Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Dezembro de 2015:
Queridos amigos,
Tinha para mim que o livro "Kaputt", de Curzio Mallaparte,
era a última palavra sobre os horrores da guerra. Mallaparte viaja por
pontos críticos, durante a II Guerra Mundial, presencia guerra na
Finlândia, URSS, em Itália, percorre países ocupados.
Buscando uma linguagem
neutra, magoa-nos até ao tutano no gueto de Varsóvia, nos pogrons na
Roménia, põe a falar pilotos soviéticos que julgam que foi a Finlândia que
agrediu a URSS, entre tantíssimas situações.
A questão nevrálgica da
"peregrinação" de Pedro Rosa Mendes é a guerra civil angolana, socorrendo-se
de uma linguagem sóbria, somos confrontados com a demência, a maldade pura,
a degradação ao extremo da condição humana, a quase impossibilidade da fé no
futuro, vale a pena ler e reler este documento primorosamente escrito,
falando por mim é o documento maior sobre os demónios à solta naquela guerra
civil de Angola que só deixou de existir quando acabou o confronto entre
superpotências.
Um abraço do
Mário
Baía dos Tigres, por Pedro Rosa Mendes:
uma obra-prima na descida aos infernos (2)
Beja Santos
Falamos repetidamente daqueles livros que nos exigem uma leitura compulsiva, a necessidade de nos grudarmos a uma prosa exigente, infatigável, com todas as cambiantes da amargura aos sentidos da sobrevivência. Pois bem,
“Baía dos Tigres”, por Pedro Rosa Mendes, Publicações Dom Quixote, é um diamante da literatura de viagens, às vezes sentimos a toada poderosa de um grande romance, mas o escritor na pele de um repórter não engana ninguém, meteu o prego a fundo na guerra civil de Angola, andará por outras paragens mas é nesta terra mártir que seremos induzidos, até à repugnância e ao sufoco, sobre os mais absurdos casos que imaginar se possa do teatro de horrores.
Estamos no Planalto, numa região controlada pela UNITA, somos brindados por prosa de primeiríssima água:
“Lutaram pela sua terra, muito e tanto, até fazerem dela uma terra de guerreiros, e de nenhum outro cultivo. Começaram então a nascer dela, homens com raízes aéreas, raízes da terra, até ao osso do caule, até à seiva do nervo. Raízes no lugar das pernas, férteis na terra que as mutilou.
Aparecem, altos, sem espessura, de dentro da neblina do Planalto, do interior do perfume fresco do eucalipto. É de manhã que saem. E vêm. Aparecem, testemunhando o pesadelo e o milagre, agarrados à silhueta das árvores, confundindo-se com elas, caminhando no alto das suas raízes-ossos-troncos-madeiras-andas-próteses: muletas: uma nova espécie, meio-homem, meio-planta, metade-vida e metade-fingida. Os vegetais da terra que se tornou esta.
É de manhã e é para mim que avançam. O cheiro das folhas pica as narinas: aproveito, choro e disfarço, sucumbo. A primeira árvore de madeira-carne alcançou o sítio de onde o choque não me deixa mexer. Aperto, nessas mãos mesmo, o tesouro vivo que lhe resta: as mãos”. E, mais adiante:
“Um ex-combatente com dupla amputação de pernas está erguido no alto das raízes que lhe enchem as calças. Um dos pés é um bocado de pneu, com a marca Michelin ainda visível no relevo do “peito”. Mostra-me as suas próteses com orgulho, porque eu não acreditava que as usasse: tinha-o visto chegar de bicicleta”.
