segunda-feira, 11 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20963: FAP (115): O último ano do Fiat G-91 - Parte I (José Matos)



Fig. nº 1  – Recuperação do Tenente Miguel Pessoa. 

Crédito fotográfico – Capitão Delgadinho Rodrigues 







Fig. nº 2 – Destroços do Fiat G.91 5419 pilotado pelo Tenente-Coronel Almeida Brito. Crédito fotográfico: Roel Coutinho 




1. Mensagem de José Matos:

Data - sábado, 25/04, 14:20


Assunto - Fiat na Guiné

Olá, Luís.

Acabou de sair um artigo meu na Revista Militar sobre o último ano Fiat na Guiné. Foi um ano terrível e envio-te o PDF da revista e também o artigo em word para publicar no blogue. Agradecia que divulgasses dado a temática.

Este ano vai haver mais algumas novidades, pois está para breve a saída do meu livro sobre o Estado Novo e a África do Sul na Defesa da Guiné.

Ab, José Matos


O último ano do Fiat G.91 na Guiné 

por José Matos 
,
[Publicado originalmente na 
Revista Militar N.º 4 – abril 2020, pp. 395-414-
Cortesia do autor e editor]



José Matos [, foto à direita]: Investigador independente em História Militar, tem feito pesquisas sobre as operações da Força Aérea na Guerra Colonial portuguesa, principalmente na Guiné. É colaborador regular em revistas europeias de aviação militar e de temas navais. Colaborou nos livros “A Força Aérea no Fim do Império” (Lisboa, Âncora Editora, 2018) e "A Guerra e as Guerras Coloniais na África Subsariana" (Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2019).

É autor, com Luís Barroso, do livro, a sair brevemente, "Nos meandros da guerra: o Estado Novo e a África do Sul na defesa da Guiné" (Lisboa, Editora Caleidoscópio, 2020).

É membro da nossa Tabanca Grande desde 7 de setembro de 2015, tendo cerca de 3 dezenas e meia de referências no nosso blogue]



O último ano do Fiat G.91 na Guiné foi o mais difícil com a perda de cinco aviões, três deles abatidos por mísseis terra-ar SA-7 “Strela”.

O impacto desta nova arma na actividade aérea foi considerável, mas rapidamente a Força Aérea Portuguesa (FAP) adaptou-se à nova ameaça continuando a voar nos céus da Guiné. Os G.91 da Esquadra 121 desempenharam, nesse âmbito, um papel importante na resposta à guerrilha, sendo o principal vector de ataque e de apoio táctico às forças portuguesas nos meses derradeiros da guerra.

No dia 25 de Março de 1973, ao começo da tarde, o quartel de Guileje, no sul da Guiné, é flagelado por fogo de artilharia. O ataque é desencadeado em plena luz do dia para provocar a reacção da Força Aérea[1] e os militares no quartel pedem apoio aéreo a Bissalanca, onde estão sempre dois Fiat G.91 de prontidão.

Passado pouco tempo, um G.91 pilotado pelo Tenente Miguel Pessoa está na área de Guileje. Voando a baixa altitude, Pessoa procura vestígios do inimigo na zona de Gandembel, um pouco mais a norte de Guileje, mas subitamente, uma explosão faz o Fiat estremecer. O piloto tenta, desesperadamente, controlar a aeronave, mas sem sucesso. O motor está morto, as superfícies de comando não respondem, e o solo aproxima-se velozmente. Pessoa puxa a alça de ejecção sobre a cabeça e sofre o impacto da ejecção, que o lança para cima e para longe, abandonado o avião condenado, que explode com o impacto no solo.[2]
 

Contudo, ejectara-se já muito tarde. Demasiado baixo para que o pára-quedas se abrisse completamente, caiu com violência entre as árvores, acabando com uma perna partida. Ninguém sabe se está vivo ou morto, mas, ao final da tarde, consegue disparar um very-light que é visto pelo Tenente-Coronel Almeida Brito que participava com um Fiat, nas buscas. [Fig. nº 1, acima]

Na manhã seguinte, desloca de Bissau um grupo de pára-quedistas, em dois aviões Noratlas e um avião Dakota, para a Aldeia Formosa com o objectivo de resgatar o piloto. Os pára-quedistas são depois helicolocados na mata e rapidamente encontram vestígios do piloto. São depois secundados por um grupo de comandos africanos que acaba por encontrar Pessoa, sendo este levado para Guileje de helicóptero e depois para Bissau.[3] 

Na altura, ainda não o podia saber, mas fora a primeira vítima dos novos mísseis terra-ar SA-7 Strela 2, de fabrico soviético e recentemente adquiridos pelo PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde).

Três dias depois, a 28 de Março, outro Fiat, desta vez pilotado pelo Tenente-Coronel Almeida Brito é também abatido por um Strela, no sul da Guiné, provocando a morte do piloto [Fig. nº 2, acima]. 


Na manhã desse dia, o Centro de Operações da Base Aérea n.º 12 (BA12) intercepta uma mensagem proveniente da guerrilha que referia a presença de uma viatura na estrada de Ché Ché para Madina do Boé, no sul da Guiné, com uma individualidade importante do PAIGC. Dois G.91 em alerta na BA12 descolam e dirigem-se imediatamente para Ché Ché. A partir daí percorrem o trilho até Madina do Boé e continuam até próximo da base Kambera, já no território da Guiné-Conakry. Não tendo descoberto nada, os dois pilotos (Tenente-Coronel Almeida Brito e Capitão Pinto Ferreira) fazem o percurso inverso, a cerca de 500 pés de altitude. Na picada entre Gobije e Madina do Boé, a 3 km da fronteira, Almeida Brito dá conta a Pinto Ferreira de uma mata suspeita. Nesse mesmo instante, o avião de Brito explode no ar atingido por um SA-7. 


Um segundo míssil é disparado contra Pinto Ferreira, que faz uma manobra brusca, passando muito baixo sobre o terreno e, saindo assim, fora do alcance do míssil. Em seguida, sobe para os 10 mil pés para identificar o local do incidente e comunica à base o sucedido.[4] 


Além de Comandante do Grupo Operacional 1201 (GO1201), Brito era um oficial experiente e muito estimado pelos restantes pilotos. A sua morte provoca grande consternação em Bissalanca. Percebe-se depois que a mensagem interceptada era falsa e que se destinava apenas a atrair os aviões a uma armadilha. Com a morte de Brito, o comando do GO1201 passa para o Major Fernando Pedroso de Almeida.

O impacto do míssil na actividade aérea dos G.91 sente-se de imediato. O número de horas voadas pelos caças passa de 30 horas na última semana de Março para 22 horas na primeira semana de Abril e para apenas 9 horas na segunda semana desse mês, quando a ameaça do míssil ganha contornos dramáticos com o abate de 2 aviões Dornier DO 27 e um T-6. 
Porém, na semana seguinte, volta a aumentar para 22 horas e atinge novamente as 30 horas, na última semana de Abril, o que mostra que os “Tigres” se adaptaram à nova ameaça.[5] 


No entanto, a perda de dois jactos afecta também o quantitativo atribuído à BA12. De 11 aviões disponíveis, os “Tigres” passam para 9. A situação leva, em Junho, a que sejam atribuídos mais 2 Fiat à ZACVG (Zona Aérea de Cabo Verde e Guiné) para compensar as perdas de Março, sendo o 5428, acabado sair de IRAN, cedido pela Base de Monte Real (BA5) e o 5434, ainda em IRAN, retirado da reserva nas OGMA (Oficinas Gerais de Material Aeronáutico).[6] Os 2 aviões chegam à BA12 em meados de Julho.[7] 



Novas tácticas

O aparecimento do Strela leva a Força Aérea, logo em Abril, a informar-se sobre as suas capacidades e limitações de forma a adoptar contramedidas. Em Lisboa, a Direcção Geral de Segurança (DGS) obtém informação sobre o míssil através dos Serviços Secretos Alemães (BND), informação que depois é transmitida ao Secretariado-Geral da Defesa Nacional (SGDN) e às chefias militares, nos três cenários de guerra africanos.

