quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2585: Blogpoesia (8): Viagem sem regresso (José Manuel, Fur Mil Op Esp, CART 6250/72, Mampatá, 1972/74)

1. Texto enviado ontem, através do endereço de correio electrónico Quinta Srª da Graça. Vim a descobrir, através de pesquisa na Net, que a Quinta da Senhora da Graça, com sede em Senhora da Graça, 5030-429 Lobrigos (S. J. Baptista), Santa Marta de Penaguião, distrito de Vila Real, Telef. 254 811 609, era de um camarada nosso, o José Manuel Lopes, autor deste poema.


Viagem sem regresso

não regressar
será o esquecimento
será o vazio
a dor
dor
que já se não sente
o não poder ver a gente
que nos abria o sorriso
e a vontade de amar.

josema
Guiné 1972


2. De facto, confirmei, através de um simples contacto telefónico, que o josema, que assina o poema, era o José Manuel Lopes, produtor de conhecidos e excelentes vinhos DOC, do Douro, e que tem também um turismo de habitação, na sua Quinta da Senhora da Graça. À conversa com ele, disse-me, no essencial o seguinte:

(i) teve conhecimento do nosso blogue, porque viu o programa Câmara Clara, da RTP Dois, da Paula Moura Pinheiro, edição de 24 de Fevereiro de 2004, que foi dedicado à literatura sobre a guerra colonial, e teve dois convidados em estúdio, os escritores Lídia Jorge (autor da Costa dos Murmúrios...) e Carlos Matos Gomes (que assina Carlos Vale Ferraz, o autor de Soldadó); nessa edição, o fundador e editor deste blogue foi entrevistado; o nosso blogue foi amplamente divulgado; o programa passa também na RTP África e na RTP Internacional;

(ii) ficou muito sensibilizado e até emocionado, e foi visitar o blogue de que passou a ser visita diária;

(iii) foi Fur Mil Inf Armas Pesadas, com o curso de Op Esp e a especialidade de Minas e Armadilhas;

(iv) a sua unidade era a CART 6250; esteve sempre em Mampatá, entre 1972 e 1974;

(v) fez segurança aos trabalhos da nova estrada Quebo - Mampatá - Salancaur, que ficou asfaltada antes do 25 de Abril... Tratava-se de uma obra que ia ao encontro da estratégia do Spínola, a da contra-penetração nas regiões libertadas do PAIGC. A obra parou com o 25 de Abril... O novo troço deveria ter uns 30 quilómetros...

(vi) O José Manuel foi inesperadamente mobilizado para a Guiné, já com 18 meses de tropa... Juntou-e à malta da CART 6250, que era constituída por gente do interior (do Alentejo, das Beiras, do norte)... A unidade mobilizadora foi o regimento de Vila Nova de Gaia;

(vii) Depois de Bolama, seguiram em LDG para Buba. onde tuveram logo o baptismod e fogo, como era da "parxe do PAIGC";

(viii) ele e a companhia dele seguiram os acontecimentos de Guileje, e saíram de Mampatá para fazer segurança à CCAV 8530, restantes forças e população civil, que andaram perdidos, nesse perigoso campo de minas, que era todo o corredor de Guileje, montadas umas pelo PAIGC e outras pelas NT; aliás, a sua CART 625o foi uma das unidades que mais minas levantou, durante a guerra e no final da guerra; recorda-se que se pagava mil escudos por cada mina levantada...

(ix) tem histórias fantásticas, como a de um camarada nosso, natural da Régua, que foi encontrado inaninado, desidatrado, doente, no Rio Corubal, numa piroga à deriva, depois de ter fugido de uma zona controlada do PAIGC... Teria sido um dos sobreviventes do desastre do Cheche, na travessia do Rio Corubal, em 6 de Fevereiro de 1969, na sequência da evacuação de Madina do Boé (Oficialmenet não houve sobreviventes!) ... Levado para Conacri, mostrou-se colaborante com o PAIGC e levado para uma zona libertada... Razão por que não estaria em Conacri, na prisão do PAIGC, em 22 de Novembro de 1970, quando os 26 portugueses foram libertados, na sequência da Op Mar Verde... Como tinha liberdade de movimentos, terá decidido mais tarde (em data que o José Manuel não precisou), procurar as NT, seguindo ao longo do Rio Corubal... Foi nessa altura que o encontraram... "Devia ter nais oito anos do que nós... Vive hoje na Régua, e com muitas dificuldades"... Pus a hipótese de ter sido companheiro de infortúnio do nosso morto-vivo do Quirafo, o António da Silva Baptista, que já nos contou que houve, no seu tempo de cativeiro, no Boé, um português que fugiu, seguindo o curso do Corubal... Uma história estranha e misteriosa, que fica por confirmar...

