto 17 de abril de 2025.
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Nota do editor:
Último poste da série > 8 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26665: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (38): Às vezes este país quase perfeito e sem mácula