A informação recolhida junto do BND indica que o SA-7 não tem capacidade de actuação acima dos 1500 metros de altitude (5000 pés) nem abaixo dos 50/60 metros (160/190 pés) - embora informações recolhidas mais tarde mostrem que o SA-7 podia actuar até aos 8000 pés (2400 metros)[8] - e que é possível evitar o míssil por meio de manobras evasivas e da adopção de altitudes de segurança. 


A informação da DGS refere também as características positivas e negativas do míssil salientando, nas positivas, o manuseamento e utilização fácil, além da alta velocidade e mobilidade da arma. Quanto às negativas, era referido que só são possíveis tiros de perseguição, e a impossibilidade de utilização em todas as condições meteorológicas, o alcance efectivo relativamente pequeno, os reflexos térmicos provenientes do solo que podiam confundir o sensor de infravermelhos, a fácil identificação pelo rasto de fumo e ainda o baixo peso da ogiva (1kg), que exigia o impacto directo do míssil para a destruição do alvo. [9]

Munidos desta informação, os “Tigres” passam então a usar novas tácticas de aproximação ao alvo e fuga, de forma a evitar os mísseis. As missões de ataque ao solo passam a ser feitas com altitudes de entrada e saída mais elevadas. 


Nas missões ATIP (Ataque Independente Planeado), o início da picada começa nos 10 000 pés com a largada de bombas a 6000 pés, sendo que o ponto mais baixo da trajectória não deveria situar-se abaixo dos 2500 pés. Nas missões ATAP (Ataque de Apoio Próximo), os Fiat podiam levar apenas bombas tendo que executar as missões nas mesmas condições de ATIP.[10] 


Além disso, a actuação em parelha passa a ser obrigatória, pois permite que um dos caças fique em posição de vigilância fora do alcance do míssil, perscrutando o solo e o espaço aéreo em torno do outro jacto, que efectua o ataque, com o intuito de detectar disparos do míssil e lançar, na frequência de intercomunicação, a mensagem de alerta de míssil. 


Relativamente ao disparo do SA-7 podia ser detectado tanto pela assinatura que deixava no terreno como também no ar. No terreno, a assinatura era caracterizada pelo aparecimento repentino duma bola de fumo muito branco, resultante da ignição e expulsão projéctil do tubo de disparo. No ar, a assinatura era formada pelo rasto de fumo da carga impulsora de combustível sólido, indiciando a trajectória do projéctil. Desta forma, quando um piloto visse um Strela a aproximar-se podia sair fora do alcance relativamente estreito do detector de infravermelhos através de uma rápida mudança de altitude e direcção.


As manobras evasivas 

A eficiência destas manobras é confirmada mais tarde, em Outubro de 1973, quando um atirador de mísseis do PAIGC, Armando Baldé, se entrega na guarnição de Tite às forças portuguesas. O ex-guerrilheiro revela então que os insucessos nos lançamentos do míssil contra o G.91 se deviam sobretudo à dificuldade do Strela em adquirir o alvo durante a picada do avião e também devido ao facto dos pilotos saírem dos passes de bombardeamento ou tiro, numa manobra de volta muito apertada, que superava as capacidades de manobra do míssil. [11] 

Esta táctica exigia, contudo, frieza e presença de espírito da parte do piloto, para executar a manobra mantendo o mais correcto equilíbrio entre a aceleração e a ascensão. Se apertasse demasiado (na gíria aeronáutica “se aplicasse muitos Gs”) o avião perdia velocidade e razão de subida, muito rapidamente. A geometria da volta passava a ser rectilínea quando olhada do solo. Caso enfrentasse um atirador de Strela experiente e calmo, podia ser abatido se o atirador atrasasse o disparo do míssil, na expectativa de que o piloto cometesse o erro descrito.

Outra excelente manobra de evasão era metralhar a picar e sair dos passes de tiro a descer em volta até ao nível um pouco acima do topo das árvores. Com esta manobra expunha-se muito menos a fonte de emissão de infravermelhos do avião, o cone de escape, à leitura do sensor de infravermelhos do míssil, comparativamente ao que acontecia quando se faziam saídas de ataque a subir, onde essa exposição era maior. A possibilidade de sobrevivência aumentava muito, conferida tanto pela velocidade como pela protecção oferecida pela baixa altitude, onde o calor irradiado pelo solo suplantava o emitido pelo avião. 


Este procedimento tinha, todavia, o problema da última aeronave a sair do passe de tiro não ter a vigilância e o aviso do outro avião, quanto a um eventual disparo do míssil. Desta forma, quando praticada, esta manobra exigia um cuidadoso planeamento da saída do último caça do passe de tiro. Com o decorrer do tempo, alguns pilotos praticaram este procedimento.[12]

 
As grandes ofensivas da guerrilha 

Sabe-se hoje que as primeiras acções com o míssil visavam sobretudo preparar o terreno para duas grandes ofensivas da guerrilha contra duas guarnições de fronteira: Guidage e Guileje.[13] [Fig. nº 3]

Em primeiro lugar, os guerrilheiros atacam e isolam o quartel de Guidage, perto da fronteira com o Senegal. O primeiro bombardeamento a Guidage acontece a 6 de Abril e aproveitando a evacuação de um ferido em DO-27, os guerrilheiros abatem dois aviões destes, além de um T-6, que participa, mais tarde, na operação de busca dos aviões abatidos.[14] O quartel fica praticamente isolado durante todo o mês de Maio. As vias de comunicação são minadas e as colunas de reabastecimento caem várias vezes em emboscadas. 


A situação leva as forças portuguesas a montar uma operação em grande escala (Operação Ametista Real), contra a base de Kumbamori, no Senegal, para a qual é mobilizada uma força de 450 comandos com o apoio de meios aéreos. A Esquadra 121 participa na operação com seis aviões Fiat, cada um equipado com duas bombas de 750 libras. Logo ao começo da manhã do dia 20 de Maio, os “Tigres” levantam voo de Bissalanca, mas um dos aviões pilotado pelo Capitão Pinto Ferreira é obrigado a regressar devido a uma colisão com um pássaro, que lhe danifica o motor. Para aterrar em segurança, o piloto larga as bombas com as cavilhas de segurança, no rio Geba. 


Entretanto, os outros cinco jactos entram em acção e bombardeiam a zona onde se supunha estar situada a base.[15] As bombas atingem alguns paióis de munições provocando rebentamentos violentos.[16] A base é depois atacada pelos comandos, que se envolvem num longo combate com os guerrilheiros. Só ao início da tarde, após duros combates, os comandos retiram da zona com o apoio da Força Aérea. A manobra de retirada é lenta e difícil e é pedido apoio de fogo aéreo e os Fiat, que tinham ficado em alerta na BA12, voltam a descolar rumo a Kumbamori para apoiar a retirada.[17] Nenhum avião é atingido, embora existissem na zona mísseis Strela. 






Fig. nº 3 – As grandes ofensivas da guerrilha na Guiné em 1973. Infografia: cortesia de Paulo Alegria.