Temos novas peripécias em terras do Galo Negro, já se saiu de Caiundo, segue-se um interrogatório burlesco feito por um administrador da UNITA, em Calai. Na continuação, ocorre uma reflexão ao escritor:
“Angola elaborou de forma perversa o conceito de que informação é poder. O que é visto por ser contado, o que é dito já não pode ser retirado. Para uma população em guerra, condenada a servir dois totalitarismos siameses, a informação pode regressar como arma nas mãos do inimigo”. E segue-se uma exposição espantosa sobre a cultura da mentira. A viagem tem altos e baixos, acidentes de percurso, entremeiam-se relatos pavorosos, histórias que até podiam ser pícaras, não tivessem como pano de fundo a destruição, a maldade mais velhaca, e por vezes ocorrem aparecer pontos de heroísmo, vale a pena ler e reler a odisseia de Daniel Libermann, um hino à tenacidade. Há histórias de gente muito antiga, descreve-se a pescaria do Mucuio, falemos então de peixe:
“Pode ser uma mulamba de espada, mulamba de corvina, mulamba de carapau. É a forma de abrir o peixe antes de mais. O peixe é aberto pelas costas, pela espinha, e geralmente tira-se a cabeça se é para mulamba de corvina ou de carapau. Depois faz-se uma moura muito leve, com pouco sal, de maneira a não ficar com muito sabor. Deixa-se algumas horas: põe-se a secar um ou dois dias, é rápido. Aqui comemos o peixe grelhado, que é o mufete – o carapau grelhado sem tirar as vísceras, vai para a brasa todo ele, completo. A cabeça é a melhor parte do peixe – o mesmo para o kalulu, com óleo de palma”.
Volta-se a cenários de destruição, estamos de novo no Cuíto:
“O Cuíto é uma vala comum. Há gente enterrada em todo o lado. No adro, na igreja, naqueles jardins, na avenida, nas casas, nos quintais, nos prédios (…) Disparava-se blindados com os canos na horizontal. Disparava-se de uma casa para a outra, a 20 metros do alvo. Tiro à vista, o ódio em cheio no branco dos olhos. Um oficial francês, em operações de desminagem e formação no Cuíto, contou-me que até aí, Julho de 1997, tinham encontrado 71 tipos diferentes de explosivos.
- Costumamos gozar e dizer que, com um pouco de trabalho, acabaremos por encontrar os 700 que faltam – existem cerca de 800 tipos de munições referenciadas em todo o mundo. Aqui a guerra foi diferente de todas as que conheço, Camboja, Afeganistão, Bósnia. Nesses sítios as munições estão dentro do convencional. Minas, aqui, são de todo o tipo. Não há sequer, minas artesanais. O material aqui é do mais sofisticado que há. Israelitas, sul-africanos, chineses, coreanos, franceses, russos, americanos, tudo. É uma espécie de universidade para nós. E ninguém ouviu falar do Cuíto.
As crianças aqui brincam com projéteis ar-terra, que têm um palmo e pouco de comprimento e lhes podem explodir nas mãos a qualquer momento porque não detonaram na queda. Uma ficou em bocados com uma coisa dessas há pouco tempo. Não sei como vão reconstruir isto”.
E a viagem prossegue até Bibala, no sopé da chela, depois Lobito. O viajante telefona para Lisboa, informam-no que morreu Al Berto. Temos mar e linha férrea, avistam-se desmobilizados, mutilados e desempregados. Temos seguidamente uma descrição em Lubumbashi, Congo, vive-se no caos, falam portugueses, contam histórias, andam tropas ruandesas por ali. Mais histórias desta vez em Elizabethville. E a trama regressa a Angola, a Caiundo, entram novas personagens, desta feita os sul-africanos como John Van Der Merwe, comandou os Flechas Negras que, juntamente com o batalhão Búfalo puseram em retirada as tropas de Agostinho Neto e Fidel Castro, do Cuando Cubango até ao Cuanza Norte, este soldado excecional veio da base ómega, Faixa de Caprivi, Sudeste Africano, é uma das histórias mais surpreendentes e galvanizantes deste livro. John Van Der Merwe confessa-se ao escritor:
“Não estou a dizer que fui um assassino: somos treinados para isso, faz parte da vida de um gajo. Fui um indivíduo que em combate carregou muitos homens neste ombro, pretos inimigos, para os salvar. Salvei muita gente. Nunca tive tendência para eliminar pessoas. E foi por isso que não aguentei muito mais tempo. Tenho passagens tristes. Mas matar por prazer não”.
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 20 de fevereiro de 2017 >
Guiné 61/74 - P17065: Notas de leitura (931): “Baía dos Tigres”, por Pedro Rosa Mendes, Publicações Dom Quixote, 1999 (1) (Mário Beja Santos)