quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Guiné 63/74 – P8862: Memórias de Gabú (José Saúde) (8): Guiné em tempo de paz: Visita a Madina Mandinga


1.   O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabú) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem para esta sua série, que, segundo ele me segredou, será parte de futuro um livro com o mesmo título. Também nos enviou mais 3 fotos do seu álbum de memórias, onde facilmente se deduz a sua amizade e empatia com os putos de Madina.

GUINÉ EM TEMPO DE PAZ: VISITA A MADINA

PASSEIO SEGURO À BEIRA DO ONDULADO CAPIM

Foi um dia memorável! Uma visita amigável à 2ª Companhia do BART 6523 sediada em Madina Mandinga, apresentou-se como uma viagem antes impensável. As estratégias no terreno estavam definidas. O PAIGC e a nossa tropa haviam estabelecido princípios de entendimento e o medo da picada, e a sua imprevisibilidade, antes constatado, oferecia agora uma segurança absoluta.

Foi a um domingo e já em tempo de Paz que um grupo da CCS, em Nova Lamego (Gabú) e a Companhia destacada em Madina, combinaram um jogo de futebol. Dois unimogues com malta que se entregava entretanto a brincadeiras pontuais, e eis-nos perante o grupo disposto a desbravar conteúdos de uma picada onde a ondulação do capim se misturava com árvores de grande porte nascidas na exuberância da densidade do mato.

O resultado final não interessou, tão-pouco ficou registado nas minhas memórias. Não interessa! O único objectivo foi o amplo convívio constatado. O festim decorreu de forma cordial, trocaram-se impressões, comentou-se o último ataque a Madina, apontou-se para o sítio das valas que serviram de protecção aos ilustres soldados e recordou-se os locais onde os foguetões haviam caído. Pelo meio de dois dedos de conversa umas fotos para mais tarde recordar.

Dessa viagem, com o pessoal completamente dispensado das G3, bazuca, ou do morteiro 60, ficaram momentos inolvidáveis passados entre camaradas de armas que contemplavam então a Paz agora sentida em toda a largura do terreno. Recordo, que a dita viagem entre as duas populações distavam cerca de 20 kms. Todavia, os quilómetros de picada assumiam-se como um osso duro de roer. Lembro que o percurso dividia-se entre o asfalto (alcatrão) e terra batida.

Revivendo esse já longínquo convívio em terras da Guiné, recordo agora a forma desinteressada como fomos recebidos pelos ilustres anfitriões. Uma recepção extraordinária, uns chutos numa bola já defeituosa, um almoço bem regado, uma cavaqueira que se arrastou ao longo da tarde, uma mesa cheia de bebidas e, finalmente, as despedidas aos companheiros de Madina que determinou, como foi evidente, o nosso regresso a Gabú.

O Cap José Luís, sempre simpático, congratulou-se com a visita, mas foi com o 1º Sargento Brito que dissequei os momentos mais ávidos sentidos pela Companhia ao longo da comissão em Madina. A “talho de foice”, e com toda a justiça o digo, que o 1º Sargento Brito era, e é certamente, um homem de se lhe tirar o chapéu. Gostei dele!

Soube, recentemente, através do ex Alferes Miliciano António Barbosa, um camarada de armas que integrava o nosso BART 6523 e que pertencia à 3ª Companhia sediada em Cabuca, que o então 1º Sargento Brito está, actualmente, aposentada como Major. Confesso que me congratulo por saber tão feliz notícia. Um abraço, e bem grande, meu Major. A vida, por norma, sorri-nos quando dentro de nós existem factores humanos que suplantam o nosso querer, a nossa vontade e o nosso ego.

Na “minha guerra” – Operações Especiais/Ranger, Lamego – evocava-se, com vaidade absoluta e estilo próprio, um grito (com a devida vénia e respeito) que arrepiava o mais incrédulo efebo da então apelidada tropa “macaca”: “Vossa Excelência, meu Major, dá-me licença que evoque o seu bom nome para o colocar no meu Quadro de Honra?”. Creio, com certeza, que a resposta do meu Major será: SIM!

FOTOS


Um brinde com whisky entre o então 1º Sargento Brito, hoje Major, e claro, eu, José Saúde. As tabancas, ao fundo, retratam realidades num espaço distante onde as fortes e medonhas trovoadas se cruzavam com um cacimbo atroz e um arco ires que se sobrepunha a um horizonte belo mas sempre carregado de incertezas. O calor sufocante hostilizava, também, as nossas vidas.

Três meninas, hoje senhoras, de Madina


Com um “mascote” apadrinhado nessa célebre visita a Madina. Atrás o Cap José Luís (de costas) e o Alferes Miliciano Santos, da minha Companhia.

Um abraço a todos os camaradas,
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Fotos: © José Saúde (2011). Direitos reservados.
Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

1 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 – P8846: Memórias de Gabú (José Saúde) (7): “Piriquitos” exploram o centro “nevrálgico” da urbe guineense

Guiné 63/74 - P8861: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (26): De Bissau a Kiev ou o percurso de um ex-rafeiro (Parte II) (Cherno Baldé)

 
 E 
Kichinev, Moldávia, ex-URSS > Dezembro de 1985 > O Cherno Balde (à esquerda)  e um outro bolseiro. peruano,  de nome Aníbal...

Fotos (e legendas): © Cherno Baldé (2011). Todos os direitos reservados.



Continuação do texto do Cherno sobre as suas memórias de estudante na ex-URSS (*)

2.
2.  Moscovo,  escala de boa esperança

Em 1985, debaixo de uma chuva torrencial do mês de Agosto, [o Chiquinho e outros bolseiros] saíram finalmente para o Aeroporto a fim de apanhar o avião da Aeroflot. 

