1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Julho de 2018:
Queridos amigos,
Aqui está uma boa oportunidade para os interessados em escravatura e trabalho forçado saberem mais a preços módicos: o velho tráfico nas suas condições de transporte, mas também na Costa francesa dos somalis e com incidência em Moçambique e saber mais sobre a intervenção dos Países Baixos no tráfico atlântico de escravos. Extinta formalmente a escravatura, ela manteve-se com outros nomes e daí a análise que se pode ler sobre a mão-de-obra para a cultura do cacau em São Tomé e Príncipe ou os contornos do recrutamento para o trabalho forçado na Companhia dos Diamantes de Angola.
Um abraço do
Mário
Trabalho forçado africano, o caminho da ida
Beja Santos
“Trabalho forçado africano, o caminho da ida”, com coordenação do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto, Edições Húmus, 2009, acolhe um conjunto de trabalhos centrados sobre o caminho da ida, como observa José Capela: o percurso pluriforme que vai da modalidade de tráfico a partir das costas africanas para o Atlântico até ao circuito dos recrutamentos coloniais compulsivos.
Daí o leque de análises: os “contratados” para a cultura do cacau em São Tomé e Príncipe, o recrutamento para o trabalho forçado na Companhia dos Diamantes de Angola, o tráfico de escravos a partir da Costa francesa dos somalis nas datas tardias de finais do século XIX, atingindo a colónia de Moçambique.
Mas há ainda mais, precede este trabalho forçado três séculos de comércio negreiro ilícito e daí o estudo das condições de transporte de escravos no Atlântico Sul durante o século XVII; a intervenção dos Países Baixos no tráfico atlântico de escravos e a mão-de-obra fornecida pela Costa da Mina à área servida pelo porto do Recife entre fins do século XVII e a primeira metade do século XVIII.
O leitor interessado por estas matérias encontrará análises de primeira água. Logo a investigação de Arlindo Caldeira sobre as condições de transporte negreiro do Atlântico Sul durante o século XVII. Escreve, em dado passo:
“O desembarque de multidões de africanos esqueléticos, que faz parte da iconografia da escravatura, não se afasta, em muitos casos, da realidade, mas resulta de múltiplos factores e não apenas da escassez de comida a bordo. A razão principal tem a ver com as condições de saúde. Muitos dos escravos chegavam ao local de embarque bastante debilitados pelas enfermidades e pelo esforço do longo percurso que os trouxera até aí. Mas, mesmo quando não eram atingidos por doenças graves, os escravos embarcados, quase todos criados longe do Litoral e tendo de enfrentar agora mares agitados (e não raros, tempestades) a bordo de pequenas embarcações, eram afectados por violentas crises de enjoo, com náuseas e vómitos. E, nestes casos, o tipo de alimentação disponível não era seguramente a mais atractiva nem a mais indicada.
Além do enjoo, o pânico e o desespero levavam também muitos a recusarem deliberadamente a comida, como forma de anteciparem uma morte que lhes parecia próxima e ainda mais terrível (…) Um índice significativo das condições de vida a bordo é o das taxas de mortalidade. A mortalidade a bordo revela-se, de uma forma geral, chocantemente alta. Uma doença contagiosa galopante ou um percalço que alargue excessivamente a duração da viagem podiam revelar-se catastróficos. Mas, em contrapartida, as condições de navegação favoráveis, diminuindo o tempo da ligação transoceânica eram, quase sempre, bastante auspiciosas”.
No trabalho de Maciel Santos sobre a compra dos “contratados” para São Tomé avultam aspetos muito interessantes. Logo a conjuntura:
“Durante a década de 1890, a colónia portuguesa de São Tomé e Príncipe tornou-se um dos maiores produtores mundiais de cacau. Entre 1894 e 1903, a sua produção cacaueira teve uma taxa de crescimento anual de 15,5% (contra 1,9% do Equador e 8,8% do Brasil). Este crescimento – o maior de todos os produtores com quotas de mercado entre os 10% e os 20% – levou a que a ponderação de São Tomé no mercado mundial tivesse passado, entre esses anos, de cerca de 9% a 18%.
A intensificação da produção do arquipélago esteve associada a uma fase de prosperidade pregando parte dos capitais aí investidos. Entre 1875 e 1903, a cotação do cacau nos grandes centros de consumo não teve uma tendência continuada de alta. No entanto, para capitais agrícolas produzindo para o mercado mundial, o lucro consiste numa diferença entre preços: o que regula o mercado e o preço individual de produção. Este último era tendencialmente mais baixo no arquipélago.
Devido à desflorestação recente, os cacaueiros das ilhas deram durante anos produções por hectare superiores às da maioria dos centros produtores mais antigos, da América Central e do Sul”.
A investigação aprofunda a natureza do recrutamento, o porquê da escolha dos “angola”, o processo do “resgate”, a produção de escravos pelas mercadorias, tudo para concluir a existência de uma correlação entre a expetativa de rendas e a procura de escravos, processou-se uma oferta de escravos fora da ordem colonial (daí a ficção jurídica do “resgate”), a única solução jurídica para São Tomé.
Recorde-se que a editora Campo das Letras já publicara com a coordenação do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto dois outros importantes trabalhos correlativos: Trabalho forçado africano, Experiências coloniais comparadas e Trabalho forçado africano, Articulações com o poder político.
Aproveita-se a oportunidade para se publicitar o importante site do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto que dá informação sobre os conteúdos da primorosa revista Africana Studia, disponível a preços muito acessíveis.
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Nota do editor
Último poste da série de 22 de março de 2021 >
Guiné 61/74 - P22025: Notas de leitura (1348): "A Batalha do Quitafine", por José Francisco Nico; edição de autor, 2020 (2) (Mário Beja Santos)