Guidage resiste com grande custo ao cerco da guerrilha, sendo visitada, a 13 de Maio, pelo General Spínola, que desceu de helicóptero na povoação sitiada.[18] Spínola incita os militares a resistirem e sob o comando do Tenente-Coronel Correia de Campos, a guarnição aguenta o cerco até ao final de Maio, nunca abandonando a posição.[19] 

Depois de Guidage é a vez de Guileje, no sul da Guiné. Este quartel ficava situado numa zona vital da rota de reabastecimento da guerrilha e o seu abandono seria uma vitória importante para o PAIGC.

A guarnição de Guileje é sujeita a violentas flagelações, entre os dias 18 e 21 de Maio. Nesta última data, o quartel é bombardeado com intensidade e fica sem comunicações rádio com Bissau e com as Unidades mais próximas. 


Nessa altura, a 22 de Maio, o comandante da guarnição, Major Coutinho e Lima, decide abandonar Guileje com tudo o que lá havia, permitindo a entrada do PAIGC no quartel, três dias depois, sem qualquer resistência. A guerrilha permanece no quartel apenas algumas horas retirando de seguida. Os militares e a população de Guileje refugiam-se em Gadamael Porto, mas os guerrilheiros, motivados pela vitória alcançada, atacam de seguida Gadamael. 


Os primeiros bombardeamentos começam no dia 31 de Maio e prolongam-se pelos dias seguintes de forma intensa provocando grandes estragos no quartel e também a fuga de muitos militares.[20] Os Fiat actuam logo nos primeiros dias, bombardeando as posições de artilharia do PAIGC, na vizinha República da Guiné.[21] 


Quanto a Gadamael, resiste graças à intervenção de duas companhias de tropas paraquedistas enviadas para a defesa do quartel.[22] 
Depois da perda de Guileje, o comando militar em Bissau, não podia perder mais nenhum quartel no sul da Guiné, daí o empenho na defesa de Gadamael. 

Como se pode ver, mesmo no pico da crise militar, os Fiat de Bissalanca continuam a voar actuando tanto a norte na zona de Guidage e Binta, como a sul em Guileje e Gadamael, sendo flagelados algumas vezes quer por mísseis terra-ar, mas sem consequências,[23] quer pelas armas antiaéreas de Kandiafara nos ataques que fazem a esta base da guerrilha no país vizinho para aliviar a pressão sobre Gadamael. [24]

O número de horas de voo dos “Tigres” [Fig. nº 4] sobe assim de 83 horas em Abril para 128 horas em Maio. Como se pode ver pelo gráfico seguinte, a exploração operacional dos G.91 aumenta a partir de Agosto/Setembro mantendo uma média mensal de 150 horas até ao final do ano. A média dos 10 meses é, no entanto, de 130 horas mensais.[25] [Fig. nº 5]




Fig. nº 4 - Linha da frente em Bissalanca. 
Crédito fotográfico: Alberto Cruz





Fig. nº 5 - Exploração operacional: horas de voo (1973)


 

 A saída de Spínola 

A difícil situação militar leva Spínola a escrever, a 22 de Maio de 73, ao Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas (CEMGFA), General Costa Gomes, e ao ministro do Ultramar, Silva Cunha, pedindo um reforço de meios para a Guiné “não tanto em ordem à obtenção do sucesso militar, mas tão-somente à prevenção de um colapso a prazo mais dilatado.” [26] 

Spínola alerta Costa Gomes e Silva Cunha para a possibilidade de um colapso militar na Guiné, o que provoca grande preocupação em Lisboa. É então decidido enviar o CEMGFA à província para se inteirar da situação.[27] Costa Gomes desloca-se à Guiné a 6 de Junho e fala com os diversos sectores militares para diagnosticar a situação. 


No fim da visita, a 8 de Junho, preside a uma reunião no quartel-general em Bissau, com a presença de Spínola e dos principais comandantes militares no território. Durante a reunião, os oficiais presentes, defendem que a situação militar exige um retraimento do dispositivo que evite o aniquilamento das guarnições de fronteira e concentre meios na zona mais interior da província de forma a “ganhar tempo e consolidar um reduto final que “in extremis” ainda possa permitir uma solução política do conflito.”[28] 


Outra preocupação manifestada na reunião é a possibilidade da guerrilha usar meios aéreos e Spínola alerta para a “extrema gravidade que se revestirá um ataque aéreo a Bissau, dada a vulnerabilidade dos órgãos essenciais de apoio logístico.”[29] 


Face a esta análise, Spínola salienta a necessidade urgente de novos meios de combate na Guiné capazes de contrabalançar o crescente poderio militar do PAIGC. Para a Força Aérea são pedidos 8 aviões de transporte Skyvan, 12 caças Mirage, 5 helicópteros e 1 radar de detecção. A este pedido acresce ainda mais homens e material para o Exército, além de lanchas para a Marinha. No fecho da reunião, Costa Gomes refere que não é possível, por absoluta falta de meios, reforçar o teatro de operações com os pedidos feitos por Spínola, mas concorda com a remodelação do dispositivo no sentido da retracção das unidades de fronteira.[30]

A impossibilidade de fornecer novos meios de combate e a alteração no dispositivo levam Spínola a escrever uma nova carta ao ministro do Ultramar manifestando a sua discordância quanto à retracção do dispositivo militar e ao abandono de certas áreas geográficas junto às fronteiras deixando à sua sorte as populações aí residentes, solução com a qual não se identificava, embora a considerasse necessária perante a falta de meios.[31] Desiludido com a política seguida pelo Governo, Spínola terminava a carta pedindo a sua substituição, o que só aconteceria em Setembro, com a chegada à Guiné, do General Bettencourt Rodrigues.

É já com Bettencourt Rodrigues que as forças portuguesas na província recebem algum reforço militar em homens, material AA de 94 mm (obsoleto como arma antiaérea) e um navio patrulha, mas nada que permita aumentar substancialmente o potencial de combate na Guiné.[32] 


A 24 de Setembro, numa cerimónia na região do  Boé, o PAIGC proclama, perante um grande número de convidados estrangeiros, a independência da Guiné-Bissau, mas esta nova situação não tem impacto no desenrolar da guerra.

A FAP tenta recuperar a iniciativa aumentando as missões de ataque assim como o espectro de actuação das aeronaves empenhadas. Além das missões diurnas, a Força Aérea começa também a desenvolver missões nocturnas usando para esse efeito, o G.91 e um C-47 adaptado a missões de bombardeamento.
 

(Continua)

[Revisão / fixação de texto para efeitos de publicação no blogue: LG}
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Referências:

[1] Hernández, Humberto Trujillo, El Grito del Baobab, Editorial de Ciencias Sociales, Havana, 2008, p.114.
 

[2] Pessoa, Miguel, Um Fiat Abatido in a Guerra de África de José Freire Antunes, Volume 2, Círculo de Leitores, 1995, pp. 987-990.
 

[3] Rebocho, Manuel Godinho, Elites Militares e a Guerra de África, Roma Editora, 2009, p. 306
 

[4] Estado Maior da Força Aérea, Processo n.º 1242 de Averiguações por Acidente em Serviço, de José Fernando de Almeida Brito, Bissalanca, 3 de Abril de 1973, Serviço de Documentação da Força Aérea/Arquivo Histórico (SDFA/AH).

[5] Análise dos SITREPS Circunstanciados n.º 13, 14, 15, 16 e 17/73 do COMZAVERDEGUINÉ, Arquivo da Defesa Nacional (ADN) /F2/SSR.002/87.