Na despedida a Irmã Beatriz ofereceu-lhe uma pequena bíblia de cor azul para lembrança da sua amizade e disse-lhe que, dentro em breve, iria ter a oportunidade de conhecer um pais do primeiro mundo. 

Chegaram a Moscovo no dia seguinte, com escalas em Nouakchot (Mauritânia), Casablanca (Marrocos) e Budapeste (Hungria). Do Aeroporto levaram-nos para uma residência de estudantes onde já se encontravam centenas de outros bolseiros vindos dos quatro cantos do mundo. 

Havia mais de 24 horas que não dormia, mas mesmo assim não conseguia pregar olho. A alegria e a curiosidade da descoberta de um novo mundo constituíam um lenitivo que suplantava tudo o resto. Sob o efeito contagiante da alegria, tinha saído para o corredor, passado ao jardim, depois à rua. Queria contemplar, queria absorver tudo, queria abraçar Moscovo e seus habitantes metidos nos seus trajes sombrios num dia enublado com brisa suave de fim de verão. 

Foi assim que ele se deixou levar num passeio pela cidade, indo de autocarro até uma estação do Metro de Moscovo donde penetraram por meio de escadas rolantes compridas descendo, descendo, para dentro das entranhas da terra, gritando uns aos outros, sob o olhar atónito de alguns utentes que se içavam para cima no sentido inverso. 

Não foi difícil perceber que os silenciosos moscovitas faziam o possível para evitar o contacto com o grupo dos jovens africanos, inebriados com a sua bem expressiva e barulhenta maneira de falar, gesticulando ora à direita ora à esquerda. E, provavelmente, teriam um cheiro diferente, peculiar, no meio dos brancos em seu habitat natural. 

Eram recordações antigas que afluíam à mente misturando-se na indiferente algazarra a entrada e a saída do Metro que, de resto, era de fácil orientação, pois circulava em forma de anel à volta do centro da cidade e depois se expandia como uma teia de aranha cobrindo as diferentes zonas da grande megalópole: Paveletskaya, Aktyabrskaya, Krasnapresyenskaya, Kamsamolskaya... O Metro de Moscovo não tinha limites de espaço nem de tempo. Acabámos por voltar à nossa residência, já era noite. 

Sílvia, a boliviana, a primeira paixão

O grupo do Chiquinho ficou dois dias em Moscovo, o tempo suficiente para preparar a sua afetação. O único acontecimento relevante nesses dias da sua primeira passagem por Moscovo foi uma breve aproximação com uma boliviana,  de nome Sílvia. Bastaram alguns segundos para tocar o seu coração. Baixinha, cabeleira farta e reluzente, sorriso aberto, parecia uma rapariga lusa da geração mais antiga, daquela que não escondia a cor dos seus cabelos de origem árabe. 

Apaixonou-se pelos seus olhos grandemente abertos debaixo de umas sobrancelhas pretas a condizer. No seu rosto largo vislumbravam-se feições mestiças, amazónicas. Aproximou-se dela, falou em português, ela sorria, mas parecia não perceber. Não sabia nada da Guiné-Bissau, e provavelmente, não sabia mesmo nada de África. Alguém a chamou, ela foi e não voltou. O voo de um pirilampo na escuridão da noite. Nunca mais voltaria a encontrá-la. Sílvia...  

Apaixonar-se por imagens fugidias, amores impossíveis, era um defeito natural que o Chiquinho trazia da sua infância e adolescência, feitas de miséria e de mil privações. Introvertido e tímido, nunca tivera muito sucesso com as meninas, limitando-se a consumir com frugalidade o que via ou ouvia dos colegas. 

A brusca ausência da Sílvia fez reavivar os velhos fantasmas do antigamente que, como um balde de água fria, fizeram descer a pressão interna que embriagava os seus sentidos, fazendo sentir o cansaço e fome. 

Mais tarde saberia que a bonita Sílvia assim como a maioria daquela geração de estudantes latino-americana, amiga da farra e da boa comida,  detestava, no entanto, o ofício de cozinhar. Nessa altura agradeceria a Deus e à sua estrela de sorte, pois era de admitir a possibilidade de ser cozinheiro por um dia sim, mas toda a vida, não. 

 Colocado em Kichinev, Moldávia, para frequência da fase preparatória

Do seu grupo de mais de quarenta jovens, Moscovo só aceitou receber dois, os restantes foram repartidos por diferentes cidades da imensa URSS. Pelas informações dos antigos estudantes, sabiam que as Repúblicas da Ásia Central e do Cáucaso eram de evitar a todo o custo, devido à intolerância racial para com os pretos, numa região fortemente influenciada pela civilização Árabe e Turco-Otomana.  

Ao Chiquinho, calhou a cidade de Kichinev, capital da Moldávia, uma pequena porção de terra situada entre a Ucrânia e a Roménia, integrando um grupo de mais de cinquenta jovens de diferentes origens, para a frequência da fase preparatória. 

Mais uma vez, o Chiquinho estava com a sua estrela de sorte, pois não iria viver no meio dos bárbaros do Cáucaso nem ficaria na Universidade Patrice Lumumba onde a maioria dos estudantes era africana. Nem que fosse por algum tempo, ele queria ficar longe de África e dos africanos. 


(ix) Namorar, sim, mas não casar com uma...tubab

Na verdade, o Chiquinho alimentava um sonho secreto e antigo, nascido não sabia donde, de namorar uma europeia. Sim, só namorar. A sua imaginação, sendo muito ousada a este respeito não se atrevia, todavia, a pensar no casamento. “Casar com uma tubab!?... Hééé Tchernô!!!...” Era o eco da voz discordante da sua avó que lhe perseguia.[ Avó materna, Mariana Baldé, Fajonquito, Sancorlã, 1900-1993; foto à esquerda].

