Ministério do Exército > Praças nas Fileiras > EPI [, Escola Prática de Infantaria, Mafra] > Bilhete de Identidade militar do João Francisco Crisóstomo, soldado cadete nº 1064/64, emitido em 20 de abril de 1964. Nº de matrícula: E-86804. O Comandante, assinatura ilegível [, Manuel Ribeiro de Faria, foi cor inf, foi o comandante da EPI, de 8/1/1963 a 25/9/1969] [Anotações: Grupo sanguíneo B].
Depois de nove anos de preparação seminarística para uma vida de “missionário" [, passando por Montariol, Varatojo e Leiria], cheguei à conclusão que não era isso o que queria para o resto da minha vida. E com 19 anos ainda resolvi sair do convento e viver o meu futuro como civil.
Nessa altura Portugal estava já há vários anos envolvido nas “guerras ultramarinas”, sendo obrigatório o serviço militar. Quando saí, a primeira coisa que experimentei foi a dificuldade de arranjar qualquer trabalho. A resposta era sempre a mesma: "Temos com certeza lugar para si, mas tem de fazer primeiro o seu serviço militar".
Eu teria que esperar para ser “chamado”, o que me diziam ia levar ainda de um a dois anos. Podia, assim me foi dito, adiantar o meu ingresso, apresentando-me como “voluntário”. Não me apetecia estar a apresentar-me como voluntário, mas a verdade é que eu "não tinha meios” de subsistência e não queria estar um ou dois anos a depender de meu pais.
Além disso, pensava eu com alguma acertada visão, da maneira como as coisas se apresentavam, quanto mais tarde eu fosse para a tropa, pior seria a situação. No quartel de Santarém, onde me fui informar quando é que seria chamado, disseram-me que se eu quisesse apresentar-me como voluntário, eu podia fazê-lo, mesmo sem a autorização escrita de meus pais. E foi então isso o que resolvi fazer, contra a vontade de meus pais que, talvez esperançados nalgum milagre que me livrasse do serviço militar, se recusaram a dar-me por escrito o seu consentimento.
Notas da agenda do soldado-instruendo João Crisóstomo [dias 26 e 27 de janeiro de 1964] |
E lembro ,vagamente já, o que foi depois durante seis meses esse período de preparação. Não me lembro bem a ordem cronológica da minha estadia na tropa antes de ir para a Madeira, mas creio que de Mafra fui para Beja onde passei uns meses, preparando um pelotão de recrutas.
Mafra > EPI > COM > 1º Turno > 3ª Companhia > 5º Pelotão > 27 de janeiro de 1964, dia de São João Crisóstomo > Cópia das notas da agenda do soldado cadete João Crisóstomo... Horário e descrição das actividades do primeiro dia onde começo por chegar atrasado ao pequeno almoço e apanhar primeiro raspanete: 6,15 - Levantar | 7.10 - Pequeno almoço (atrasado) e 1º [raspanete] | 7.35 - 1ª instrução | 12.10 - 1º almoço (ótimo) | 13.20 - Instrução da tarde | 16.20 - Fim da instrução da tarde | 19.00 - Jantar (ótimo) | 21.30 - Cama.
No final do curso, como sucedia frequentemente, também eu recebi um "presente” de despedida destes recrutas: ainda hoje conservo com muita estima um cartão assinado por todos e uma pequena salva de prata com os dizeres ” Recordação dos recrutas do ano de 1964 do 2.º pelotão, "Os Terríveis” Recordo-me tê-los deixado escolher um apelido e dentre os vários nomes propostos,— eu puxava por “Viriatos”-- foi o de “Terríveis” que se quiseram chamar.
Encontro com o Capitão Pires que viria a ser o comandante da CCaç 1439.
Não sei qual era o critério, mas sei que fui um dos escolhidos para ir fazer um chamado "curso de Ranger" em Lamego, no CIOE [, Centro de Instrução de Operações Especiais]. E aqui valeu-me o facto de na minha caderneta constar a minha situação de ingressado no serviço militar como “voluntário”.