[6] Informação nº 198 da 3ª Repartição do Estado-Maior da Força Aérea, Assunto: Atribuição de Fiats à ZACVG, 6 de Junho de 1973, SDFA/AH-SEA/Guiné 1964-1974/Fiat Processo 430.121.

[7] Análise dos SITREPS Circunstanciados n.º 28 e 29/73 do COMZAVERDEGUINÉ, ADN F2/SSR.002/87.

[8] Relatório imediato da Delegação em Moçambique da DGS, Assunto: Míssil solo-ar Strela 2, 3 de Novembro de 1973, ADN/F3/1/1/1.

[9] Informação Suplementar do Secretariado Geral da Defesa Nacional, Assunto: União Soviética: Míssil Terra-Ar individual GRAIL (SA-7), Fonte: DGS, 9 de Abril de 1973, Lisboa, ADN SGDN/5681/7.

[10] Directiva 20/73 do Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné, Bissau, 29 de Maio de 1973, Arquivo Histórico-Militar AHM/DIV/2/4/228/2.

[11] Fraga, Luís Alves, A Força Aérea na Guerra de África (1961-1974), Editora Prefácio, Lisboa, 2004, p. 113 e Relatório Imediato nº 5641/73/DI/3/SC da DGS sobre o míssil solo-ar Strella-2, 31 de Outubro de 1973, ADN/F3/1/1/1.

[12] Informação prestada ao autor pelo General Fernando de Jesus Vasquez.

[13] Calheiros, José Moura, A Última Missão, Caminhos Romanos, Porto, 2010, p. 634.

[14] SITREP Circunstanciado n.º 14/73 do COMZAVERDEGUINÉ, Bissau, ADN/F2/16/87 e José Moura Calheiros, op., cit. p. 439.

[15] Catarino, Manuel, Operação Ametista Real in As Grandes Operações da Guerra Colonial, Volume 10, Presselivre, Imprensa Livre SA, Lisboa, 2010, pp. 47-52 e José Moura Calheiros, op., cit. p. 433.

[16] Relatório da Operação Ametista Real, Bissau, 26 de Julho de 1973, Arquivo Histórico Militar AHM/DIV/2/4/133/2.

[17] Catarino, op., cit. p. 54.

[18] Entrevista de António Spínola a Manuel Bernardo in Marcelo e Spínola: A Ruptura – As Forças Armadas e a Imprensa na Queda do Estado Novo, 1973-1974, 3ª Edição, Edium Editores, Porto, 2011, p. 209.

[19] Calheiros, op., cit. pp. 437-463.

[20] Calheiros, op., cit. pp. 516-521.

[21] Informação prestada ao autor pelo TGen. Martins de Matos.

[22] Calheiros, op., cit. pp. 513-545.

[23] Análise dos SITREPS Circunstanciados n.º 19, 20, 21, 22, 23, 24 e 25/73 do COMZAVERDEGUINÉ, Bissau, ADN/F2/16/87.
 

[24] Calheiros, op. cit., p. 543.

[25] SITREPS circunstanciados do COMZAVERDEGUINÉ, ADN/F2/SSR.002/87 e 88.

[26] Spínola, António, País Sem Rumo, Editorial SCIRE, 1978, p. 56.

[27] Cunha, Silva, O Ultramar, a Nação e o 25 de Abril, Atlântida Editora, Coimbra, 1977, p. 53.

[28] Acta da reunião de Comandos de 8/6/73, Secretariado-Geral da Defesa Nacional, Processo n.º 2202, Pasta A, ADN F3/17/34/4.

[29] Ibidem.

[30] Ibidem.

[31] Spínola, op., cit. pp. 60-62.

[32] Estudo do CCFAG sobre a área do Boé, Secretariado-Geral da Defesa Nacional, Processo n.º 2202, Pasta A, ADN F3/17/34/4.

[33] Informação prestada ao autor pelo General Fernando de Jesus Vasquez.

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Nota do editor:

Último poste da série > 7 de dezembro de  2019 > Guiné 61/74 - P20503: FAP (114): O helicóptero Alouette II

Guiné 61/74 - P20962: (In)citações (161): Homenagem ao ex-alf mil capelão, Arsénio Puim, CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), no seu 84º aniversário - Parte VI (b): Muita saúde e longa vida, Arsénio Puim, porque tu mereces tudo! (Luís Graça)


Lisboa > 24 de Maio de 2009 > O Arsénio Puim, na casa dos seus filhos, estudantes universitários, à conversa com uma antiga paroquiana e amiga do Padre Mário de Oliveira (também conhecido por Padre Mário da Lixa), a Maria Alice Carneiro,  esposa do Luís Graça. O Padre Mário de Oliveira, depois de vir da Guiné, foi paroquiar a freguesia de Paredes de Viadores, Marco de Canaveses, em 1968. A amizade da nossa grã-tabanqueira Alice Carneiro vem, desse tempo.


Durante a guerra colonial, foram seguramente os dois casos mais conhecidos, pelo menos públicos e notórios, de conflito de ruptura, por razões de consciência, de capelães militares com Exército.

Em Maio de 1971, "por volta do 13 de Maio, talvez antes, a 10, 11 ou 12", o Alf Mil Capelão da CCS / BART 2717 (Bambadinca, 1970/72) foi intimado a comparecer em Bissau para receber a guia de marcha, de volta à sua terra, por ter sido considerado uma figura indesejável no CTIG... 

O seu quarto (que ele partilhava com o alf mil médico Mário Gonçalves Ferreira) e os seus objectos pessoais foram revistados, não por agentes da PIDE/DGS, mas por dois oficiais superiores do comando do batalhão.... O seu diário foi, abusiva e ilegalmente confiscado...

Por sua vez, o Padre Mário de Oliveira, da diocese do Porto, foi capelão militar do BCAÇ 1912 (Mansoa, 1967/69). tendo sido expulso em Março de 1968, menos de cinco depois da sua chegada ao CTIG, uma história já aqui contada em 2006 (**)...



Foto (e legenda): © Luís Graça (2009). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]






Viseu > 26 de Abril de 2008 > 2º Convívio do pessoal da CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) e unidades adidas > O Jorge Cabral, o segundo a contra da esquerda, "entre um Psiquiatra (Marques Vilar) e um Cardiologista (Mário Gonçalves Ferreira, autor do romance 'Tempestade em Bissau0)"...  Diz o Jorge Cabral que ambos os médicos "me visitaram em Missirá, quando eu comandava o Pel Caç Nat 63, tendo o Mário, passado lá o Natal de 70, com o Padre Puim" [Não foi o Natal, foi o Fim de Ano, emenda o Puim, que apontava tudo no seu famoso caderninho ].. Os dois médicos foram igualmente companheiros de quarto do capelão. O Mário Gonçalves Ferreira substituiu, em março de 1971, o Mário Gonçalves Ferreira.

Foto (e legenda): © Jorge Cabral (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Muita saúde longa vida, Arsénio Puim,
porque tu mereces tudo! (2ª e última parte)

por Luís Graça



(8) O que ele não esqueceria era, afinal, 
o lema do batalhão, “Pela Guiné e suas gentes”… 
E foi o lema do seu batalhão que o tramou, 
a sua interpretação do seu significado… 


Na célebre homilia em Viana do Castelo (que, de resto, está publicada na história da unidade), a par do discurso patrioteiro, chapa um, do comandante do batalhão, ele realçava “ duas ideias principais que a Missa, como ato de culto ao Pai da humanidade e de comunhão da Palavra e do Pão, nos deveria inspirar e consolidar: (i) por um lado, o espírito de comunidade que deveria imperar no Batalhão 2917 ao serviço das terras da Guiné, onde íamos viver; (ii) e, por outro, os valores humanos e cristãos que devem ser apanágio de todos os homens de boa vontade em quaisquer circunstâncias”.