Ela conseguia adivinhar todas as suas intenções e, armada de verdades e razões ocultas da velha sabedoria fula e africana, denunciava os aspectos mais desviantes da sua educação infecta. “A mulher tubab é uma senhora e uma senhora não é uma mulher”, dizia ela. O Chiquinho não comprendia esta relação ilógica do tipo: α=β, β≠α. Talvez não casasse. 

Na verdade, também não conhecia nenhum antecedente de um fim feliz nas relações preto/branco e vice-versa. As histórias eram muitas e antigas num caminho ainda estreito, semeado de armadilhas reais ou imaginárias. 

Ainda assim, ele queria uma europeia. A vida não é um cenário de jogo onde se ganha e se perde!?... Pensava, teimosamente.

(Continua)

[ Revisão / fixação de texto: L.G.]

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Nota do editor:

 (*) Vd. poste anterior da série 4 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8856: Memórias do Chico, menino e moço (25): De Bissau a Kiev ou o percurso de um ex-rafeiro (Parte I) (Cherno Baldé)

Guiné 63/74 - P8860: O Nosso Livro de Visitas (117): Samuel Vieira, guineense da diáspora, engenheiro informático no Brasil, elogia o nosso blogue


1. Mensagem de um guineense na diáspora, Samuel Vieira, com data de ontem:

De: Samuel Vieira
v_samuel2003@yahoo.com.br


Data: 4 de Outubro de 2011 18:07


Assunto: Elogiar o vosso trabalho não tem limite para um povo que valoriza sua história!

Prezados,

Sou Samuel Vieira, natural da Guiné-Bissau, residente no Brasil. 

Sou formado em Ciências da Computação (Engenheiro Informático,  em Portugal) e hoje trabalhando como Gerente de Tecnologia de Informação da Motoshop.


Possuo um blogue: http://www.djemberem-samuel.blogspot.com/ onde criei um link para que grande parte dos visitantes do meu blogue pudesse também fazer um passeio pelo vosso blogue:


http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2011/10/guine-6374-p8856-memorias-do-chico.html 

para conhecer histórias fantásticas de alguns guineenses como esta história maravilhosa vista nessa página que é do Cherno Abdulai Baldé - Chico de Fajonquito.


Continuem esse trabalho maravilhoso que encanta os guineenses e faz reviver histórias de personalidades diferentes que passaram ou vivem na Guiné-Bisssau.

Um abraço fraterno,

 Samuel Vieira
(Analista de Sistemas)

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Nota do editor:

Último poste da série > 5 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8739: O Nosso Livro de Visitas (116): Ex-Alf Mil Orlando Silva, CCAÇ 3325 (Os Cobras), Guileje e Nhacra, 1971/72

Guiné 63/74 - P8859: Notas de leitura (283): Tarrafo, de Armor Pires Mota: censura e autocensura, em tempo de guerra. Cotejando as edições de 1965 e 1970 (Parte II) (Luís Graça)




 Excerto de Tarrafo, de Armor Pires Mota (1ª edição, Aveiro,  1965), p. 127. Este título foi substituído por "É com ferro estrangeiro", na 2ª edição (Braga, 1970), p. 192.


Continuação do poste P8830 (*):

1. Do livro de crónicas sobre a guerra colonial na Guiné,  Tarrafo, da autoria de Armor Pires Mota, há duas edições: a primeira, de 1965, logo de imediato posta fora do mercado, pela polícia política de então; e uma “2ª edição, autorizada” (sic), de 1970.

Possuímos, da 1ª edição, um exemplar fotocopiado, provável cópia de um exemplar autografado, pertencente à Biblioteca do Seminário de Aveiro (de que o autor foi aluno) . 

Tem, além disso, diversas páginas com o carimbo “Confidencial” , além de cerca de um centena de parágrafos e frases sublinhados, possivelmente com ordem de eliminação ou sugestão de correção.  

Segundo o próprio autor, são marcas da PIDE, como ele próprio escreveu ao Beja Santos:

" (...) Finalmente, fiz seguir os livros, entre os quais o Tarrafo. Esgotado que está, envio-lho fotocopiado, um dos exemplares 'vistos' pela PIDE. É o único que tenho e que me veio às mãos quase por milagre. APM"

Possuímos, por outro lado, na biblioteca da Tabanca Grande,  um exemplar da 2ª edição (1970). Cotejando as duas versões, verifica-se que o autor eliminou todas as referências ao nosso armamento e equipamento, por razões supostamente  de “segurança militar",  impostas pelos "censores" (por exemplo, caça-bombardeiro T-6, espingarda automática G-3, rádio transmissor AN/PRC 10)… 

O mesmo se passa com alguns topónimos e datas, referentes à atividade operacional da CCAV 488, a que pertencia o Alf Mil Cav Pires Mota… E muitos dos parágrafos e frases assinalados com marcas dos "censores", no exemplar da 1ª edição, foram eliminados ou, no mínimo, revistos na versão de 1970 (publicada pela Pax Editora, de Braga).

Na I parte deste nosso texto de "notas de leitura" (*), vimos, a título de amostragem, e num primeiro resumo, que os censores em tempo de guerra fazem questão de esconder, escamotear ou ignorar, por exemplo, certas situações sociais de miséria que eventualmente poderão ser exploradas pela propaganda inimiga, tanto no plano interno como a nível internacional (por ex., as crianças de Bissau, a prostituição no Pilão, a fome de mulheres, crianças e velhos no mato)…

Estupidamente ou não, os censores querem por outro lado suavizar a própria violência da guerra (e o realismo dos combates), incluindo o comportamento dos combatentes debaixo de fogo… Sem que se saiba exatamente o que vai nas suas cabeças, preocupam-se aparentemente com o moral da retaguarda, procurando de algum modo subestimar ou sub-valorizar a força do inimigo...Aconteceu historicamente em todas as épocas e em quase todas as sociedades...

