sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2595: Operação Macaréu à Vista - II PARTE (Beja Santos) (22): Meu amor, vai acabar entre nós este Oceano!






Texto do Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), remetido em 27 de Dezembro de 2007:




Operação Macaréu à Vista - II Parte > Episódio XXII

MEU AMOR, VAI ACABAR ENTRE NÓS ESTE OCEANO!
Beja Santos

(i) Fim das insónias, voltou-me o bom humor, tenho cores risonhas

As cartas que envio à Cristina em 23 e 25 de Janeiro abandonaram de vez o tom melancólico, estão agora centradas na esperança do reencontro. Feliz, dou a boa nova do meu restabelecimento. Escrevo a 23: “Sabe-me bem estar neste quarto silencioso da casa dos Payne, onde o único sinal da vida militar são as peças do meu fardamento numa cadeira. Regulei os sonos, deito-me logo a seguir ao jantar, pelas 9h da manhã pequenoalmoço, arranjo-me e vou dar um passeio, habitualmente até ao cais, se estou em condições passo duas horas no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa. Medico-me, almoço e descanso até meio da tarde. Leio, escrevo e como sabes melhor que ninguém falo-te a partir dos Correios. Mais um passeiozinho, vou à Catedral, volto, janto com os Payne, mais medicamentos e cama. Fico muito contente sabendo que já marcaste o casamento civil para 7 de Fevereiro. Esta imensidão do oceano vai finalmente desaparecer. Continuo a pensar que não vou ter férias aí e falei longamente com o David Payne sobre a tua vinda, caso eu me mantenha na região de Bambadinca. Ele acha que se tu queres vir não deves ser frustrada.

Estou muito contente com tudo quanto me comunicas, eu amo-te com todas as minhas forças e fraquezas, eu preciso absolutamente de ti. Sei que tu vais ter muita energia para suportar a incógnita dos próximos meses e por isso digo-te sem hesitar que venhas até Bissau quando quiseres. Por favor, não comprometas o resto dos teus estudos nesta fase, parece-me mais razoável que concluas tudo em Julho ou mesmo em Setembro. Decide o melhor por nós. Se podermos casar aí, gostava que fosse na Igreja de Santo António, e gostava que fosso o Padre Cerqueira a ministrar-nos os sacramentos. Vou escrever a todos os nossos amigos a falar do nosso casamento. Lembra-te que o Infinito Amor está connosco”. Dois dias depois, informo que o David Payne me considera tratado, a grande depressão está a passar, mas ainda sonho em viajar até Lisboa em 19 de Fevereiro: “Parto para Bambadinca amanhã ou depois, levo ainda várias caixas de medicamentos, mas com a obrigação de ir fazendo gradualmente o desmame. Para tratares da minha certidão de baptismo, peço-te que vás à Igreja de Fátima, fui baptizado em finais de Junho de 1945. Agradeço-te a companhia que tens dado ao Casanova, ao Quebá Soncó, ao Fodé e ao Paulo. Ontem, encontrei um oficial de Bambadinca que me deu a informação que houve um pequeno êxito militar na área da Ponta do Inglês, sem derramamento de sangue foram trazidos homens, mulheres e crianças e destruídas as barracas onde eles viviam enquanto agricultavam as bolanhas do Poidom. Tenho ouvido música do Zeca Afonso e do Adriano Correia de Oliveira e para adormecer ponho Bach e Vivaldi, oiço baixinho à noite para não incomodar os Payne. Telefonei ao Ruy e disse-lhe que casaremos a 7, felicitou-nos, o 7, diz ele que é devoto da ciência babilónica, é o número redondo da vida, fico muito contente com este auspício. Ainda vou tentar telefonar-te ao fim da tarde, não posso contar com os Correios de Bambadinca. Pensemos em Fevereiro, a nossa felicidade em Deus, amo-te cada vez mais”.

(ii) O major Cunha Ribeiro no HM 241

É quando vou ter alta que sou informado do desastre pavoroso que vitimou o major Cunha Ribeiro: ele vinha a subir a rampa de Bambadinca num jeep, à frente seguia um camião que iria no dia seguinte levar mercadorias ao Xitole, o camião descomandou-se, veio sobre o jeep que ficou entalado num poilão. Demorou mais de uma hora para ser retirado do jeep, tal o número de ferros retorcidos, saiu com múltiplas fracturas, as pernas escavacadas, os maxilares partidos com contusões graves e hemorragias. Foi operado a 21, visitei-o a 22 ao fim da tarde. Até partir, visitá-lo-ei sempre até 27, dia em que efectivamente regressarei a Bambadinca. Nesse dia, quando me estou a despedir, entraram as senhoras da Cruz Vermelha, com o seu avental imaculado, sempre capitaneadas pela Sr.ª D. Maria Helena Spínola. A mulher do comandante chefe pergunta a Cunha Ribeiro em que lhe pode ser útil e ele responde: “Gostava que me oferecessem a Enciclopédia Britânica, é um sonho de infância, tenho agora aqui tratamento para largos meses, era bom que a Cruz Vermelha cuidasse agora das minhas aspirações culturais”. Mesmo todo fracturado e com o corpo enfaixado, Cunha Ribeiro troçava do destino, punha a ridículo as convenções solenes. A 1 de Fevereiro, escreverei à Cristina pedindo-lhe para o visitar, Cunha Ribeiro tinha a mulher e os filhos pequenos a viver em Braga.