Na Guiné, ele vai recusar usar armas... De facto, não nunca teve G3 distribuída. Quando chegaram a Bissau, e houve distribuição do armamento, no Depósito de Adidos, em Brá, antes da partida em LDG para o Xime, ele esteve na fila, como toda a gente, mas, chegada a sua vez, disse delicadamente, ao segundo comandante que dispensava a arma... nem sequer saberia usá-la...

A presumível antipatia, pelo capelão, alimentada por esse major  - de resto, um professor da Academia Militar, com tiques prussianos, que nos obrigava a bater a pala, em plena parada de Bambadinca, como se fôssemos vulgares instruendos, a nós, operacionais da CCAÇ 12, já com mais de um ano de velhice, muito sangue, suor e lágrimas na Guiné! - já devia vir de longe, talvez da primeira homilia, em Viana do Castelo, aquando da formação do batalhão…

Perante o insólito desta cena, o major ter-lhe-á perguntado, diretamente, se ele não era "testemunha de Jeová" (Recorde-se que eram, na época, perseguidos por serem objetores de consciência). Provocação deliberada ? Piada de caserna ? Brincadeira de mau gosto?
- Não, meu comandante, sou um padre católico...

Esta frontalidade, que nada tinha de insolência, vai-lhe sair cara… ao ponto de um dia o mesmo oficial superior lhe perguntar, “à laia de graça”,  se tinha um pacto com os “turras”, dada a estranha coincidência de alguns ataques do PAIGC ocorrerem imediatamente a seguir à sua saída de um aquartelamento ou destacamento…


(9) Dizem que afinal o que tramou foram 
as suas célebres homilias da paz em tempo de guerra… 
Ou, nas suas próprias, o seu “pacto com Deus”… 
Terão ficado no ouvido de alguns zelotas as palavras de paz 
(, que só poderiam ser “dissolventes”, em tempo de guerra…) proferidas na capela de Bambadinca dia 1 de Janeiro de 1971… 
Alguém ia tomando boa nota… Mas haveria 
ainda mais “homilias da paz”… 
Foi, ao que parece, a  da Abril ou Maio, 
a famosa homilia de Abril ou Maio, 
que entornou o copo...

Eu já não já estava na Guiné, tinha regressado a casa em meados de Março de 1971... A CCAÇ 12, agora com novos “tugas”, periquitos a enquadrar os soldados africanos, juntamente com a subunidade de quadrícula do Xime (CART 2715), tinha feito prisioneiros, no região do Xime, possivelmente na zona do Poindon / Ponta do Inglês, como diz explicitamente o Carlos Rebelo, nos seus versos sobre o Romance do Padre Puim… Era população civil, incluindo mulheres e crianças, que viviam sob controlo do PAIGC, em condições miseráveis, diga-se em abono da verdade, esfarrapados, doentes, subnutridos…

Uma das mulheres tinha acabado de dar à luz, três dias antes da operação. Eram balantas, possivelmente oriundos de Samba Silate, destruída e abandonada no início do guerra, um dos mais tristes símbolos da guerra na leste. Foram levadas para Bambadinca. O grupo ficou detido numa espécie de galinheiro que havia perto da escola, que continuava a ser dirigida pela Profª Violete, cabo-verdiana, que tinha, lá em casa, a viver consigo, um puto, o Alfredo, de 15 anos, que irá mais tarde ser mencionado na ficha da PIDE/DGS do capelão, por alegadamente ser do PAIGC ou possível informador do PAIGC...

Era nesse galinheiro, na ausência de uma verdadeira prisão, que ficavam os prisioneiros, em trânsito para Bafatá, ou para Bissau (tratando-se e guerrilheiros: quanto aos civis, nem sempre era fácil a solução da integração nas tabancas balantas da região - basicamente, Nhabijões, Mero, Santa Helena, Fá Balanta- , havendo crianças já nascidas no mato, e que nos olhavam aterrorizadas, quando o roncar das nossas GMC do tempo da guerra da Coreia...).

Bom, resumindo, parece que a CCS do BART 2917 não fornecia comida aos prisioneiros, maioritariamente mulheres e crianças. Ficaram à mercê da caridade da população local, de Bambadinca e Bambadincazinha, entre a qual havia simpatizantes do PAIGC, ou gente da mesma etnia...

O Puim, inteirado da situação, condoeu-se daquela gente e começou a visitá-los. Levava leite às crianças. E protestou contra aquela situação de injustiça. Era, de resto, um homem que não se calava, como não se calou quando o ex-furriel ‘comando’ João Uloma, da 1ª Companhia de Comandos Africanos, se deixou fotografar, com um cabeça cortada, na parada de Bambadinca... Perguntou o Puim, já não sabe a quem (possivelmente, ao captão Barbosa Henriques, instrutor, ou ao major Leal de Almeida, supervisor) se aquilo era digno de um exército civilizado... Se bem me lembro, esta cena passa-se em outubro de 1970, depois de uma operação a norte do Enxalé, e antes da Operação  Mar Verde (invasão de Conacri, 22/11/1970)...

Através de um intérprete, um polícia administrativo, as mulheres diziam que o Puim era "manga de bom pessoal", mesmo sem saberem qual era a sua função ou o seu papel naquela guerra... Seria, de resto, difícil explicar-lhes o que era um capelão e para que servia... Para elas, era apenas um tuga bom... Um “padre-capilon”, como diziam as lavadeiras de Bambadinca… 


(10) Numa das suas homilias, num domingo de Abril ou Maio, 
o Puim abordou este tema, doloroso, para ele... 
O tratamento dos prisioneiros nem sequer estava de acordo 
com a política, superiormente definida por Spínola, e consubstanciada no slogan “Por uma Guiné Melhor”... 

Terá sido a partir daqui que ele foi denunciado, possivelmente não já pela primeira vez, e que em Maio de 1971 surge uma famigerada "ordem de Bissau" (que ele nunca leu) para ele se apresentar no "Vaticano" (as instalações dos capelães militares em Bissau)...
O papel de Bissau (não se sabe por quem era assinado...), com a sua ordem de expulsão, estava nas mãos do segundo comandante do batalhão…

Nas conversas que tive  com o Puim, ele  nunca referiu a presença de nenhum agente da PIDE/DGS... Afirmava categoricamemente que quem passou a revista ao seu quarto (de resto, partilhado pelo alferes miliciano médico Vilar), quem mexeu nos seus objetos pessoais, na mala, e quem confiscou o seu diário (, que só lhe será devolvido, já depois do 25 de Abril, com uma única folha rasgada…)  foi o 2º comandante.

De qualquer modo, burocrática, meticulosa, ominipresente PIDE/DGS averbou esta cena no ficha do Puim... O que sugere, no mínimo, alguma promiscuidade entre a PIDE/DGS, a hierarquia militar... e até o “chefe do Vaticano” (, na gíria, era a sede da capelania militar, em Bissau).


(ii) Puim considerava-se duplamente maltrado 
pela instituição militar e pela hierarquia religiosa. 
À data era capelão-mor, no CTIG, o Padre Gamboa   
que tinha o posto de major, coordenando 
e supervisionando  todo o trabalho de capelania 
(Vivia, em instalações próprias, em Bissau, 
conhecidas por “Vaticano”).

Em Fevereiro de 1971, o Puim ainda tinha participado, em Bolama, num retiro espiritual, com os demais capelães da Guiné, dirigido pelo major capelão Gamboa. Houve discussão acesa, foi discutido o papel dos capelães na guerra colonial, a posição da Igreja, etc.

