segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Guiné 63/74 - P2259: Blogpoesia (7): Nas terras de Darsalam, no Cantanhez, adormeceste, para sempre, como herói, meu querido Sasso (J.L. Mendes Gomes)

Guiné > Região de Tombali > Catió > Álbum fotográfico de Vitor Condeço (ex-Furriel Mil, CCS do BART 1913, Catió 1967/69) > Catió, Quartel > 1968> Foto 36 > "Um Pôr-do-sol visto do edifício do Comando na direcção à Porta de Armas e depósito de géneros".

Foto e legenda: © Vítor Condeço (2007). Direitos reservados.

1. Mensagem do Joaquim Luís Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins (Como, Cachil, Catió, 1964/66) (1), enviada em 7 de Novembro último:


Caríssimo Luís

As bolandas complicadas da vida só hoje me deixaram ver o post de 17 de Julho último em que publicaste o meu Embondeiro do Cachil (2).

As duas palavras que me dedicaste comoveram-me. Pela sinceridade. Obrigado. Por essa razão, ficou por esclarecer, da minha parte, a dúvida que me colocaste. (Sobre se é Embondeiro ou Poilão?) Não foi preciso, porque a explicação apareceu lá, muito clara e fundamentada.

Encontrei, entretanto, um poema que escrevi, quando da morte do nosso camarada alferes Mário Sasso, da minha companhia CCAÇ 728, na operação do Cantanhez. Aqui to deixo para publicares, em sua homenagem, se o entenderes.

O nosso/teu Blogue...continua altamente frutuoso e interessante. Parabéns ao seu mentor e novos colaboradores.

2. Comentário de L.G.:

Mesmo com as "bolandas complicadas da vida" (as bolandas e as bolanhas, acrescento eu), tu conseguistes parar para escrever este terno e fraternal poema a um amigo caído em combate no longínquo Dar es Salam, mata do Cantanhez, Guiné-Bissau, em 5 de Dezembro de 1965, a milhares de quilómetros de Lisboa, Portugal, a norte, onde tu hoje vives, ou da Beira, Moçambique, a sudeste, onde o Mário nasceu...

Só um camarada de guerra consegue escrever, nem lamechices nem sem falso pudor, um poema destes a outro camarada de guerra... Todos nós trouxemos, às costas da nossa memória, os amigos que perdemos lá em baixo... E muitos de nós ainda não conseguiram fazer o luto dessas perdas, vivendo com um contraditório sentimento de culpa a sua tão injusta morte... Porquê ele, e não eu ?...

Joaquim, eu sei que Berlim te chama de vez em quando, mas deixa-me dizer-te que tenho sentido a tua falta no nosso blogue... A tua grandeza de alma, a tua estatura moral e o teu talento literário fazem-nos falta nesta nossa (e tua) Tabanca Grande... Até sempre, Mário, até sempre, Joaquim!

3. Poema > Em memória do Alferes Sasso (3)

por J.L. Mendes Gomes


Estou a ver-te,
no regresso:
Alto, esguio,
óculos escuros.
Tato claro, de corte fino.
Tão vaidoso,
pelas tardinhas de Domingo,
calçada velha acima,
até ao quartel
da velha Évora.
De braço dado,
num corpo só,
com tua moça,
formosa companheira,
boa,
das noitadas do fado,
castiço,
de Lisboa...
de ambos vossa amante.
Que encanto!

Parecieis mesmo
um casal americano,
tranquilo e tão ufano,
pelo meio do casario branco,
do coração alentejano!...

Que alegria!...
Que vontade de viver
de ti transparecia
pela semana inteira,
de olhos presos
à tua amada!...

Eras sempre o primeiro:
nas paradas,
secas, militares
e nos crosses atletas,
sem parar,
pelas estradas ermas,
e sem fim,
de sobreiros tristes,
através dos montes
do Alentejo...

Nos desafios permanentes,
pronto e voluntário,
prós exercícios
mais malucos....
Que pavor!...
da maluqueira militar.

Ora endiabrado trepador
daquele palanque,
alto e estreito,
de cimento...
ora dependurado,
na vertigem alucinante
da corda e da roldana...

Nas caminhadas nocturnas,
por aquele mundo,
de eremitério,
prás emboscadas perdidas,
nas veredas, ao luar,
prós golpes de mão,
temerosos, traiçoeiros,
mesmo a fingir,
tu levavas tão a sério...

Que exemplo vivo,
de vontade louca
de viver
o dia a dia,
tu me deste,
sem saberes!...

Quiseram as sortes
pra ti malvadas,
levar-nos a todos,
p'rá Guiné!...

Que romaria e arraial
havia sempre
à tua beira!...
Com a viola e o acordeão!

Tua voz rouca,
bem timbrada,
a retinir,
os fados todos
de Lisboa,
tão saudosa...
fazia dó!
Encantadora companheira
nas noitadas solitárias,
do Cachil e Catió...

Como lembro
tuas horas de desespero,
que vivias,
tão sincero,
em filosofia permanente,
à procura do sentido
da nossa dor,
e nossa vida, sobre a terra...

Que sentidos
desabafos me fizeste,
nas vésperas
da tua hora derradeira,
tão a sós,
em noitada de cavaqueira,
tão fraterna,
num duelo filosófico
e porfia verdadeira...
olhos presos,
bem abertos,
às belezas de paraíso,
das escravizadas terras africanas
e ao futuro da vida
que tanto amavas!...