Referências à atividade operacional e a agressividade do IN, são eliminadas ou suavizadas na 2ª edição deste "livro de crónicas". Por exemplo, títulos como aquele que se reproduz acima ("Cem casas de mato", p. 127, 1ª edição) são inadmissíveis aos olhos dos "censores"... E na edição de 1970, o autor é obrigado encontrar um título mais neutro: "É com ferro estrangeiro" (referência à origem do material de guerra apreendido pelas NT, de diversa proveniência: 1 metralhadora Bren BK1, 1 pistola metralhadora Thompson, 2 carabinas Mosin Nagan)...

O autor relata, neste episódio, o assalto a (e a destruição de) um acampamento IN, em Fambantã, no setor de Farim (se não me engano), a 6 de Março de 1965. As fotos da pág. 129, mostrando a destruição do acampamento, foram retiradas. Também se explora, por outro lado,  os pontos fracos do IN, mas isso não levanta obviamente qualquer objeção por parte dos "censores", bem pelo contrário (mesmo mantendo a menção às tais cem casas de mato): 

(...)"Tão grande acampamento [, cem casas de mato,]  causou-se admiração, de certo modo, porque de facto, eles não se moviam muito há uns meses para cá. Apenas nos roubaram algumas vacas que andavam na pastagem e tentaram atacar o quartel à bazookada, mas falharam os intentos, porque caíram numa emboscada montada pelos fulas, Além disso, estão com os azeites: uns querem como chefe de zona Mamadú Indjai [, mandinga, que será gravemente ferido na Op Anda Cá, no Sector L1, Bambadinca, em Agosto de 1969]; outros não. Que deem com a cabeça nas árvores, que se esfolem e se matem. Trará vantagens. Outra causa, que os leva a não se mexer muito, é a fome. Só têm uma refeição por dia, às 9.30. Depois cada um que se oriente com as raízes e frutos selvagens" (edição de 1965, pp. 128 e 130).

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Tarrafo (2ª edição, 1970): o dia a dia da guerra de contra-guerrilha, no T0 da Guiné, entre Junho de 1963 e Junho de 1965, contado pela primeira vez na primeira pessoa do singular, por um comandante operacional, alferes miliciano, da CCAV 488, natural de Oliveira do Bairro, região da Bairrada,  onde nasceu em 1939. Reprodução das palavras do autor na contracapa. Tarrafo (1ª edição, 1965) é já a promessa do grande escritor que depois se veio a revelar Armor Pires Mota.
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Veja-se também, na 1ª edição, o parágrafo, a páginas 21/22, sobre o que se passava em Mansabá, em Outubro de 1963, com a guerra do gato e do rato: os “bandidos” punham abatises na picada, durante a noite, as NT removiam as árvores cortadas durante o dia…

(…) “ Depois, as coisas continuaram na mesma com poucas variantes. Eles punham de novo, noite dentro, as árvores que nós tirávamos até ao meio dia e derrubavam ainda mais. O estendal começou a tornar-se verde e seco. E assim andámos a fazer este jogo, até que resolvemos nós derrubar todas as árvores à beira do caminho. Mas nem assim nos deixaram em paz muito tempo, fazendo rebentar debaixo das viaturas dois fornilhos e, emboscados, carregaram” (…) . 

A referência aos "fornilhos" também desaparece subtilmente na edição de 1970 (pp. 38-43). Em boa verdade, os "fornilhos" sempre foram,  no TO da Guiné, talvez até mais do que as minas, o tipo de engenhos explosivos que mais terror nos causavam...

A descrição de ferimentos nas NT, o sofrimento dos feridos,  e a imediata prestação de socorros, pelos enfermeiros, também eram situações a eliminar ou a suavizar… (p. 22). 

Por outro lado, nessa época, ainda a G3 tinha coronha de madeira e os nossos camaradas usavam capacete (p. 24).

São anos de brasa, esses, em que mudou profundamente a geodemografia da Guiné, posta a ferro e fogo: aldeias inteiras foram destruídas, Mombocó, Cai, Flora,. etc.; populações inteiras são deslocadas...  E em que não se perdoava, de um lado e do outro,  a traição ou não colaboração (pp. 32/33). A história do “agente duplo” Malan (, antigo guerrilheiro, feito prisioneiro, depois reabilitado e posto ao serviço das NT como guia) fica a meio caminho, ou seja, fica  por contar o seu desfecho, na 2ª edição (1970)…

(…) Malan enganou. Ninguém sabia até esse dia que ele era engajador. Levava bajudas às casa de mato para noites de orgia. Nem ninguém sabia que ele era informador também do outro lado e tinha um rádio escondido numa mala.
- Mim bandido… Tropa amigo. Perdão!
Mas ninguém lhe perdoou.” (p. 33).


2. Notável, entretanto, é a descrição da travessia da bolanha, a caminho de Flora, em Novembro de 1963 (pp. 35-36). O autor vai buscar memórias da sua infância, os sargaços da Ria de Aveiro, mas também as suas leituras de guerra, a Indochina, o “Amanhecer no Pântano” (p.36), do “grande [Jean] Lartéguy”, acrescenta ele, na 2ª edição (p. 62).