Há pouco tempo resolvi testar a memória do Queta Baldé, perguntando-lhe se tinha recordação das circunstâncias em que se dera este acidente. Isto passou-se ao fim de mais um encontro, desta vez eu pedia-lhe esclarecimentos sobre as povoações que visitávamos regularmente, seja no eixo Xime-Bambadinca, a partir da estrada para Bafatá, em Badora e Cossé, seja ainda entre Bambadinca e Mansambo. Não tinha apontamentos sobre as nossas idas a Bijine, Madina Bonco (residência do régulo Mamadu Sanhá) e Jana, queria recordar o que era a nossa actuação, nesse tempo coube-nos fazer o recenseamento das armas nas tabancas em autodefesa, a pedido da CCS de Bambadinca. Acerca do acidente que vitimara o major Cunha Ribeiro, Queta voltou a surpreender-me com a sua memória: “Nosso alfero, era um camião civil, tinha os travões desarranjados, o dono tinha ido em peregrinação a Meca, mal tinha chegado quando o informaram que ia no dia seguinte numa coluna para o Xitole, na rampa o motor preguiçou, o camião destravou-se, o jeep do major ficou esmagado entre o camião e uma árvore, mesmo à esquina da estrada que levava à casa e aos armazéns do Rendeiro. Ouvimos o major Cunha Ribeiro a gritar a chamar pelo Atalaia (efectivamente, ele era o seu motorista). Vieram os desempanadores e não tivemos coragem de ver mais um morto”. Expliquei ao Queta que ele não tinha morrido, estava de boa saúde, tanto quanto possível, vivendo no Porto, como coronel reformado. Nestas coisas, o Queta dá um sinal de tranquilidade e resignação: “ Graças a Deus, julgava que o major tinha morrido dentro daqueles ferros, quando fechou os olhos e deitava sangue pelo nariz e pelos cantos da boca, julguei que tinha sido chamado para o Paraíso”.

(iii) A descoberta de uma glória guineense, um missionário e um intelectual

No Centro de Estudos da Guiné Portuguesa encontro referências aos jesuítas, e prontamente enviei uma carta ao padre António Fazenda, estudioso das missões dos jesuítas em África. Terei dito algo como isto: “Os jesuítas aparecem no inicio do séc. XVII na ilha de Santiago, eram os padres Baltazar Barreira e Manuel Fernandes e dois auxiliares. O padre Barreira embarcou para a Guiné, andou por Cacheu, Bissau, rio Nuno e Serra Leoa. Acho que vem tudo descrito no livro do padre Fernão Guerreiro “Relação Annual das cousas que fizeram os padres da Companhia de Jesus”. O padre João Delgado e outros voltaram à Guiné em 1608, os jesuítas iam morrendo todos, vitimados pelo clima. Em 1640 havia na Guiné dois padres da Companhia de Jesus. Mas as dificuldades eram insuperáveis e terão abandonado a Guiné depois de 1647. Aqui acabam as minhas informações para si”. A grande surpresa é a descoberta do padre Marcelino Marques de Barros, nascido em Bissau em 1844, professor no colégio das missões em Cernache de Bonjardim, onde faleceu em 1929. Empolgado, começo a folhear os seus trabalhos sobre filologia, etnografia, folclore e corografia guineenses. Foi sócio correspondente da Sociedade de Geografia de Lisboa, tendo escrito no seu boletim. Folheio o seu texto “Guiné Portuguesa ou breve notícia sobre alguns dos seus usos, costumes, línguas e origens de seus povos”, que publicou em 1875. Antes de escrever o seu breve ensaio cita Carlyle: “Em cada objecto há uma inesgotável significação; os olhos vêem conforme os meios que empregam para ver”. Escrevo deliciado no meu caderninho viajante, extraindo o que diz sobre línguas nativas: “A língua mandinga, pela sua incomparável harmonia, elegância e facilidade de pronunciação, é a mais falada da Senegâmbia; e por ser muito cultivada pelos mouros letrados, está elevada a um alto grau de perfeição”. E depois descreve o registo da sua admirável capacidade de observação, fala de saudações, pactos e juramentos, hospitalidade, tabus, vindicta, roubo, rapto, casamento, aborto e infanticídio, aleitamento, circuncisão, costumes agrícolas, costumes guerreiros, doenças (lepra, bexigas, varíola, doença do sono), Deus, alma, fetichismo, habitações, géneros de vida, família e vestuário. Folhei a seguir um livro de 1900, sobre a literatura dos negros, contos cantigas e parábolas, que maravilha, fala do djambatuto, aquela ave que vi tantas vezes em Missirá, descreve o jagudi dizendo que é um abutre muito parecido com o peru, com um grande bico e muito mal encapotado nas suas asas de cor de lama. Passo a seguir para o seu trabalho sobre a língua guineense que ele publicou na Revista Lusitana, dirigida por Leite Vasconcelos. Leio e releio, finalmente encontro alguns códigos para perceber o crioulo, as raízes e os arcaísmos do português adaptado neste ponto da África ocidental: ablução é banho; abjecto é despressionado; aceno é sinal; confusão é tarpadjaçon; dever é obrigaçon; adivinha é dbinha... Nada escapava à curiosidade do padre Marcelino: como é que chegou a mancarra à Guiné, o arvoredo do Sul, a mistura das línguas nativas com o português. Estou a ficar muito cansado, tenho que ir para casa, passo ainda os olhos no texto que Teixeira da Mota elaborou com base numa conferência que aqui fez em 1955, e que está publicado no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa: “No momento presente, apenas um quarto da população civilizada é constituída por brancos, e há cerca de um século apenas havia 16 europeus em Bissau, e o comércio exterior e a navegação estavam praticamente nas mãos de estrangeiros, situação que se manteve até há 30 anos”. Ainda posso pelo museu, a arte nalu, os pássaros dos Bijagós são geniais. Como foi possível a arte portuguesa ter ignorado esta escultura deslumbrante?