Admito que a PIDE/DGS (, com delegação em Bafatá e olhos e ouvidos em Bambadinca. ) estivesse por detrás de tudo isto, ou pelo menos acompanhasse e alimentasse o “processo” do incómodo capelão... Mas como o Puim era um oficial miliciano e ainda por cima capelão, é natural que Bissau tenha dado ordem para ser a hierarquia militar a encarregar-se do caso... e não armar escândalo. Afinal, os tempos já eram outros... ou ainda não. Spínola passa a ter, a partir de 13 de julho de 1971,  a PIDE/DGS ao seu serviço, ou pelo menos sobre a sua tutela e proteção, com a nomeação do inspector Fragoso Allas para chefiar a “corporação” em Bissau.


Vaana do Castelo, 16 de maio de 2009 >
Convívio do pessoal da CCS / BART 2917
(Bambadinca, , 1970/72) > Nas foto, da esquerda
para a dieeita, Benjamim Durães, Arséio Puim
e Jorge Cabral.

Foto: Benjamim Durães (2009)

O Arsénio diz-me que foi sozinho para a aeronave que o esperava, na pista... Sem escolta. Sem alarido. Sem despedida. Sem lágrimas... Mas com a dor na alma, com revolta, com indignação. Os únicos que assistiram a esta cena, para além dos dois majores do comando do batalhão, terão sido o alf mil Abílio Machado e o sacristão, o 1º cabo Teixeira...


(12) O nosso camarada ainda teve uma semana em Bissau, 
a aguardar transporte, e outra semana em Lisboa, 
até ser reenviado para os Açores... 


Em Bissau, foi recebido por uma alta patente militar (que ele não consegue identificar, mas que até com ele um comportamento civilizado) bem como pelo seu superior hierárquico, o major capelão Gamboa... 

Em contrapartida, os amigos e camaradas de Bambadinca que na altura estavam de passagem em Bissau, fizeram-lhe um jantar de despedida, onde também esteve o 1º sargento Brito, já falecido… Não falou sequer com o seu bispo, mas voltou a paroquiar na sua Ilha, Santa Maria...

Mais tarde, quis fazer a experiência de padre operário, que estava na moda, na sequência do Concílio Vaticano II... Tirou o Curso de Enfermagem Geral na Escola de Enfermagem de Ponta Delgada, ao mesmo tempo que era pároco na freguesia de Santa Bárbara do Monte, da Ouvidoria das Capelas. 

Iria perceber, mais tarde, que as duas funções eram incompatíveis, ser enfermeiro e ser padre... Optou por ser enfereiro a temo inteiro e ser dispensado da condição sacerdotal pelo papa Paulo VI. Acabou por se enamorar de uma jovem enfermeira, mais nova, com quem viria a casar, e que é hoje a mãe dos seus dois filhos. O casal passou a viver definitivamente em Ponta Delgada. 

Como enfermeiro, trabalhou nos Centros de Saúde de Vila do Porto e de Vila Franca do Campo, durante 19 anos. Está aposentado desde 1996. Foi sacerdote durante 16 anos. Foi co-fundador e primeiro diretor, em 1977, de “O Baluarte de Santa Maria”. E continua a colaborar no centenário jornal de inspiração cristã, “A Crença” ser, propriedade da Matriz de Vila Franca do Campo, a cuja paróquia pertence. 

Em entrevista ao "Correio dos Açores", de 18/2/2018, confessa que viveu com intenso júbilo dois grandes acontecimentos históricos, o Concílio Vaticano II e o 25 de Abril; "Exerci a função de pároco durante 12 anos, em Santa Maria e em São Miguel, num período histórico e muito rico, marcado por dois grandes acontecimentos do século - o Concílio Vaticano II e a Revolução de 25 de Abril. Vivi entusiasticamente tanto o espírito de renovação da Igreja como a democratização política e social que caracterizou uma e outra efeméride."





(13) Não voltei a vê-lo mais, trocámos mails, 
publiquei lhe as suas memórias… Mas em maio de 2009, 
pareceu-me um homem sereno, de bem com a vida, 
orgulhoso dos seus filhos, um pai extremoso e dedicado, 
e ainda hoje um cidadão com sentido de missão 
e com os mesmos valores espirituais e éticos.


Decididamente queria, já na altura,  fazer as pazes com um certo passado, na Guiné, razão por que fez questão de   partilhar connosco as memórias, boas e más, daquele tempo.  Por certo, que já perdoou a quem o ofendeu, mas não esqueceu. Os seus antigos camaradas e amigos não esqueceram.

O que fizeram ao Puim não deixa de ser  uma grande pulhice humana... Afinal, o que ele fez (, protestar contra a situação dos prisioneircs civis)  estava em perfeito alinhamento ou sintonia com as orientações da política spinolista "Por uma Guiné Melhor"!... Ele era a nossa consciência crítica e honrou o melhor de todos nós…

O Puim, enquanto português, homem, cidadão, capelão e oficial do Exército Português, insurgiu-se, protestou ou chamou a atenção para a situação desumana, degradante, em que viviam, numa espécie de galinheiro, em Bambadinca, velhos, mulheres e crianças que foram "recuperados" de uma tabanca no mato, sob controlo do PAIGC (que "eles" chamavam, pomposamente, "áreas libertadas", na famigerada áreaa do Poindon / Ponta do Inglês onde demos e levámos muita porrada ao longo da guerra...)!

Bolas, não eram "TURRAS"!... Era população civil, desarmada, andrajosa, miserável, esfomeada, apavorada... As crianças tinham nascido no mato e entravam em pânico ao ouvir o roncar de uma GMC...no quartel.

Muito provavelmente estes "pobres diabos" foram trazidos pela minha CCAÇ 12 em abril de 1971... Eu tinha acabado de chegar à metrópole, há coisa de um mês e tal...

Xitole > CART 2716 > o capelão Arsénio Puim
com o David  Guimaraes, ex.fur mil at ifn MA.
Foto do David Guimarães (2005)
Mais do que falar, o Puim sabia ver, observar,  ouvir. E tinha uma grande curiosidade pela cultura da Guiné, incluindo o(s) seu(s) crioulo(s). Ele tinha, contrariamente à maioria de nós, uma extraordinária “sensibilidade socioantropológica” que o levava a conseguir “confidências” da população  civil que os operacionais, como eu, dificilmente conseguiriam  a obter. Estou-me a lembrar, por exemplo, das suas conversas do “Mancaman, mandinga, filho do chefe da tabanca do Xime, um homem de paz”…  

Tinha, além disso, um espírito ecuménico, tendo participado inclusive em cerimónias religiosas, com outras confissões, em que se orou pela paz.


(14) Deixem-me acabar o meu depoimento com o meu aplauso 
a este antigo “padre capilon” (, para além de meu camarada…):   
como escrevi há anos, ele mereceu, nesse tempo, 
o meu apreço por, no cumprimento da sua missão castrense e espiritual, nunca ter  descurado as suas obrigações 
como pastor da Igreja de Cristo...

Ele não era (ou não quis ser apenas) um capelão militar, um padre fardado, ao serviço de um exército em guerra... Já confessei que não o conheci nessa qualidade: nunca o vi nem ouvi a celebrar missa, nunca rezei com ele, nem sequer lhe pedi conselho ou ajuda espiritual, embora hoje eu tenha pena de o não ter conhecido melhor, a nível do seu múnus espiritual.