Outra referência literária é o Platero, da obra homónima (Platero y yo, 1927) do poeta  espanhol Juan Ramón Jiménez (1881-1958),  no episódio “Um burro com sorte, Bissorã, 24 de Novembro de 1963” (p. 37/38).  Platero é a alcunha do burro, aprisionado em Fajonquito…

(…) “Gosto do meu Platero e, ao cair da tarde, de armas a tiracolo, vou dar-lhe de beber ao rio.
- Arre, bandido! Goss, goss… (p. 38)…

3. A terminar esta 2ª parte das minhas "notas de leitura" do Tarrafo, escritas em plenas férias de verão, convirá fazer o seguinte aviso:  não há aqui, da minha  parte, nenhuma crítica subjacente ao autor no subtítulo: "censura e autocensura em tempo de guerra"... Sou um simples leitor, apaixonado, complacente, atento, crítico, curioso...

Não escrevi crónicas de guerra nos jornais da época, como Armor Pires Mota... Podia tê-lo feito, embora me faltasse a motivação. E também não o fiz pela simples razão de levar a sério a existência e a omnipresença da censura, no meu país...  Escrevi cartas a amigos, a partir do TO da Guiné, que nunca cheguei a pôr na caixa do correio... Queria entregá-las pessoalmente, na altura das férias... Acabei por nunca o fazer... Também nunca escrevi aerogramas, porque achava que eram ou podiam ser facilmente censurados... E as relativamente poucas cartas, tranquilizadoras,  que mandava para a família, com fotos minhas, nunca falavam da guerra... Eu também fiz autocensura. L.G.



 Tarrafo, 1ª edição,. 1965. Indice da obra, pp. 157-158. Comparando com a edição de1970, há títulos que foram retirados ou substituídos. Outros foram acrescentados (em 197'0)


(Continua)

Lourinhã, Agosto de 2011

[ Texto redigido em conformidade com o Novo Acordo Ortográfico: L.G.]

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Notas do editor:

(**) Último poste da série > 3 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8850: Notas de leitura (282): Do Cacine ao Cumbijã, 67 Guiné 69, de Guilherme da Costa Ganança (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P8858: Agenda Cultural (160): Ciclo de Conferências-debate Os Açores e a Guerra do Ultramar - 1961-1974: história e memória(s) (Carlos Cordeiro) (7): Rescaldo do dia 30 de Setembro de 2011

O nosso camarada Carlos Cordeiro (ex-Fur Mil At Inf CIC - Angola - 1969-1971), Professor na Universidade dos Açores, em mensagem do dia 3 de Outubro de 2011, enviou-nos algumas fotos da Conferência-debate do dia 30 de Setembro, integrada no ciclo "Os Açores e a Guerra do Ultramar – 1961-1974, história e memória(s)".

Caros e bons amigos,
Agradecendo mais uma vez a vossa generosidade no destaque que conferiram ao anúncio da conferência “Açorianos na Guerra do Ultramar: uma abordagem parcelar”, que apresentei na última sexta-feira, 30 do corrente, envio algumas fotos do evento.

Na minha comunicação, preocupei-me sobretudo em apresentar um panorama geral da participação dos açorianos nos 13 anos de guerra: Unidades mobilizadoras, número e destinos das Companhias e Batalhões, quantitativos aproximados de açorianos no Ultramar em cada ano, baixas, etc., tudo isto, naturalmente, acompanhado pela projecção de gráficos, quadros e algumas fotos.

Como se pode ver pelas fotos, a sessão foi muito participada, sobretudo por antigos combatentes, alguns acompanhados pelas esposas, mas também por outras pessoas interessadas e um número interessante de jovens alunos. O debate foi extremamente vivo, prolongando-se por cerca de uma hora e meia.

Como temos sempre referido no início de cada sessão, o período de debate não deve ficar circunscrito à temática específica de cada conferência, mas abrir-se também a outras questões e à(s) memória(s) individuais.

As comissões organizadora e científica têm já programadas novas sessões.

Um abraço amigo do
Carlos Cordeiro


A Prof.ª Doutora Gabriela Castro, Directora do Departamento de História, Filosofia e Ciências Sociais da Universidade dos Açores, fazendo a apresentação do nosso amigo Carlos Cordeiro.

Carlos Cordeiro dirigindo uma palavra de agradecimento à sua Directora de Departamento.

Um aspecto da assistência.

Carlos Cordeiro na sua apresentação

Período de debate. O antigo Fur. Mil. CMD Paulo Teves (Angola, 1971-73) intervindo.

O Prof. Doutor Carlos Amaral, da Comissão Científica, dirigindo o debate.
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Notas de CV:

Vd. poste de 26 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8820: Agenda Cultural (158): Ciclo de Conferências-debate Os Açores e a Guerra do Ultramar - 1961-1974: história e memória(s) (Carlos Cordeiro) (6): Prosseguindo com o ciclo de conferências, haverá nova sessão no próximo dia 30 de Setembro de 2011, pelas 17h30 no Anfiteatro B da Universidade dos Açores

Vd. último poste da série de 28 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8829: Agenda Cultural (159): Sopros de vida, um livro de José Lemos Vale (José Eduardo Oliveira)

Guiné 63/74 - P8857: Estórias do Juvenal Amado (39): O meu Avô Juvenal, o Benjamim e Eu

1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado*, ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 3 de Outubro de 2011:

Caros Carlos, Luís, Magalhães, Briote e restantes camarada da Tabanca Grande

Com a proximidade do 5 de Outubro não podia deixar de evocar o meu avô do qual a minha avó me contou muitas estórias. Ele morreu quando a minha mãe tinha nove anos,  sendo ela a oitava dos nove filhos que deixou. 

Os seus ideais foi a única coisa que nos deixou, a mim também deixou o nome. Só um homem de grande estatura cívica poderia deixar a admiração que todos nutriam por ele.

Se acharem que o tema não se desvia muito do sentir do blogue ficou grato por esta pequena homenagem.

