sexta-feira, 19 de março de 2021

Guiné 61/74 - P22017: CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67): A “história” como eu a lembro e vivi (João Crisóstomo, ex-alf mil, Nova Iorque) - Parte II: Do seminário a Mafra [EPI], Beja e Lamego [CIOE]


Ministério do Exército > Praças nas Fileiras > EPI [, Escola Prática de Infantaria, Mafra] > Bilhete de Identidade militar do João Francisco Crisóstomo, soldado cadete nº 1064/64, emitido em 20 de abril de 1964. Nº de matrícula: E-86804. O Comandante, assinatura ilegível [, Manuel Ribeiro de Faria, foi cor inf, foi o comandante da EPI, de 8/1/1963 a 25/9/1969] [Anotações: Grupo sanguíneo B].


1. Continuação da publicação da série CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67) : a “história” como eu a lembro e vivi ( João Crisóstomo, ex-alf mil, Nova Iorque) (*)

O  João Crisóstomo é um luso-americano, natural de Paradas, A-dos-Cunhados,  Torres Vedras, conhecido ativista de causas que muito nos dizem, a nós, portugueses: Foz Côa, Timor Leste, Aristides Sousa Mendes... 

Régulo da Tabanca da Diáspora Lusófona, foi alf mil, CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67): vive desde 1975 em Nova Iorque; é casado, em segundas núpcias, desde 2013, com a nossa amiga eslovena, Vilma Kracun]. Tem cerca de 135 referências no nosso blogue.


Parte II - Do convento franciscano a Mafra [EPI], 
Beja e Lamego [CIOE]


Depois de nove anos de preparação seminarística para uma  vida de “missionário" [, passando por Montariol, Varatojo e Leiria], cheguei à conclusão que não era  isso  o que queria para o resto da minha vida.  E com 19 anos ainda resolvi sair do convento e viver  o meu futuro como civil. 

Nessa altura Portugal  estava  já há vários anos  envolvido nas “guerras ultramarinas”,  sendo obrigatório o  serviço militar.  Quando saí,  a primeira coisa que experimentei foi a dificuldade de arranjar qualquer  trabalho. A resposta era sempre a mesma: "Temos com certeza  lugar para si, mas tem de fazer primeiro o seu serviço militar".

Eu teria que esperar para ser “chamado”, o que me diziam ia levar ainda de um a dois anos. Podia, assim  me foi dito, adiantar o meu ingresso, apresentando-me como “voluntário”. Não me apetecia estar a apresentar-me como voluntário,  mas a verdade é que  eu "não tinha meios” de subsistência  e não queria estar um ou dois anos  a depender de meu pais.  

Além disso, pensava eu com alguma acertada visão,  da maneira como as coisas se apresentavam,  quanto mais tarde eu fosse para a tropa, pior seria a situação. No quartel de Santarém, onde me fui  informar quando é que seria chamado, disseram-me que se eu quisesse apresentar-me como voluntário, eu podia  fazê-lo, mesmo sem a autorização escrita de meus pais. E foi então  isso o que resolvi fazer, contra a vontade de meus pais que, talvez esperançados nalgum milagre que me livrasse do serviço militar,  se recusaram a  dar-me por escrito o seu consentimento.


Notas da agenda do soldado-instruendo João 
Crisóstomo [dias 26 e 27 de janeiro  de 1964]

No dia 26 de Janeiro de 1964  cheguei  a Mafra,  por volta das  18 horas,  conforme instruções recebidas, mas só dei entrada na EPI às 11.30 da noite: lembro o entrar no portão,  a fila,  o “exame”... e depois  ter recebido um conjunto de “fardamento”...

E  lembro ,vagamente já,  o que foi depois durante seis meses  esse período de preparação. Não me lembro bem a ordem cronológica da minha estadia na tropa  antes de ir para a Madeira, mas creio que de Mafra fui para Beja onde passei uns meses, preparando um pelotão de recrutas. 


Mafra > EPI > COM > 1º Turno  > 3ª Companhia > 5º Pelotão > 27 de janeiro de 1964, dia de São João Crisóstomo > Cópia das notas da agenda do soldado cadete João Crisóstomo... Horário e descrição das actividades do  primeiro dia  onde começo por chegar atrasado ao pequeno almoço e apanhar   primeiro raspanete:  6,15 - Levantar |  7.10 - Pequeno almoço (atrasado) e 1º [raspanete] |  7.35 - 1ª instrução | 12.10 - 1º almoço (ótimo) | 13.20 - Instrução da tarde | 16.20 - Fim da instrução da tarde | 19.00 - Jantar (ótimo) | 21.30 - Cama.