O que eu quero sublinhar é que a sua atenção, solicitude, disponibilidade, carinho, amor, solidariedade, caridade, compaixão - chamem-lhe o que quiserem! - também contemplava as mulheres, as crianças, os homens, os velhos da população civil, independentemente da cor da pela, da religião, da etnia, da origem...

A grande diferença em relação a nós, militares, operacionais ou não, com os nossos 22, 23 ou 24 anos, é que o Puim  ganhava-nos em maturidade humana, em sensibilidade sociocultural, em abertura ao outro, em generosidade mas também em frontalidade e coragem moral... Ele convivia com a população, e escrevia no seu caderninho notas sobre esses contactos... O famoso caderninho que lhe seria mais tarde confiscado e depois devolvido e que, conforme já sugeri ao Miguel, deveria ser passado a livro…

No dia em que celebramos os seus 84 anos de vida, nós, eu e os demais membros da Tabanca Grande, de que ele faz parte de pleno direito, só lhe podemos desejar muita sa+ude  e longa vida porque ele merece tudo… 

Que Deus, Jeová, Alá e os bons irãs da Guiné o protejam, a ele e à sua família… e a todos nós, para que,  para o ano,  lhe possamos estar juntos, ou ao alcance de um clique, e   voltar a cantar os “parabéns a você” e a reiterar os nossos votos de amizade e camaradagem.

Luís Graça, ex-furriel miliciano,  
armas pesadas de infantaria, 
CCAÇ 2590 / CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 
maio de 1969 – março de 1917); 
fundador e editor do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné

PS – Arsénio, fico muito sensibilizado por esta carinhosa iniciativa dos teus filhos. Foram eles que prepararam tudo, em segredo. Acho que é uma bela prenda de aniversário. És um sortudo, mas tu bem o mereces.
_____________

Nota do editor:


(*) Vd poste de  14 de maio de 2006 > Guiné 63/74 - P750: Capelão militar por quatro meses em Mansoa (Padre Mário da Lixa)

Último poste da série > 9 de maio de  2020 > Guiné 61/74 - P20957: (In)citações (160): Homenagem ao ex-alf mil capelão, Arsénio Puim, CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), no seu 84º aniversário - Parte VI (a): Muita saúde e longa vida, Arsénio Puim, porque tu mereces tudo! (Luís Graça)


domingo, 10 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20961: Estórias avulsas (98): Histórias do vovô Zé (2): História da Carochinha, contada em confinamento, em homenagem à D. Virgínia Teixeira e ao Senhor Jotex (José Ferreira da Silva, ex-Fur Mil Op Esp)

1. Em mensagem do dia 9 de Maio de 2020, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta versão bem a seu modo da conhecida História da Carochinha, dedicada à esposa do Jotex e ao marido da esposa do Jotex.


Histórias do vovô Zé

História da Carochinha, contada em confinamento

Em Homenagem
À Dona Virgínia Teixeira e ao Senhor Jotex


Era uma vez uma jovem cadela chamada Carochinha, vinda duma família respeitável dos confins de Vila Nova de Gaia, onde vivia abastadamente junto de seus entes mais queridos. Rebelde e muito fogosa, ela vivia, na ânsia do luxo e da boémia. Sempre contrariada, fugiu de casa, atravessou a ponte e logo se deixou embrenhar nos esquemas e prazeres da noite.

Iludida com o seu poderio social e económico, apaixonou-se por um “Cão Grande”, tipo “Papa do Norte”, já maduro e bem conhecido pelos seus dotes desportivos e culturais (muito querido no seio das raças pobres e minoritárias) e, também, pelo negócio de frutas e chocolates. Foram tempos breves, mas vividos muito intensamente. Rapidamente se familiarizou com o luxuoso ambiente de cães poderosos, onde se destacavam “Tóbi” e o “Tabeco”, investigadores de prestígio. Foram tempos de ouro. A Carochinha passeou pelo Mundo inteiro. Chegou a ir ver o Papa a Roma, onde foi abençoada e acarinhada.
Porém, insaciável nos seus desejos, a Carochinha, a quem nada faltava, da sua sorte muito abusava. Por isso, viu-se repentinamente, controlada e insatisfeita.


Expulsa do condomínio das Antas, a despeitada, incentivada por cães e cadelas de Lisboa sem pedigree, veio para a praça pública acusar o “Cão Grande” de práticas sociais pouco correctas e, até, das suas fraquezas físicas, nomeadamente da sua excessiva produção de flatulência malcheirosa.

No Real Canil do Império, a Carochinha virou vedeta do Jet Set e do Show Business. Colaborou em tudo que lhe pediram, cuspindo ódio e rancor no “prato de quem tanto lhe deu de comer”, sem um mínimo de vergonha ou de respeito. Utilizada abusivamente pelos cobardes e invejosos nas suas investidas habituais contra a naçon tripeira, cedo se apercebeu que ali, o seu reinado terminara. As honrarias e amizades que lhe prestaram esfumaram-se em pouco tempo.

Voltou ao norte. Trouxe, como paga de uma história mal contada e de um filme de mau gosto, apenas um cãozinho criado pelo “Grande Chefão”, que era alegadamente ligado à corrupção, à droga e ao mundo dos pneus. Tudo bem compensado com uma rede de padres, missas e macumbas ao redor de uma catedral dominadora do mundo da política, da Justiça e da Comunicação Social.

Veio à boleia e passou pelas Caldas, onde a reconheceram e lhe deram um souvenir local.
Regressou à baixa Portuense onde, numa noite louca, o seu cãozinho se excedera a lamber as botas de um Ilustre Jurista nortenho, por sinal cliente assíduo daquela rua e daquela zona, muito activa no métier (e no tirer). Diríamos que aquela atracção se identifica com a célebre frase do “amor à primeira vista”.
Coincidências do diabo! Não é que a senhora esposa desse Ilustre Doutor, se havia condoído pela situação de uma vizinha que acolhera dois outros cães expulsos recentemente? Nada mais nada menos que os ex-influentes “Tóbi” e “Tabeco”, cuja nova patroa do condomínio das Antas (uma jovem brazuca), deles se desfizera cruelmente.

A Senhora, que era uma Rainha no lar e uma Santa na sociedade, impôs desde logo uma habitação condigna aos seus protegidos (camas, colchões e cobertores, em pequenos quartos climatizados etc., etc.). Para gente de posses, não havia problemas.
Porém, havia uma pequena questão: - Que fazer do cãozinho que o seu marido, alegadamente encontrou à saída do seu escritório?
(Coitadinho, tão pequenino e tão desprotegido!)
“Tóbi” e “Tabeco” foram logo para a casa de férias no campo e o cãozinho protegido assumiu o seu manhoso papel de meiguice, sabiamente fingida junto do seu patrão. Condicionado pela sua presença, o Doutor dava a ideia que vivia com medo que o cãozinho falasse.


Como andava sempre dentro do carro, um dia “chateou-se” com a boleia dada a um amigo que, ao vê-lo de coletezinho vermelho, chamou-lhe “Orelhas”.

Ao ouvir esse nome, que lhe era muito familiar, o “Orelhas” ripostou agressivamente com o tal amigo e, perante alguma achega do patrão, ele peidou-se sonorosa e malcheirosamente e… descaradamente. Não contente com tudo isto e analisados outros pormenores, o Doutor, resolveu atribuir-lhe um nome mais compatível. Passou a chamar-lhe Dr. Simplício Merdinhas. Mais tarde, os filhos do patrão, só o tratavam por Rex. Mas não levou muito tempo para lhe ser corrigido o tal apelido para Rex Fodelhão.
Como a bondosa patroa tem muitos afazeres, nem se apercebe do quanto é chocante ver-se a diferença de tratamento dado pelo dono ao tal “inocente” cãozinho “Orelhas” e aos outros.