Juvenal Amado


ESTÓRIAS DO JUVENAL AMADO (39) > O MEU AVÔ JUVENAL, O BENJAMIM E EU

Mosteiro de Alcobaça - Ala Norte

Quem vinha de Caldas na direcção Norte passava por esta rua

A ala Norte do Mosteiro de Alcobaça foi durante bastantes anos ocupada pela instituição denominada Asilo da Mendicidade de Lisboa.

Dizem que para cá veio como castigo pelos constantes assaltos ao quartel, que então aí esteve instalado.
Eu conheci bem o seu interior, uma vez que um tio meu lá trabalhou e eu ia lá com o meu primo, quando ele levava alguma coisa ao pai ou simplesmente quando ele queria lá ir sabendo que aqueles muros, escadarias, corredores e salas de pedra gasta, repletas de homens muitos deles andrajosos, onde a humidade escorria das paredes na maior parte dos sítios de pedra nua, me incomodava até à beira do terror. Eu fazia-me forte mas por dentro todo tremia.

Como o nome indicava era um asilo para desvalidos, aí se misturavam velhos, loucos, atrasados mentais e deficientes de toda a espécie. Vários casos de tuberculose, uma grande percentagem de alcoólicos e doenças várias numa população que andou perto dos 2000 internados se é que não chegou a ultrapassar. Bem de ver que controlar a sobrelotação das instalações não era tarefa fácil. Assim os castigos frequentes passavam por privação das saídas e de outros se falou, pois se ouvia contar que aquele guarda agredia os internados, vangloriando-se disso.

Mas meu avô Juvenal,  homem de grande coração, foi também lá guarda. Depois de muitas noites na serra de Monsanto, fugas e prisões, ralações para a minha avó, defendendo os seus ideais republicanos, veio de Lisboa para Alcobaça com a saúde completamente arruinada. De tal forma que,  passado pouco tempo,  só se deslocava para o trabalho acompanhado do meu tio, que assim ficava com ele para o ajudar a fazer as rondas bem como a regressar a casa.

Um dia prendeu-se-lhe a atenção num internado muito jovem, que tinha ido para o asilo como moço de cego. Assim que o cego faleceu, o meu avô requereu o jovem Benjamim para seu serviço pessoal. como era uso. Assim o Benjamim que nada tinha passou a ser figura presente em casa de quem tinha pouco.

O meu avô faleceu 26 anos antes de eu ter nascido e o Benjamim manteve-se fiel à casa, viu crescer a minha mãe bem como dois irmãos que eram crianças de escola. Também foi testemunha da violência da separação da minha avó dos filhos mais novos, que foram para instituições para órfãos.

Ele ali estava todo o dia,  fazendo recados, indo buscar água à fonte Estalaças ou à Fonte Nova, ora ajudando a minha avó a tratar das galinhas, ou mesmo sentado numa cadeira à beira da minha cama quando eu dormia a sesta.

Comia as vezes que lhe oferecessem. A visão dele a comer uma grossa fatia de pão, que molhava na tigela de café açucarado, só é suplantada pelo estrebuchar do corpo dele no chão de pedra do pátio, com os ataques epilépticos de que padecia. Ele pressentia-os e metia a manga do casaco na boca para não se morder todo.

Passaram-se os anos quando eu fui mobilizado []para a Guiné] e fui despedir-me da minha avó, também me despedi do Benjamim. Veio até mim,  quando para ele olhei, e aceitou o meu abraço, sem perceber muito bem a razão do mesmo.

A minha avó faleceu quando eu estava na Guiné. Não imagino a dor que o Benjamim sentiu e sofreu daí em diante com a sua falta.

Quando regressei, fui no dia seguir visitar a minha tia, que vivia agora sozinha na mesma casa. Lá estava o Benjamim que,  sabedor do meu regresso,  desde manhã bem cedo me esperava na rua.
Veio direito a mim e abraçou-me e,  no seu jeito simples e meio demente, perguntou-me porque me demorei tanto. Percebi que ele não sabia ao certo onde eu tinha estado. Trazia num bolso de um casaco um bolo de arroz sem qualquer prazo, para me oferecer como prenda de anos. Possivelmente já o trazia desde Junho do ano anterior.

Morreu algum tempo depois, tinha uma tuberculose,  há muitos anos crónica.

Na rua Miguel Bombarda, também conhecida pela rua da Estrada, a casa da minha avó já não existe como a conheci. Quando lá passo,  lembro-me dos jogos da bola na rua, da queima do Judas, dos altares dos Santos Populares, das corridas de arco e dele deitado no pátio, com o corpo dolorosamente percorrido por espasmos incontroláveis, babando-se, revirando os olhos sem ajuda possível.
Descansa em paz,  Benjamim.

Juvenal Amado
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Notas de CV:


terça-feira, 4 de outubro de 2011

Guiné 63/74 - P8856: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (25): De Bissau a Kiev ou o percurso de um ex-rafeiro (Parte I) (Cherno Baldé)

1. Mensagem, de ontem, do nosso querido amigo e irmãozinho Cherno Baldé [, foto à esquerda, quando estudante em Kiev, em Maio de 1986]:


Caro amigo Luís Graça,

Juntamente, envio um texto de algumas páginas, onde transcrevo recordações do meu tempo de estudante em Bissau e das peripécias de uma viagem para estudos na ex-URSS.