Como suspiravas
encontrar
o caminho certo,
iluminado
do viver...

Eis que
no alvorecer duma aurora,
de suave e fresca neblina,
quando o sol
nascia em liberdade,
a oferecer mais um dia
ao mundo
e à desavinda humanidade,

depois duma noite,
sem sentido,
inteirinha
a caminhar,
por entre matas densas
das terras de Dar es Salam... (4)
adormeceste,
para sempre,
como herói...
no regaço
dos teus irmãos,
ali ao pé!...

Nunca mais te esqueceremos!...
Ó eterno amigo,
Ó companheiro
Sempre nosso!...

Até à vista!
Querido Sasso!...


__________________

Notas de L.G.:

(1) Sobre a história da CCAÇ 728, vd. os seguintes posts:

20 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1194: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (1): Os canários, de caqui amarelo

2 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1236: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (2): Do Alentejo à África: do meu tenente ao nosso cabo

20 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1297: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (3): Do navio Timor ao Quartel de Santa Luzia

1 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1330: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (4): Bissau-Bolama-Como, dois dias de viagem em LDG

11 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1359: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (5): Baptismo de fogo a 12 km de Cufar

8 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1411: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (6): Por fim, o capitão...definitivo

22 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1455: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (7): O Sr. Brandão, de Ganjolá, aliás, de Arouca, e a Sra. Sexta-Feira

8 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1502: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (8): Com Bacar Jaló, no Cantanhez, a apanhar com o fogo da Marinha

11 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1582: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (9): O fascínio africano da terra e das gentes (fotos de Vitor Condeço)

29 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1634: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (10): A morte do Alferes Mário Sasso no Cantanhez

5 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1646: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (11): Não foi a mesma Pátria que nos acolheu


(2) Vd. post de 17 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1963: Blogpoesia (1): O embondeiro do Cachil (J. L. Mendes Gomes)

(3) Mário Henriques dos Santos Sasso, Alferes Miliciano, do Exército, morreu em combate na Guine, em 5 de Dezembro de 1965 (Fonte: Liga dos Combatentes > Mortos no Ultramar)

Sobre o nosso camarada, vd. os seguintes posts:

20 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1194: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (1): Os canários, de caqui amarelo

(...) Este é o modesto contributo de um combatente da Guiné, um canário de caqui amarelo, nos anos 64-66. É a minha perspectiva pessoal e muito restrita. Feita de memória, e por isso, sem pretensões de exactidão histórica.

A primeira parte sai dum texto romanesco, em que quero homenagear a memória do meu camarada alferes Mário Sasso. A segunda é extraída duma rudimentar autobiografia, que eu já tinha escrevinhado para os meus netos. (...)


2 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1236: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (2): Do Alentejo à África: do meu tenente ao nosso cabo


(...) O Mário Sasso, um moçambicano (da Beira) radicado há uns bons anos, na boémia e no fado alfacinha, de Lisboa, era o comandante do 1º pelotão. Tinha feito um bom curso em Mafra e, por feitio, tinha de ser o melhor em tudo. Brioso, procurava ter uma conduta semelhante à figura.

Quis ingressar nos comandos, mas o coração não lhe aguentaria o esforço.Versátil e sensível, tocava viola e acordeão e cantava o fado castiço, ajudado por uma voz rouca, mas afinada. Era o mais citadino dos quatro [alferes da CCAÇ 728]. (...)


29 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1634: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (10): A morte do Alferes Mário Sasso no Cantanhez


(...) A CCAÇ 728, aproveitando a maré-cheia, saíu, à noitinha, do cais de Catió a bordo de uma LDM; atravessou o estuário do Cacine e foi deixada, nas primeiras horas da madrugada, algures, em terra firme, do território inimigo.

Todo o cuidado era pouco. Tocou ao meu pelotão seguir à frente, logo depois do destemido grupo indígena do João Bacar Jaló.

Caminhou-se toda a noite; quando o dia começava a querer alvorecer, estávamos a atravessar a zona, crítica, de Dar es Salam [ou Darsalam].

De repente, alguns tiros caíram sobre o pelotão que seguia na cauda da fila, comandado pelo alferes Sasso.

A resposta foi pronta e, depressa, tudo se calou.

À frente, nada se tinha passado.Só quando o dia nasceu e um helicóptero chegou, tivemos conhecimento de que o Mário Sasso tinha sido atingido com um tiro nas costas que lhe vasou o pulmão e coração. A esperança de sobreviver era pouca… e assim foi.
(...)

(4) Ou Darsalam, segundo a carta de Cacine.

3 comentários:

Ana disse...

Sublime homenagem; Bem Haja!

Luís Graça disse...

Relewmbro o ar pesado do Vilaça (CCaç 726, não estou certo do nº), chegar a Brá e dizer que tinha acabado de chegar do HM241 e de ter estado com o Sasso inerte, em cima de uma tábua.
Conheci o Sasso no Bento e noutros locais de uam passagem dele por Bissau. Aonde quer que estejas um abraço, igual ao que mando ao "Palmeirim" Mendes Gomes por ter arriscado um poema que todos nós gostaríamos de ter escrito.
vb

Joaquim Luís Monteiro Mendes Gomes disse...

Obrigado, Ana, pelas tuas palavras atentas e sensíveis!...
um abraço
MG