Com a cobertura do patrão, o “Orelhas” impõe-se vergonhosamente

A Carochinha foi apanhada numa ronda (Ramona), mas foi salva por uma associação protectora dos animais e ficou à guarda de uma sensível senhora da Rua da Alegria.
A Carochinha descobriu, lá em casa, um saco azul com dinheiro. Não se pode falar nisso, mas é voz comum que o marido da senhora é chefe de um “Bando” qualquer. Agora, menos viciada na vida fácil e desejosa de se submeter ao aconchego de um lar, a Carochinha só pensa em libertar-se. Quer casar. Então vem para a janela apregoar para todos os cães que lá passam:
 - Quem quer casar com a Carochinha, tão rica e bonitinha?


Num dia desses, o senhor seu dono, acordou mais cedo e, ao ouvir o pregão, veio observar o desfile de cães que iam passando por baixo da janela.


Eram cães com bom aspecto. Porém, com poucas hipóteses de conquistar a Carochinha. Aquela passagem por Lisboa, a humilhação de voltar às origens e a necessidade de constituir uma família séria, moldaram-na para uma nova vida.


E foi assim que a Carochinha escolheu o cão mais rafeiro que passou por baixo da janela. E como ele estava ferido, mereceu ainda mais carinho por parte da patroa, que o tratou e curou com muito amor.

Estão a ser felizes e vamos ver se têm muitos cãezinhos e… cadelinhas.

José Ferreira
(Silva da Cart 1689)
____________

Nota do editor

Vd. poste de 4 DE MARÇO DE 2019 > Guiné 61/74 - P19549: Estórias avulsas (93): Histórias do vovô Zé (1): As nossas andorinhas (José Ferreira da Silva, ex-Fur Mil Op Esp)

Último poste da série de 23 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P20006: Estórias avulsas (97): quando ia ficando soterrado no abrigo do canhão s/r, 82-B10, de fabrico russo... Salvei-me por um triz... Afinal, ainda não tinha chegado a minha hora! (Martins Julião, ex-alf mil, CCAÇ 2701, Saltinho, 1970/72)

Guiné 61/74 - P20960: Blogues da nossa blogosfera (131): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (46): Palavras e poesia


Do Blogue Jardim das Delícias, do Dr. Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com a devida vénia, reproduzimos esta publicação da sua autoria.

AntiDeuteronómio II

ADÃO CRUZ

© ADÃO CRUZ


No tempo em que as sardinheiras das varandas dos pobres
faziam parte dos nossos sonhos
florindo em poemas de sol e de cor
no tempo em que as andorinhas
teciam grinaldas de vida nos beirais
no tempo em que os rios bordavam a terra de areia branca
no tempo em que a brisa sussurrava
por entre as flores
e as fontes murmuravam seus amores
a aurora da nossa inquietação tinha o cheiro a maçãs
e o pulsar das coisa vivas
e o levíssimo sorriso dos jardins do paraíso.
Tudo amávamos em nobre sentimento de exaltação
o mundo era transparente e fácil de amar
e cheirava a feno
a razão ondulava a frágil seara
em suave alento na quietude universal da liberdade
como harmoniosa mulher suspirando ao vento.
Tão inocente amor
tanta alegria
quem pensaria que os rios de pranto
haveriam de chegar um dia
em negra nuvem de calado voo.
Não podemos deixar que a nuvem negra
se abata sobre nós e o pensamento…
e o pensamento nos agarre no desértico silêncio
sentados ao vento
no falso sol da varanda da ilusão
e da erosão da consciência adormecida.
Não podemos deixar que a todos nos transforme
em filhos da morte
filhos de nenhum lugar e de toda a parte
figuras do vale das sombras
esgueirando-se nas sombras de outras sombras
sonâmbulos fantasmas
sem gestos de vida que nos façam acordar.
E quando for dia de sol bem alto
porque haverá sempre um dia
a rasgar a deuteronómica nuvem negra
que ameaça os campos do futuro
e o sereno assombro das pedras
e os peixes verdes dos poemas
e os rubros sorrisos que cheiram a mar
e os passos dos que aprendem a andar
e os rios que correm nos olhos de uma criança
e a memória sem tempo
jamais a exaltação da santidade
estará na morte e nas cinzas da cidade.
E não haverá espinhos nos olhos
e aguilhões nos flancos da vida…
e não haverá armas de destruição maciça
no coração das mães dos filhos exterminados.
Na diáfana manhã de um novo dia
apenas a plangente harmonia de um Stabat Mater.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 3 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20937: Blogues da nossa blogosfera (129): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (45): Palavras e poesia

Guiné 61/74 - P20959: Blogpoesia (676): "Não matem a lagartixa", "Um raio de sol" e "Oração à sabedoria", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados, entre outros, ao nosso blogue durante a semana:


Não matem a lagartixa

Hoje, a lagartixa não apareceu

Todos os dias dou a caminhada higiénica.
Aqui no bairro.
Adequada às minhas posses.
Pego nos andarilhos e vou.
Mais ou menos pela mesma hora.

Crescem umas ervitas junto aos muros das moradias.
Escapam ao serviço do cantoneiro.

Às tantas, dei conta de que havia uma lagartixa que aparecia quando passava.

Comecei a falar com ela.
Estranho quando não vem.
Nos dias seguintes, quando tudo parecia perdido, lá surgia ela do seu tugúrio.
Era a sentinela de serviço a uma moradia.
Sempre ali.
Me afiz a ela. Venho triste quando não vejo.
Não matem as lagartixas.
Prestam à gente um bom serviço.
Comem a bicharada que ataca as plantas.
Flores ou não.

Mafra, 6 de Maio de 2020
12h49m
Jlmg

********************

Um raio de sol

Um raio de sol bateu-me à janela.
Atravessou as cortinas.
Beijou o meu rosto.
Chamou-me para a vida.
Não pára. Passa e não volta.
É lucro tudo o que traz.
-Desperta! - clama.
Deixo meu leito.
Retomo a viagem.
Cada vez mais se aproxima a paragem.
Estendo na mesa minhas memórias passadas.
Contemplo.
Fazem cortejo.
Minhas origens vão longe.
Subindo e descendo colinas.
Adejando as velas.
Quando o vento da esperança soprava com força.
A vida emergente crescia.
A felicidade abundou.
Aos altos e baixos,
Chegou até aqui.
No mais se verá...

Ouvindo Schubert
Mafra, 9 de Maio de 2020
10h20m
Jlmg

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Oração à sabedoria

Saibamos todos entender os sinais da vida.
Há mensagens de cada hora e época da história.
Não vai à toa este comboio magno.
Seu caminho vai sendo traçado conforme desígnios que ignoramos.
Impõe-se estar atentos.
Surgem sinais no horizonte.
Peçamos à sabedoria com devoção.
Apliquemos a nós o que a meditação nos manda.

Mafra, 9 de Maio de 2020
10h19m
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de 10 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20935: Blogpoesia (675): "Figueira do diabo", "Horrorosa modernidade" e "Os nós e os laços", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P20958: Parabéns a você (1800): Fernando Valente (Magro), ex-Cap Mil Art do BENG 447 (Guiné, 1970/72) e Henrique Matos, ex- Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52 (Guiné, 1966/68)


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Nota do editor

Último poste da série de 8 de Maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20950: Parabéns a você (1799): Arsénio Puim, ex-Alf Mil Capelão do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72)