segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5788: História de vida (27): D. Berta e a Pensão Central de Bissau são instituições internacionais (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Fevereiro de 2010:

Queridos amigos,
Devíamos pedir uma elevada condecoração (pelo menos a do Infante D. Henrique!) para a D. Berta, dados os relevantíssimos serviços prestados ao bem-estar dos portugueses e ao que ela tem feito para manter ao mais alto nível a cordialidade luso-guineense.
Aqui vos deixo, em fotomaton, o meu estado de espírito acerca da D. Berta.

Um abraço do
Mário


D. Berta, tenho tantas saudades suas!

Beja Santos

Escreve uma pessoa um livro intitulado “Mindjer Garandi” e nem se interroga que informações existem sobre a expressão, confia cegamente no que viu e ouviu, no que perguntou e no que consta em alguns papéis. Ora a era digital abriu portas para que se saiba mais e depressa. Por descargo de consciência, fui ao Google onde, entre as consultas possíveis, vi “Pensão D. Berta Bissau”. Foi um estremeção da cabeça aos pés, não sei se choque fotovoltaico ou electromagnético, apareceu-me a D. Berta, o seu eterno sorriso maroto e meigo. A D. Berta e a sua pensão são instituições internacionais, unem continentes, são pessoa acolhedora e espaço residencial único, há décadas.

A D. Berta entrou na minha vida quando casei, em Abril de 1970, em Bissau. Passámos uns dias em casa dos meus padrinho Elzira e Emílio Rosa, a seguir a alguns dias no Grande Hotel, a pretexto da chegada de personalidades, fui avisado quase em cima da hora que tínhamos de sair no dia seguinte. No meio da perplexidade, alguém me recomendou: “Olha, vamos daqui até à Pensão Central, é ali ao lado da Catedral, é certo e seguro que a D. Berta vai desenrascar a situação”. E desenrascou mesmo.

Para quem não sabe, a Pensão Central resistiu à guerra de 1963-1974, este sempre acima de todos os golpes de Estado, guerras civis e estados de sítio. Mesmo quando houve escassez de alimentos, o elementar não faltava na Pensão Central. Com a independência, a Pensão Central tornou-se um espaço de livre-trânsito para todos os cooperantes. Quando ali aterrei em 1991, tanto podia almoçar com holandeses ligados a projectos de saneamento de água em Canchungo como peritos do Banco de Investimentos de África, como jantar com os portugueses da Medicina Tropical ou italianos do Fundo Monetário Internacional. Naquele tempo ainda era possível atravessar meia Bissau a pé à noite, despedia-me da D. Berta e rumava para as instalações da CICER, era uma bela passeata de quase dois quilómetros.

A D. Berta nunca me saiu do coração, estou em crer que nunca saiu de ninguém que comeu ou dormiu naquela pensão. Uma vez, já em Dezembro de 1991, estava eu desesperado com a inércia a que chegara o projecto que me levara à Guiné (criação de uma comissão interministerial de defesa do consumidor, havia decisão do presidente Nino Vieira, o ministro Carlos Borrego criara uma linha de financiamento para as instalações, eu conseguira encontrar uma técnica para coordenar a comissão com o perfil adequado, mas nada mexia, as nomeações não se faziam, não era possível obter a concordância para o início das obras das instalações, sitas no antigo Quartel General), e a D. Berta vendo-me à varanda abatido, chegou ao pé de mim e com voz consoladora, disse-me: “Vá lá, pense na Guiné, que o trouxe cá de novo, pense no bem da nossa gente, o que não sair perfeito hoje dar-lhe-á saudades para voltar mais tarde...”. E o meu estado de espírito mudou. Infelizmente, nada avançou, fizeram-se ainda uns programas televisivos, creio que tudo caiu no olvido.

A D. Berta era tida como uma santa, alegrou a vida de muita gente, transformou o espaço anónimo de uma pensão numa casa de vínculos perduráveis. Só espero que alguém transmita à D. Berta que eu estou pronto para voltar, receber dela um beijinho, sentar-me à varanda, ouvir os sinos da Catedral, o bulício da Avenida Amílcar Cabral, sentir os cheiros do velho mercado, talvez a maresia que vem lá debaixo, do Pidjiquiti. Então, vou fechar os olhos e regressar a 1970, ali a dois passos vou ver entrar alguém que me irá falar num massacre que ocorreu nesse dia no chão manjaco, subo até ao cinema da UDIB, o passeio findará no Museu e no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, onde juntei tantos elementos para os meus livros. Depois abro os olhos, vou sorrir para a D. Berta e dizer-lhe como ela está sempre bonita, ninguém com aquele sorriso poderá envelhecer ou ser esquecido. E, claro está, iremos conversar, ela vai querer saber o que vim fazer à Guiné. Tenho quase a certeza que a vou emocionar com a Viagem do Tangomau. Nada poderá ser impossível para a D. Berta, mesmo ter um tangomau como hóspede...





Fotos retiradas das páginas http://pensaodbertabissau.wordpress.com/ e http://afric-ana.blogspot.com/2008/04/d-berta.html com a devida vénia
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 8 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5777: Notas de leitura (64): Já participamos nos romances dos outros - A Lucidez do Amor, de Tânia Ganho (Beja Santos)

Vd. último poste da série de 30 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5733: História de vida (17): António Marques, ex-Fur Mil At Inf, CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71), um sobrevivente nato (Mário Miguéis / Luís Graça)

1 comentário:

Anónimo disse...

A Dona Berta merecia uma homenagem da embaixada de Portugal em Bissau.

Nem sei se já teria sido feita.

Os anos de carências incríveis de alimentos em Bissau, em que a cooperação portuguesa de professores e outros, não conseguiam fornecer-se em lado nenhum, todos recorriam à "pensão da Berta", e nunca aquela mulher dizia que não tinha espaço, nem comida na panela.

Como se desenrascava ninguem sabia.

Mas toda a gente era servida.

Beja Santos, lindo post. Quem podia levar ao conhecimento dela este teu escrito, podia ser algum dos elementos da AD, onde labuta o Pepito.

Em África, em paz, não há fome, porque quem tem parte com quem não tem ( daí o termo guineense "parti")

Penso que alem do coração dessa senhora ser enorme, havia essa tradição africana, dessa MINDJER GARANDI.

Antº Rosinha