No final do curso, como sucedia frequentemente, também  eu recebi um "presente” de despedida destes recrutas: ainda hoje conservo com muita estima um cartão assinado por todos e uma pequena salva de prata com os dizeres ” Recordação  dos recrutas do ano de 1964 do 2.º pelotão, "Os Terríveis”  Recordo-me  tê-los deixado escolher um apelido  e dentre os vários nomes propostos,— eu puxava por “Viriatos”--  foi o de “Terríveis” que se quiseram chamar.

Lamego:

Encontro com o Capitão Pires que viria a ser o comandante  da CCaç 1439.

 

 Não sei qual era o critério, mas sei que fui um dos escolhidos para  ir fazer um chamado "curso de Ranger" em Lamego, no CIOE [, Centro de Instrução de Operações Especiais].  E aqui valeu-me o facto de na minha caderneta constar a minha situação de ingressado no serviço militar como “voluntário”. 

Embora não fizesse nada por amor   à causa, eu estava bem consciente que me devia preparar e estar em boa forma para o que desse e viesse a seguir, fosse na metrópole  ou, quase certo, numa das nossas chamadas então províncias ultramarinas. E por isso fazia um esforço no sentido de preparação física, independentemente de os outros fazerem ou não o mesmo. E tinha satisfação em verificar que na maioria das ”provas" eu estava sempre entre os primeiros.

Excepto numa: a prova ou teste do “galho”: tínhamos de saltar de uma plataforma para um corte dum ramo duma árvore, a cerca de um metro de distância,  para provar a nossa ausência de medos e coisas assim.  Já me tinham falado neste "galho" e que havia muitos que tinham falhado essa prova e consequentemente tinham sido postos de lado para qualquer promoção.  

Era um dos exercícios a que éramos frequentemente sujeitos. A primeira vez que me vi em cima da plataforma,  tive medo, mas disse para mim mesmo que se os outros o faziam..., eu também  o podia fazer. Enchi-me de “coragem”  e lá me atirei  para o galho e daí deixei-me escorregar devagar  pelo tranco abaixo para o chão. E juntei-me aos outros que esperavam a sua vez .  

Só depois de, com sucesso ou não,  todos terem "feito o galho” é  que prosseguiamos para o próximo teste. Mas a seguir a mim  nem todos  tiveram a mesma sorte ou sucesso que eu tive:  houve um que não saltou o suficiente e, sem conseguir alcançar o galho,  caiu no meio do chão e aí ficou como se tivesse perdido os  sentidos; veio uma maca, levaram-no e nunca mais  ouvi falar dele. 

Um outro conseguiu agarrar-se ao galho, mas depois, ainda  agarrado ao galho,  começou a deitar espuma pela boca… Depois disso dois ou três recusaram-se a saltar...Mas como era a primeira vez nada lhes sucedeu, excepto de que “na próxima vez tinham de ter mais coragem”…    

Na tal próxima vez eu fui um dos que se  recusaram  a saltar, apesar das insistências do “chefe do grupo” , tanto mais que eu já o tinha feito na primeira vez.  

Nas  próximas vezes sucedeu o mesmo e passadas duas ou três semanas "fui chamado”: que eu estava a dar mau exemplo aos outros   e não sei que mais. Expliquei que a razão de eu me negar a saltar o galho,  não era pelo medo  de o fazer, mas  porque achava que era um exercício que não  ajudava nada o melhoramento das condições físicas de ninguém e era um grande perigo como tinha sido provado várias vezes. Mais: que se podia ver em todos os outros exercícios o meu esforço e empenho exemplar;  ao fim e ao cabo, disse eu, como pode ver "eu até sou 'voluntário' quando eu podia ter fugido para a França, como muitos estão a fazer".     

Na prova  final, afirmei que  eu "faria o galho" e,  se me recusasse  aceitaria as consequências. Não me chatearam  mais; e  parece-me que a mais ninguém quando se fazia o “galho”, deixando o saltar ou não ao alvitre de cada um; havia quem fizesse disso ocasião para mostrar  o seu machismo e  coragem invulgar.    

No dia da prova  final o alferes lá estava, papel na mão a notar e verificar quem  saltava… Quando foi a minha vez saltei e,  agarrado ao galho,  olhei  bem para ele, para que confirmasse o meu cumprimento do que eu tinha prometido fazer…

Deste curso guardei uma  foto  com todos os participantes. Junto-a pois talvez seja de interesse para muitos que  como eu foram para a Guiné.  Entre os que consigo recordar está (o primeiro da turma D)  o saudoso Furriel  [António dos Santos] Mano, (Post 15998 de 21 de Abril de 2016),  da minha companhia CCaç 1439, que viria a ser vítima duma mina a 6 de Outubro de 1966 (**).  

Nessa altura procurava-se uma foto dele que eu pude facilitar; a esta 1ª foto pode-se juntar esta 2ª foto  e outra em que ele também aparece, de fácil identificação.