Este texto também se enquadra, se concordarem, nas crónicas de memórias do Chico, menino e moço (*), versando um  ângulo diferente das crónicas anteriores a que os bloguistas, membros da nossa Tabanca Grande,  estarão habituados, mas tratando-se do mesmo estilo e da mesma vontade de informar, trocar impressões e de discutir ideias e paixões que me animaram desde o princípio, quando descobri, pela primeira vez,  os trilhos que me levaram à sombra deste poilão onde se abrigam alguns dos irreverentes soldados que outrora conheci e a que me juntei, por força do destino, nos aquartelamentos e nos campos de futebol improvisados, para viver alguns dos momentos mais divertidos da minha infância e que me marcaram para sempre, influenciando a minha forma de ser e de estar na vida, o trajeto de um antigo rafeiro que se fez homem da nossa atualidade emergente e global.

Se acharem que tem algum interesse para divulgação, dou o meu consentimento para publicarem conforme lhes convier.  

Um grande abraço deste vosso amigo e irmão,

Cherno Abdulai Baldé - Chico de Fajonquito.


2. DE BISSAU A KIEV OU O PERCURSO DE UM EX-RAFEIRO (Parte I)

por Cherno Baldé


(i) De Bafatá, a cidade de todos os sofrimentos, a Bissau onde  irá terminar, em 


Após cinco longos anos passados na cidade de Bafatá, em Setembro de 1979, o Chiquinho rumou para Bissau onde devia continuar os estudos. Do grupo de mais de cinquenta estudantes que com ele tinham vindo de Fajonquito e Contuboel, já não restavam, na corrida, mais do que cinco.

A viagem de Bafatá a Bissau já não se fazia de barco, como antigamente, mas por via terrestre, em autocarros de uma empresa pública (Silo Diata) que seguiam por uma estrada tortuosa penetrando o Óio pelas localidades de Banjara e passando depois por Mansabá e Mansoa, com as suas vendedeiras de sandes a enxamear a estrada de saída para Bissau. Nesta época de magras receitas, são muitas as famílias que vivem do labor fortuito destas incansáveis Bideiras de rua.

Mesmo se a euforia dos primeiros anos da independência ainda continuava a alimentar as nossas jovens esperanças, entretanto, muita coisa tinha mudado, pode-se dizer mesmo que, passados os primeiros cinco anos de independência, a auréola do partido libertador estava muito ofuscada. Tinham conseguido, em pouco espaço de tempo, relativo sucesso na industrialização do país, com fábricas e importantes investimentos em projetos agrícolas para experimentação e vulgarização de técnicas e variedades de arroz (DEPA’s), mas ao mesmo tempo, a fome que grassava nas cidades, apelidada por fome de Luís Cabral, ameaçava criar fissuras no novo e frágil edifício da construção da unidade nacional.

O governo, recusando-se a importar alimentos, apostava na capacidade da produção interna numa economia pequena, fraca e extrovertida caraterizada por uma baixa produtividade e com nível elevado de pobreza. Nessas condições, tratava-se de uma decisão politicamente bem justificada, mas economicamente mal aplicada cujas consequências imediatas serviriam de pretexto para o golpe militar de 1980 que tinha posto fim ao primeiro governo saído da independência.


(ii) De Bissau a Quinhamel: 

Em Bissau o Chiquinho encontrou o que não havia em Bafatá, sítios ideais para fugir da realidade e esconder-se da fome, chamavam-se bibliotecas. Foi nessa altura que ele deixou de ser o estudante aplicado, de caderno na mão, que sempre fora e passar a ser um rato de biblioteca, donde só saía para ir às aulas.

Adquiriu uma predileção especial na leitura de biografias de destacadas personalidades do mundo político, desde figuras sublimes e pacifistas onde pontilhavam o Mahatma Ghandi e Martin L. King, a algumas sulfurosas e místicas como Adolf Hitler ou do tipo subversivo e oportunista como Joseph Goebbels e Vladimir I. Lenine que, no fundo eram tão infelizes e solitários como ele próprio.

Quando terminava esta série, passava para os romances de Jorge Amado, vivendo os destinos trágicos dos seus personagens sui generis, tirados das favelas e praias de pescadores do nordeste brasileiro.

Dessas leituras deve ter cultivado, o Chiquinho, certa irreverência, sentido crítico e o pessimismo que ainda o caracterizam, assim como certa tendência para a evasão. Ele vivia no Bairro de Cupelum-de-Baixo em casa de um familiar, ex-combatente, e o sítio mais próximo era a embaixada da Líbia, na rua Pansau-Na-Isna, que liga o QG ao Hospital Simão Mendes, e onde metade do espólio era constituído por livros de Muahamar Kadhafi de conteúdo intragável mesmo para um aprendiz de revolução, ainda verde.

Em Junho de 1982, com o término do ensino secundário no liceu Kwame N’krumah (antigo Honório Barreto) de Bissau, tinha-se cumprido, finalmente, uma meta importante na sua vida que, alguns anos antes, não passava de um sonho longínquo. Tinha sido necessário percorrer um caminho bastante atribulado e consentir um enorme sacrifício pessoal. Fazer o 7° ano dos Liceus ou finalizar, como se dizia na altura, era um objetivo a que muito poucos jovens da sua geração e condição social podiam almejar.

Pensando agora no futuro, ele tinha feito um pedido no Ministério da Educação solicitando um lugar para lecionar como voluntário, condição que, em princípio todos deveriam preencher antes de pretender candidatar-se a bolsa de estudos para o exterior, mas a que, na verdade, alguns conseguiam esquivar-se, acedendo diretamente às bolsas para países da sua escolha. Eram todos iguais, mas uns eram mais iguais que outros. Mais que poder continuar os estudos, a sua maior expetativa residia, de facto, na possibilidade de poder voar para longe, conhecer outros países, outras gentes, outras bibliotecas.