(iv) O último jantar com Botelho de Melo e algumas leituras

A 25, vou despedir-me do Botelho de Melo que regressa aos Açores. Jantamos no Pelicano, com a foz do Geba ao fundo. Agradeço-lhe tudo o que fez por mim, as impressões açoreanas nessa noite estão muito vincadas, passo em revista os seres humanos que me acolheram e que me continuam a amparar com o seu estímulo. Falamos da cultura das ilhas, os seus grandes romancistas e poetas, recordo a culinária soberba e as belezas naturais, aquele verde intenso das lavas e das chuvas, as hortênsias iridescentes, as azaléias de cor intensa, as araucárias de grande porte, o porto das Capelas, a beleza genesíaca da costa da Bretenha. E ficamos por aqui, são horas de voltar para a cama. Abraçamo-nos muito, é uma amizade de pedra e cal, o tempo encarregar-se-á de confirmar esta estima profunda.

Continua a ser um mistério ter lido e guardar recordações do que li. Miss Maple é uma velhinha amável com um condão especial para a investigação criminal. Em “O estranho caso da velha curiosa”, de Agatha Christie, tudo começa em Londres, quando Mrs. McGillcuddy, uma sua amiga toma um comboio e assiste durante a viagem a um assassínio. Miss Maple vem colaborar, reconstitui a viagem, descobre que é muito possível que a amiga não tenha delirado. E descobre uma casa em Brackhampton que reúne probabilidade de ser o local onde está o corpo. Recorre então ao auxílio da sua amiga Lucy Eyelesbarrow que irá trabalhar em Rutherford Hall. É lá que de facto está o corpo de uma mulher assassinada, aparentemente ninguém a conhece ali, intervém a polícia, há mais dois assassínios, Miss Maple deslinda o imbróglio.




Da editorial Inquérito li “Noites Brancas”, de Dostoiewski. Um homem deambula por S. Petersburgo, é um homem só, encontra num canal uma jovem, Nastenka. Enceta-se assim uma série de noites com encontros e desencontros, a história de uma grande paixão, paixão essa que une Nastenka a um apaixonado que irá aparecer no final da história. É um Dostoiewski muito diferente daquele que eu lera nos Irmãos Karamazov, profundamente lírico, centrado numa relação sentimental catártica. As ilustrações são da Manuel Ribeiro de Pavia, um grande ilustrador, desenhador e pintor.






Está na hora de regressar. Ainda vou ao mercado comprar especiarias, passo pela Casa Taufik Saad onde descubro banda desenhada recente, tomo um Dakota para Bafatá, depois de amanhã, ainda não sei, vou participar numa batida junto do Buruntoni, a operação “Topázio Valioso”. A guerra vai recomeçar.
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Nota dos editores:

(1) Vd. último poste da série: 22 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2570: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (21): Em Bissau, em tempo de Vesperax, curando uma depressão

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