Embora não fizesse nada por amor à causa, eu estava bem consciente que me devia preparar e estar em boa forma para o que desse e viesse a seguir, fosse na metrópole ou, quase certo, numa das nossas chamadas então províncias ultramarinas. E por isso fazia um esforço no sentido de preparação física, independentemente de os outros fazerem ou não o mesmo. E tinha satisfação em verificar que na maioria das ”provas" eu estava sempre entre os primeiros.
Excepto numa: a prova ou teste do “galho”: tínhamos de saltar de uma plataforma para um corte dum ramo duma árvore, a cerca de um metro de distância, para provar a nossa ausência de medos e coisas assim. Já me tinham falado neste "galho" e que havia muitos que tinham falhado essa prova e consequentemente tinham sido postos de lado para qualquer promoção.
Era um dos exercícios a que éramos frequentemente sujeitos. A primeira vez que me vi em cima da plataforma, tive medo, mas disse para mim mesmo que se os outros o faziam..., eu também o podia fazer. Enchi-me de “coragem” e lá me atirei para o galho e daí deixei-me escorregar devagar pelo tranco abaixo para o chão. E juntei-me aos outros que esperavam a sua vez .
Só depois de, com sucesso ou não, todos terem "feito o galho” é que prosseguiamos para o próximo teste. Mas a seguir a mim nem todos tiveram a mesma sorte ou sucesso que eu tive: houve um que não saltou o suficiente e, sem conseguir alcançar o galho, caiu no meio do chão e aí ficou como se tivesse perdido os sentidos; veio uma maca, levaram-no e nunca mais ouvi falar dele.
Um outro conseguiu agarrar-se ao galho, mas depois, ainda agarrado ao galho, começou a deitar espuma pela boca… Depois disso dois ou três recusaram-se a saltar...Mas como era a primeira vez nada lhes sucedeu, excepto de que “na próxima vez tinham de ter mais coragem”…
Na tal próxima vez eu fui um dos que se recusaram a saltar, apesar das insistências do “chefe do grupo” , tanto mais que eu já o tinha feito na primeira vez.
Nas próximas vezes sucedeu o mesmo e passadas duas ou três semanas "fui chamado”: que eu estava a dar mau exemplo aos outros e não sei que mais. Expliquei que a razão de eu me negar a saltar o galho, não era pelo medo de o fazer, mas porque achava que era um exercício que não ajudava nada o melhoramento das condições físicas de ninguém e era um grande perigo como tinha sido provado várias vezes. Mais: que se podia ver em todos os outros exercícios o meu esforço e empenho exemplar; ao fim e ao cabo, disse eu, como pode ver "eu até sou 'voluntário' quando eu podia ter fugido para a França, como muitos estão a fazer".
Na prova final, afirmei que eu "faria o galho" e, se me recusasse aceitaria as consequências. Não me chatearam mais; e parece-me que a mais ninguém quando se fazia o “galho”, deixando o saltar ou não ao alvitre de cada um; havia quem fizesse disso ocasião para mostrar o seu machismo e coragem invulgar.
No dia da prova final o alferes lá estava, papel na mão a notar e verificar quem saltava… Quando foi a minha vez saltei e, agarrado ao galho, olhei bem para ele, para que confirmasse o meu cumprimento do que eu tinha prometido fazer…
Deste curso guardei uma foto com todos os participantes. Junto-a pois talvez seja de interesse para muitos que como eu foram para a Guiné. Entre os que consigo recordar está (o primeiro da turma D) o saudoso Furriel [António dos Santos] Mano, (Post 15998 de 21 de Abril de 2016), da minha companhia CCaç 1439, que viria a ser vítima duma mina a 6 de Outubro de 1966 (**).
Nessa altura procurava-se uma foto dele que eu pude facilitar; a esta 1ª foto pode-se juntar esta 2ª foto e outra em que ele também aparece, de fácil identificação.