(x) há outras histórias, que vão enriquecer o nosso blogue e a nossa memória, incluindo o período do pós-25 de Abril, em que o José Manuel teve contactos frequentes e intensos com a malta do PAIGC (cujos graduados "andavam sempre com livros e cadernos debaixo do braço e tinham muito nível"); soube do 25 de Abril, quando vinha de uma operação no mato e viu os restantes camaradas, no heliporto de Mampatá, agitadíssimos, muito eufóricos, com os soldados a gritar: "Meu furriel, a guerra acabou, a guerra acabou!"... Isto passou-se a 26 de Abril. A notícia tinha sido escutada na BBC por um dos um militares, que na vida civil era rádio-amador...

(xi) durante a sua comissão , ele próprio costumava andar com um lápis e um caderninho n0 bolso, onde nomeadamente ia escrevendo os seus poemas; tem muitas coisas dessa época, que nunca publicou nem mostrou a ninguém, além de inúmera documentação fotográfica; escreveu versos que eram acompanhados com músicas conhecidas da época, de autores contestatários como o Zeca Afonso; vai-me mandar o Cancioneiro de Mampatá (foi assim que eu logo o baptizei...); inclusive, prontifficou-se a mandar-me um poema por dia...

(xi) durante anos não falou da guerra colonial com ninguém, só mais recentemente foi ao convívio anual do pessoal da CART 6250;

(xii) esteve sempre em Mampatá onde a tropa vivia misturado com a população (maioritariamente, futas-fula), razão por que nunca foram atacados; não tinham artilharia, só mais tarde é que passaram a ter obus 14, que dava apoio às operações de segurança de construção da estrada Quebo-Mampatá-Salancaur... Também aqui, em Salancaur, abriram um destacamento (arame farpado, valas e tendas...);

(xiiii) fala da Guiné com a mesma paixão com que fala do seu Douro (donde nunca mais saiu, desde que regressou da Guiné, em Agosto de 1974)...

Passámos rapidamente a tratar-nos por tu, como velhos camaradas. Convidei-o a integrar a nossa Tabanca Grande, o que aceitou com visível regozijo... Quando puder entregará as fotos da praxe. Fica à espera do filho, para lhe digitalizar as fitos (Ele é um jovem enólogo e está neste momento fazer uma estágio na Austrália).

Convidei-o a assitir ao lançamento do livro do Beja Santos, no dia 6 de Março de 2008, na Sociedade de Geografia de Lisboa... Vai ver se pode. Costuma vir a Lisboa, todos os meses, para fazer entregas de vinhos aos seus clientes.

José Manuel, estás apresentado. Estás em casa, entre amigos e camaradas! Sê bem vindo! Como vês, não há viagens sem regresso... A não ser as da morte. E por falarem regresso, tens histórias fabulosas de Mampatá, escritas por um velhinho, que por lá passou, um anos antes de ti, o nosso camarada Zé Teixeira (2)...L.G.
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Notas de L.G.:

(1) Vd. último poste desta série > 12 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2259: Blogpoesia (7): Nas terras de Darsalam, no Cantanhez, adormeceste, para sempre, como herói, meu querido Sasso (J.L. Mendes Gomes)

(2) Vd. poste de 14 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVI: O meu diário (Zé Teixeira) (fim): Confesso que vi e vivi

1 comentário:

Anónimo disse...

É bom, sabe bem, muito bem mesmo, nesta manhã de primavera adiada e que ontem parecia ter chegado, hoje o astro rei foi-se...abre-se o blogue...aparece um poema- Viagem se regresso... lemos, relemos e digerimos saborosamente...continuamos com a sempre óptima descrição do Luís
No fim não resisto,desisto da pressa, volto a ler o poema e teclo a agradecer esta surpresa...mais uma que, quase,quotidianamente nos vão sendo dadas...até com "casos" a merecerem esclarecimento... Guiné de guiné que veio...enganou-me no esquecimento...e continuava presente...Obrigado e um abraço