segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5631: Notas de leitura (53): Katafaraum é uma nação, de José Martins Garcia (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) , com data de 8 de Janeiro de 2010:

Queridos amigos,
Junto recensão acerca de uma das mais prodigiosas obras do José Martins Garcia, que foi nosso camarada da Guiné.

Um abraço do
Mário


Katafaraum é uma nação

Beja Santos

José Martins Garcia dominou diferentes modos e géneros discursivos: romance, conto, poesia, dramaturgia, ensaio e crítica. É surpreendente a mestria com que separou estas diferentes intervenções. Isto para dizer que quanto à guerra onde, segundo os seus críticos, teve uma abordagem original na exploração com sucesso do delírio, da derisão, da paródia, fabricando personagens entre a paranóia e demência, é um universo que dominou as suas atenções em livros que escreveu fundamentalmente nos anos 70. “Katafaraum é uma nação” será provavelmente a última das obras do antes do 25 de Abril e a primeira que se publicou logo a seguir à revolução. Não é imaginável esta paródia publicada na segunda edição (em Maio de 1974) a ter fugido ao crivo da PIDE/DGS.

O soldado-cadete Ramalho, e depois alferes Ramalho, é o centro da história. Vem no final do livro que, surpreendentemente, foi encarado como um ajuste de contas com professores universitários, ousadia que lhe terá custado a carreira universitária em Lisboa. Segundo ele escreve em 28 de Abril de 1974, katafaraum ocorreu-lhe depois de ter assistido ao I Encontros dos Professores de Língua e Literatura Portuguesa onde, segundo ele, foram apresentadas algumas das mais ridículas bacoradas que algum mortal pôde escutar. Ele desforrou-se escrevendo um conjunto de crónicas no jornal “República”.

Mas vamos aos feitos da Guiné. Primeiro, o Ramalho anda por Mafra em recruta (recorda-se que alguns parágrafos apareceram na recensão do livro de João de Melo “Os Anos da Guerra”). Destas andanças respiga-se um parágrafo:

“Barbeados, engraxados e seriamente inócuos, marcharam os soldados-cadetes ao longo das bermas, cordões de uniformes número 3, cinzentos, esfiapados, enodoados por rastejos de recruta, enquanto a raça loura fazedora de turístico sorriso abanava germanismos desde velozes descapotáveis, às quais gentilezas respondia por vezes um katafaraónico palavrão... Marcharam longamente, sem avaliarem da tipografia, por que nessa operação de competência contava simplesmente o tempo, nunca o espaço. Talvez marchassem para algum destino marcado pelos deuses, talvez que às voltas cumprissem imperscrutáveis meandros do tempo. E o semideus do jipe, director de tantos e tão secretos desígnios, passava e repassava em seu traje de campanha e sobre seus sólidos pneus, todo baboso de tanto estendal de competência, assim distribuída em dois carreiros de homens-formigas, marchando sem perguntas e sem quererem saber para onde... Ao transitar por entre as filas em que se tornara a primeira companhia, o senhor do jipe ordenou ao serviçal do volante que abrandasse o andamento. Mirou, regozijado, o disciplinado estendal e teve uma palavra amiga na direcção do capitão:

- Então, nosso capitão... os seus doutores hoje ‘stão fodidos”

Quem anda em campanha molha-se, corre o risco de ser abalroado pelo inimigo. Nos preparativos militares o inimigo é uma ficção que nunca mais nos saiu da mente, como José Martins Garcia regista:

“O inimigo guarda um conveniente silêncio. A ponte avizinhava-se escandalosamente. O pelotão tacticamente conduzido pela bravura do seu comandante, encontrava-se a descoberto, à vista de qualquer observador medíocre, a umas dezenas de metros da ponte, numa paródia de guerra, num grande desperdício de atacantes. O bravo alferes mandou fazer alto, para improvisar a vitória. Foi nessa altura que o semideus do jipe, manhosamente silencioso veio inquirir das grandes manobras. O alferes, em sentido, garantiu que ia ganhar. Mas o semideus queria certificar-se do grau de responsabilidade daqueles bravos. E, vendo o idiota do soldado-cadete ramalho muito entretido a observar a paisagem, berrou:

- Você aí! Está a ouvir?

O Ramalho estava, evidentemente, a ouvir. Encarou o semideus e continuou mudo.

- É consigo que estou a falar, ouviu? Ouviu? Estou a fazer-lhe uma pergunta.

Responda. É uma ordem.

- Ouço – resmungou o outro.

- Mais alto, que não ouço...

- Ouço – berrou o Ramalho.

- Ah ouve! Ouve o quê?

- Estou a ouvir Vossa Excelência.

- Ah! E sabe o que vai fazer?

- Com certeza, Excelência. Vou apanhar o inimigo.”

Temos agora o alferes miliciano Ramalho a chegar a Takiá (será Catió?), parece que está a levar a sério a sua entrada em cena na guerra. Do rigor das imagens passa-se para o surrealismo dos comportamentos, a demência anda à solta. O Ramalho pergunta ao médico sobre o estado de saúde dos oficiais, recebe respostas muito reservadas. Ramalho é oficial de transmissões (tal como José Martins Garcia foi na Guiné), vai fazendo perguntas, recebe respostas doidas. A segurança de Takiá é calamitosa:

“Então o alferes Ramalho, em voz baixa, perguntou ao alferes Mike:

- Em casa de ataque, quem é que defende isto?

- Ora ataque... quer dizer... há uma companhia de cavalaria que não está cá...

- Mas costuma estar?

- Às vezes está... outras não...

- E quando não está?...

- Há o alferes Carril, das auto-metralhadoras... aquele do bigode... Há aqui o gerente que tem um canhão...”

É nisto que sobrevém uma flagelação a Takiá, a guarnição entra em delírio, balbúrdia maior não pode haver. Os alferes Ramalho e Trabuco comem pernas de frango, abrem garrafas de cerveja, falam sobre Sartre e envolvem-se à porrada: “As metralhadoras insistiam na sua interminável competência. Bêbedos, incapazes de se susterem nas pernas, o veterano e o novato chafurdavam na lama”.

Afinal, o Jorge Cabral tem aqui um modelo parodiante. Há que reconhecer que esta centelha de talento é desopilante, é verdade que não nasceu agora mas continua a ser uma arma temível para descrever os frenesins de todos os tempos de todas as guerras. Tal como o desenho de humor, por sinal.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 11 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5622: Notas de leitura (52): Os Anos da Guerra, de João de Melo (6): J. M. Garcia, S. M. Ferreira e Cristóvão de Aguiar (Beja Santos)

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