Madeira > Funchal > 1 de junho de 1965 > CCAÇ 1439 > Jantar de despedida na Feira do Marítimo > António Mano, no lado esquerdo , de mão no queixo; no lado direito: eu, o furriel Lopes, o furriel vagomestre, cujo nome me esqueci, e o furriel Bonifácio, meu colega de seminário, também quase vizinho, natural da Lourinhã.
O outro acontecimento, que lembro bem de Lamego foi ter aqui encontrado um tenente muito simpático com quem eu e o meu colega Ilídio (, estávamos organizados em parelhas,) falávamos de vez em quando. E lembro que num dos dias do "desenrasquem-se como melhor puderem", este tenente, também a fazer o curso de ranger, penso eu, apareceu com uma galinha, que eu não sei onde ele a arranjou... Só nos disse que a “arranjássemos” e depois seria para os três…
Foi nessa altura que
nos foi dado a possibilidade de declararmos as nossas preferências ou escolhas para
onde gostaríamos de ser colocados. Ainda
hoje não sei da importância dada à nossa
escolha. Mas sei que, passados tempos, vim a saber que tinha sido colocado na Madeira, e o
nosso comandante seria o Capitão Amândio Pires (sic), o mesmo tenente
que eu conhecia e a quem eu tinha ajudado a assar a galinha no
meio do campo , numa das nossos "exercícios de sobrevivência”.
A viagem para a Madeira foi no navio Funchal, novinho em folha, parece, com estabilizadores, assim me explicaram, para menos balanços. E foi-nos dado viajar em "primeira classe”, coisa que eu nunca tinha experimentado na vida…
Sei que apesar de toda esta última palavra em “estabilização" do navio, a maior parte de nós, eu incluído, passamos a viagem "deitados de barriga para baixo” … só me levantei já perto do Funchal.
Lamego > CIOE > 1964 > Curso de Operações Especiais C1 > Fotos do pessoal das 4 turmas (A, B, C e D). Nesta foto é fácil reconhecer alguns indivíduos que serão mais tarde camaradas da Guiné e de outros TO.
Lamego > CIOE > 1964 > Curso de Operações Especiais C1 >, CIOE > 1964 > Turma B a que pertencia o João CRISÓSTOMO (, aqui assinalado com cercadura a vermelho). O furriel Mano pertencia à turma D (o primeiro de cima, a contar da esquerda também assinado com um rectângulo a vermelho).
(*) Último poste da série > 9 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P21985: CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67) : a “história” como eu a lembro e vivi ( João Crisóstomo, ex-alf mil, Nova Iorque) - Parte I: afinal, não consegui esquer...
1 comentário:
João, quantos centenas, milhares de jovens não sairam, no nosso tempo, dos seminários da Igreja Católica, diocesanos e regulares (como os teus, chamados "seráficos", ou sejam, das ordens religiosas franciscanas), directamente para a guerra colonial ?
Fora das capitais de distrito, não havia hipóteses de ter acesso ao "ensino liceal", depois de feita a 4ª classe... Na "santa parvónia" deste país, em pleno Estado Novo, também não havia muitos colégios privados... E os que apareceram foi só depois da II Guerra Mundial...
E a Igreja Católica acabava por ter, na província, duas fileiras para a eduação dos jovens da nossa geração: (i) os seminários, para os filhos da grande maioria; e (ii) os colégios, muitos deles locais, em regime de externato, para os filhos da pequena e média burguesia...
Recordo-me do nosso padre,aliás, vigário, António Escudeira fazer a promoção do seu Externato Dom Lourenço, na Lourinhã, incentivando, nas prédicas dominicais, os seus paroquianos, pequenos comerciantes, pequenos e médios agricultores e pescadores, pequeno funcionalismo público, gente das artes e ofícios: "Caros paroquianos, as melhores terras e casas que podem deixar aos vossos filhos... são os estudos!"...
Tinha razão o padre Escudeiro, a quem estou grato pela sua amizade e conselho...
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