 Madeira > Funchal > 1 de junho de 1965 > CCAÇ 1439 > Jantar de despedida na Feira do Marítimo > António Mano,  no lado esquerdo , de mão no queixo; no lado direito: eu, o furriel Lopes,  o furriel vagomestre, cujo nome me esqueci, e o furriel Bonifácio, meu  colega de seminário,  também quase vizinho, natural da Lourinhã.  

O outro acontecimento,  que lembro bem de Lamego  foi ter aqui encontrado um tenente muito simpático com quem eu e o meu colega Ilídio (, estávamos organizados em parelhas,)  falávamos  de vez em quando. E lembro que num dos dias  do "desenrasquem-se  como melhor puderem", este tenente,  também a fazer o curso de ranger,  penso eu,   apareceu com uma galinha, que eu não sei onde ele a arranjou... Só nos disse  que a “arranjássemos” e depois seria para os três… 

Foi nessa altura que nos foi dado a possibilidade de declararmos as nossas preferências ou  escolhas para onde gostaríamos de ser colocados.  Ainda hoje não sei  da importância dada à nossa escolha.  Mas sei que,   passados tempos, vim a saber que tinha sido colocado na Madeira, e o nosso comandante seria  o Capitão Amândio Pires (sic), o mesmo tenente  que eu conhecia e a quem eu  tinha ajudado  a assar a galinha no meio do campo , numa das nossos "exercícios de sobrevivência”. 

A viagem para a Madeira  foi no navio Funchal, novinho em folha,  parece, com estabilizadores, assim me explicaram, para menos balanços. E foi-nos dado viajar em "primeira classe”,  coisa que eu nunca tinha experimentado na vida… 

Sei que apesar de  toda esta última palavra em  “estabilização"   do  navio,  a maior  parte de nós, eu incluído, passamos a viagem "deitados de barriga para baixo” … só me levantei já perto do Funchal.


Lamego > CIOE > 1964 > Curso de Operações Especiais C1 > Fotos do pessoal das 4 turmas (A, B, C e D). Nesta  foto  é fácil reconhecer alguns indivíduos que serão mais tarde  camaradas da Guiné e  de outros TO.






Lamego > CIOE > 1964 > Curso de Operações Especiais C1 >
, CIOE > 1964 > Turma B  a que pertencia o João CRISÓSTOMO (, aqui assinalado com cercadura a vermelho). O furriel Mano pertencia à turma D (o primeiro de cima, a contar da esquerda também assinado com um rectângulo a vermelho).
 
As outras fotos  a seguir mostram alguns momentos da  minha vida de “ranger”  em Lamego. 





Lamego > CIOE > 1965 >  A condição de um candidato a "ranger", submetido a duras provas físicas, sob as mais diversas condições atmosféricas (desde o frio, a chuva e a neve)
 
Fotos (e legendas): © João Crisóstomo (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].

(Continua)
 

(**) Vd. postes de 21 de abril de 2016 > Guiné 63/74 - P15998: In Memoriam (253): António dos Santos Mano (Larinho, Torre de Moncorvo, 1943 - Estrada Missirá-Enxalé, 1966), fur mil op esp, CCAÇ 1439 (Enxalé, Missirá e Porto Gole, 1965/67) (Armando Gonçalves / Júlio Martins Pereira / Henrique Matos / João Crisóstomo)

1 comentário:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

João, quantos centenas, milhares de jovens não sairam, no nosso tempo, dos seminários da Igreja Católica, diocesanos e regulares (como os teus, chamados "seráficos", ou sejam, das ordens religiosas franciscanas), directamente para a guerra colonial ?

Fora das capitais de distrito, não havia hipóteses de ter acesso ao "ensino liceal", depois de feita a 4ª classe... Na "santa parvónia" deste país, em pleno Estado Novo, também não havia muitos colégios privados... E os que apareceram foi só depois da II Guerra Mundial...

E a Igreja Católica acabava por ter, na província, duas fileiras para a eduação dos jovens da nossa geração: (i) os seminários, para os filhos da grande maioria; e (ii) os colégios, muitos deles locais, em regime de externato, para os filhos da pequena e média burguesia...

Recordo-me do nosso padre,aliás, vigário, António Escudeira fazer a promoção do seu Externato Dom Lourenço, na Lourinhã, incentivando, nas prédicas dominicais, os seus paroquianos, pequenos comerciantes, pequenos e médios agricultores e pescadores, pequeno funcionalismo público, gente das artes e ofícios: "Caros paroquianos, as melhores terras e casas que podem deixar aos vossos filhos... são os estudos!"...

Tinha razão o padre Escudeiro, a quem estou grato pela sua amizade e conselho...