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Queridos amigos,
Junto recensão acerca de uma das mais prodigiosas obras do José Martins Garcia, que foi nosso camarada da Guiné.
Um abraço do
Mário
Katafaraum é uma nação
Beja Santos
O soldado-cadete Ramalho, e depois alferes Ramalho, é o centro da história. Vem no final do livro que, surpreendentemente, foi encarado como um ajuste de contas com professores universitários, ousadia que lhe terá custado a carreira universitária em Lisboa. Segundo ele escreve em 28 de Abril de 1974, katafaraum ocorreu-lhe depois de ter assistido ao I Encontros dos Professores de Língua e Literatura Portuguesa onde, segundo ele, foram apresentadas algumas das mais ridículas bacoradas que algum mortal pôde escutar. Ele desforrou-se escrevendo um conjunto de crónicas no jornal “República”.
Mas vamos aos feitos da Guiné. Primeiro, o Ramalho anda por Mafra em recruta (recorda-se que alguns parágrafos apareceram na recensão do livro de João de Melo “Os Anos da Guerra”). Destas andanças respiga-se um parágrafo:
- Então, nosso capitão... os seus doutores hoje ‘stão fodidos”
Quem anda em campanha molha-se, corre o risco de ser abalroado pelo inimigo. Nos preparativos militares o inimigo é uma ficção que nunca mais nos saiu da mente, como José Martins Garcia regista:
“O inimigo guarda um conveniente silêncio. A ponte avizinhava-se escandalosamente. O pelotão tacticamente conduzido pela bravura do seu comandante, encontrava-se a descoberto, à vista de qualquer observador medíocre, a umas dezenas de metros da ponte, numa paródia de guerra, num grande desperdício de atacantes. O bravo alferes mandou fazer alto, para improvisar a vitória. Foi nessa altura que o semideus do jipe, manhosamente silencioso veio inquirir das grandes manobras. O alferes, em sentido, garantiu que ia ganhar. Mas o semideus queria certificar-se do grau de responsabilidade daqueles bravos. E, vendo o idiota do soldado-cadete ramalho muito entretido a observar a paisagem, berrou:
- Você aí! Está a ouvir?
O Ramalho estava, evidentemente, a ouvir. Encarou o semideus e continuou mudo.
- É consigo que estou a falar, ouviu? Ouviu? Estou a fazer-lhe uma pergunta.
Responda. É uma ordem.
- Ouço – resmungou o outro.
- Mais alto, que não ouço...
- Ouço – berrou o Ramalho.
- Ah ouve! Ouve o quê?
- Estou a ouvir Vossa Excelência.
- Ah! E sabe o que vai fazer?
- Com certeza, Excelência. Vou apanhar o inimigo.”
Temos agora o alferes miliciano Ramalho a chegar a Takiá (será Catió?), parece que está a levar a sério a sua entrada em cena na guerra. Do rigor das imagens passa-se para o surrealismo dos comportamentos, a demência anda à solta. O Ramalho pergunta ao médico sobre o estado de saúde dos oficiais, recebe respostas muito reservadas. Ramalho é oficial de transmissões (tal como José Martins Garcia foi na Guiné), vai fazendo perguntas, recebe respostas doidas. A segurança de Takiá é calamitosa:
“Então o alferes Ramalho, em voz baixa, perguntou ao alferes Mike:
- Em casa de ataque, quem é que defende isto?
- Ora ataque... quer dizer... há uma companhia de cavalaria que não está cá...
- Mas costuma estar?
- Às vezes está... outras não...
- E quando não está?...
- Há o alferes Carril, das auto-metralhadoras... aquele do bigode... Há aqui o gerente que tem um canhão...”
É nisto que sobrevém uma flagelação a Takiá, a guarnição entra em delírio, balbúrdia maior não pode haver. Os alferes Ramalho e Trabuco comem pernas de frango, abrem garrafas de cerveja, falam sobre Sartre e envolvem-se à porrada: “As metralhadoras insistiam na sua interminável competência. Bêbedos, incapazes de se susterem nas pernas, o veterano e o novato chafurdavam na lama”.
Afinal, o Jorge Cabral tem aqui um modelo parodiante. Há que reconhecer que esta centelha de talento é desopilante, é verdade que não nasceu agora mas continua a ser uma arma temível para descrever os frenesins de todos os tempos de todas as guerras. Tal como o desenho de humor, por sinal.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 11 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5622: Notas de leitura (52): Os Anos da Guerra, de João de Melo (6): J. M. Garcia, S. M. Ferreira e Cristóvão de Aguiar (Beja Santos)
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