(iii) Mais vale a sétima sorte do que o sétimo ano, diziam os vizinhos invejosos de Fajonquito

A seguir, ele aproveitou para visitar a família durante as férias grandes (de Agosto a Setembro) em Fajonquito. Na verdade tratava-se de uma visita de regozijo pessoal para acenar aos colegas o seu estatuto de finalista. Durante muitos anos tinha sonhado com este dia, imaginando os mais diversos cenários, como se o mundo fosse mudar com este trivial acontecimento. No fim, não só não aconteceu nada de especial, mas ainda teve que ouvir e engolir alguns ditos maldosos de colegas e de pais invejosos que diziam na sua cara preferir a sétima sorte em lugar do sétimo ano.

A sétima sorte, onde estava ela!?... O Chiquinho não sabia que o trabalho e o esforço pessoal pudessem dar a tal sétima sorte. Tratava-se de palavras ocas, carregadas de inveja e de mesquinhez de gente que era incapaz de fazer melhor. O seu pai, esse, estava feliz, imaginando poder contar em breve com a sua contribuição no sustento da numerosa família.

Quando voltou à capital já tinham feito a colocação sem contar com ele. Por preencher restavam somente alguns postos de escolas situadas em localidades pouco atrativas. Assim, ele teve que escolher entre uma escola de Susana e outra de Quinhamel. Sendo originário do leste, era a primeira vez que ouvia falar dessas duas localidades, pelo que se deixou guiar pela intuição e pela música da intonação. Escolheu Susana, bonito nome, e parecia-lhe estar a ver a aparência das meninas locais, susanamente lindas. Devia voltar no dia seguinte para as formalidades.

“Deus ki ta bana baka ki katen rabu” (É Deus quem afasta as moscas da vaca sem rabo), diz um provérbio guineense e foi o que aconteceu com ele. No dia seguinte já só restava uma única possibilidade, a de Quinhamel, alguém tinha ocupado o posto de Susana. Ainda bem. Só muito mais tarde saberia da sorte que acabava de ter. Nesse mesmo dia pegou na guia de marcha sem perder mais tempo e foi descobrir,  não muito longe de Bissau,  uma pequena vila adormecida à volta de palmeirais e cajueiros e pendurada nos dois lados da estrada entre Bissau e Pikin, nas margens do oceano atlântico.

No fundo, o local de afetação era-lhe indiferente desde que não se chamasse Bafatá, a cidade de todos os sofrimentos. Assim, Quinhamel ultrapassaria todas as suas expetativas. Tinha uma escola nova, construída e equipada pela cooperação sueca, um excelente ambiente de vida e camaradagem entre os educadores pouco educados que eles eram, longe dos rigores religiosos do chão fula e muçulmano onde o gesto mais banal era um sacrilégio, onde jovens ainda na flor da idade tinham que encher os ouvidos com sermões obscuros em que o último dos profetas distribuía lugares no cruzamento entre o fogo do inferno e a frescura da glória.

Em Quinhamel residiam meninas simpáticas vindas das localidades circunvizinhas. Os costumes locais, superficialmente tocados por uma igreja católica que o advento da independência colocara fora de jogo, eram muito brandos,  o que favorecia um convívio mais livre e saudável entre os jovens. Nos fins de semana ele voltava a Bissau para informar-se das notícias da família.

Aqui, de forma inesperada, ele começou a frequentar a missão católica local onde fez amizade com uma diocesana brasileira (Irma Beatriz) que lhe ensinava a arte de tocar violão com a Bíblia por baixo e, também, começou a colaborar nas atividades da Juventude do partido (JAAC) através de colegas que faziam parte da sua direção regional e, por esta via, circulava muito entre as aldeias da zona, integrando, por vezes, as comissões de redação no decorrer das conferências do partido que se organizavam todos os anos.

Se bem que colaborasse com a Juventude [do PAIGC], no seu forro íntimo, detestava o partido pelos crimes cometidos na sua terra natal e tinha guardada dentro de si a promessa de nunca integrar as suas fileiras. Estes encontros, já sem qualquer interesse político, eram momentos de verdadeiras orgias festivas onde as bebedeiras eram uma constante. Não era raro acontecer em plena reunião que grande parte dos distintos camaradas delegados estivesse a dormir numa boa, embalados pela monotonia dos discursos e pelo vinho de caju, abundante na região. Sem o saber, esta sua aparente adesão viria a ser importante para a obtenção da bolsa de estudos.

Dois anos mais tarde, o Chiquinho fez o pedido da bolsa para o estrangeiro, com boas referências da comissão regional da juventude de que fazia parte, ainda assim, só viria a ser atendido em 1985. Neste ano, ele fez parte do grupo de estudantes contemplados com bolsa de estudos para a URSS.

Depois de ter encabeçado durante muitos anos a sua lista de preferências, curiosamente, [a URSS] já não era o país que mais desejava, mas seria uma grande sorte se conseguisse partir. Durante alguns meses reinou a dúvida e a incerteza quanto à viagem, devido a informações contraditórias e às mudanças de última hora nas listas de bolseiros. Ele acreditava tratar-se da tal “sétima sorte” de que tanto ouvira falar na sua aldeia, durante as férias.

Pensando bem, havia muito tempo que convivia com ela, a sétima sorte, desde os dias em que ainda criança, armado com um simples bastão, seguia atrás de manadas de gado bovino em louca correria, fugindo das rajadas de vento carregadas de chuva, pelas bolanhas de Berecolon, zonas deixadas há muito para a gente do mato ou quando se pendurava escondido, nas traseiras de um velho Unimog que ia buscar água para a tropa em Contuboel, no rio Geba, a uma distância de 30 km, colocando o seu amigo Dias perante o facto consumado.


(Continua)

[Fixação / revisão de texto, L.G.]

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Nota do editor:
 
Último poste da série 23 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7986: Memórias do Chico, menino e moço (24): Versos da juventude (Kiev, 1987/90; Bissau, 1990) (Cherno Baldé)